Divulgação: Jemi Lovely - Sociedade Secreta
~*~
Dias de tensão
EU: — Diga que vem!
Mal terminei o jantar e corri
para falar com minha mãe. Estava desesperada para ouvir a voz dela e contar as
novidades, inclusive sobre o convite de meu pai para que ela, meus avós e Selena viessem à Krósvia para a cerimônia, bláblá-blá. Já não suportava mais falar
nisso.
Não foi um jantar totalmente
desagradável, tampouco divertido. Depois do papo sobre o qual eu não queria
falar, o assunto simplesmente não fluiu.
Conversamos um pouco sobre tia
Marieva e eu aproveitei para elogiar meus priminhos. Mas meu cérebro insistia
em me levar a um terreno perigoso, ou seja, ao que havia acontecido — ou quase
— com Joe e eu em meu quarto, um pouco antes.
Eu ainda podia sentir minha pele
formigando com a expectativa do contato e tenho certeza de que Joseph não
ficara indiferente. Por mais que Laika estivesse ali, atracada com o pescoço
dele, tinha havido um momento de atração entre nós.
Aliás, passava da hora de eu
admitir, pelo menos para mim, que essa atração não era nova coisa nenhuma.
Desde que eu pusera os olhos nele pela primeira vez, fora atraída como por um
ímã.
Numa situação diferente, eu
provavelmente estaria de olho em Joseph. Por exemplo: se estivéssemos no Brasil
e eu fosse simplesmente Demetria Devonne Lovato e ele, um cara gostoso qualquer,
sem nenhum parentesco com a nobreza, a chance de haver uma paquera entre nós
seria bem grande. Não estou falando de namoro nem nada, mas de um paquera
inocente.
Mas ali isso era impossível
porque:
1º: Ele tinha namorada (e isso,
por si só, já era empecilho mais que suficiente).
2º: Joe era enteado de meu pai.
Ou seja, para todos os efeitos, éramos quase irmãos (eu ainda não tinha
refletido por esse lado).
3º: Nick. Por mais que não fosse
namoro, era alguma coisa.
4º: Eu não ficaria na Krósvia
para sempre.
Ainda bem que eu não chegara a me
apaixonar por Joe. Seria complicado... Nada de paixão. Nadinha. Zero...
Voltando à conversa com minha
mãe:
MÃE: — Filha, eu gostaria muito,
mas não sei se consigo deixar o buffet. É um período complicado.
EU (suplicando): — Mãe, por
favor. São poucos dias. Você não pode deixar outra pessoa responsável pelos
negócios?
MÃE: — Você sabe como são meus
clientes. Gostam de me ver por perto. Mas vou dar um jeito, é claro.
EU: — Você acha que a vovó e o
vovô viriam?
MÃE: — Não sei. Sua avó, talvez.
Mas o papai não gosta de fazer longas viagens de avião. E também não fala
inglês.
EU: — Puxa... Estou tão ansiosa,
mãe. Precisando de um colinho. Já estou vendo minha vida de pernas para o ar.
Quanto tempo você acha que a imprensa brasileira vai demorar para cair matando?
MÃE: — De verdade? Tempo nenhum.
Assim que seu pai fizer o anúncio, aposto que os jornalistas vão fazer fila na
porta do palácio. Sabe como é, né? Notícia nova, diferente, até meio romântica,
se quer saber.
EU (suspirando): — E se eu
estiver arrependida?
MÃE: — Não, você não está. Pode
estar com medo da repercussão, mas não arrependida. De todo modo, quando a
notícia ficar velha, todo mundo vai acabar esquecendo.
EU: — Espero que sim.
MÃE (mais animadinha): — E quanto
ao resto? Como andam os passeios com o Joe?
EU (sentindo o rosto corar): —
Legais.
MÃE: — Só isso? Legais?
EU: — Legais, diferentes,
excitantes...
MÃE (cheia de malícia): —
Excitantes, é? Como assim?
EU (reativa): — Ora, excitantes, emocionantes.
Ah, mãe, você sabe que sempre vamos de moto. Isso é excitante. E também os lugares
aonde a gente vai.
MÃE: — Sei.
EU: — É sério, tá? E não estou a
fim de falar mais nisso.
MÃE: — Tudo bem. Só quero que
você esteja feliz aí, aproveitando bastante.
EU (suspirando de novo): — Eu
estou, mãe. De verdade. Só queria ter vocês perto de mim no dia da minha
apresentação. Acho que vou suportar melhor.
MÃE: — Tá bom. Pode contar
comigo. Dou um jeito por aqui, mas não vou te deixar na mão quando mais precisa
de mim. Que tipo de mãe eu sou, afinal?
EU (exultante): — A mãe mais
maravilhosa do mundo!
Os dias passaram voando. Sei que
essa frase é um clichê barato, mas não inventaram nada melhor para traduzir a
sensação de ver o tempo passar sem a gente perceber. Apesar de todos os novos
passeios com Joe — que ficaram escassos depois de meu encontro com Laika —, da
busca desenfreada pelo vestido perfeito — que acabou se convertendo em dois
(mas isso é assunto para depois) — e dos preparativos sem-fim, tudo aconteceu
muito depressa.
Contudo, foi mais fácil suportar
o estresse pré-apresentação depois de saber que minha mãe, vovó e Selena estariam presentes. Como isso era uma coisa boa, esperar pelo grande dia não
foi algo tão traumático.
Assim que convidei Selena, a
menina só faltou pirar. Primeiro, teve medo de não poder ir por falta de grana.
Foi então que Andrej anunciou que fazia questão de bancar a vinda de minhas convidadas.
Mamãe recusou na mesma hora. Ela disse que jamais aceitaria viajar com o
dinheiro de Andrej, nem que essa decisão lhe custasse a viagem. Vovó Sue fez
coro a ela e também não aceitou a oferta de meu pai. Mas tenho a impressão de
que, no fundo, ela não se importaria de aceitar. Mesmo assim, optou por dar
apoio moral à filha.
Por outro lado, Selena não pensou
duas vezes. E a justificativa dela era muito válida.
— Como eu não tenho dinheiro e
meu pai disse que não pode abrir mão dessa quantia para uma viagem que ele
considera supérflua, o jeito é aceitar a caridade do seu pai.
Nem era uma caridade. Andrej
queria que eu ficasse feliz e acabou dando o jeito dele. Só quero esclarecer
que o dinheiro das passagens de Selena não saiu dos cofres públicos. Sei que
não mencionei isso antes, mas meu pai possui outras rendas, como imóveis
alugados, ações na bolsa, essas coisas.
Apenas Selena ficaria hospedada
no castelo.
Minha mãe queria manter distância
para que ninguém pensasse que ela estava a fim de reviver os velhos tempos.
Quando digo “ninguém”, refiro-me principalmente à imprensa. O último desejo dela
seria as pessoas murmurando que a mãe da princesa estava de olho no trono do
lado direito do rei. Mais uma vez, vovó a acompanhou.
Mas Selena era aguardada com as
pompas e honras de uma personalidade. Dias antes de sua chegada, Irina mandou
preparar um quarto especial para minha melhor amiga, com direito a lareira, closet
e sacada. Pedi a Karenina que fizesse pão de queijo e também sua especialidade:
struklji, rolinhos de farinha com recheio de carne, vegetais e queijo, uma
iguaria típica da Eslovênia, país vizinho da Krósvia, no lado direito do mapa.
Mamãe e vovó fizeram reserva num
hotel em Perla. Depois, fiquei sabendo que ficava próximo ao prédio de Joseph,
onde, aliás, eu jamais estivera. E todas as três estavam prestes a chegar.
Queria ter ido buscá-las no
aeroporto, mas Andrej achou melhor me manter em segurança durante o dia. A
população não tinha noção do que seria anunciado mais tarde, mas já havia sido avisada
sobre o pronunciamento do rei, que revelaria algo bombástico às 4h da tarde.
Sendo assim, de acordo com meu
pai, quanto mais guardadinha dentro de casa eu ficasse, menores seriam as
chances de algum curioso descobrir a verdade antes da hora.
Jorgensen acabou indo ao
aeroporto sozinho, outra vez num carro alugado, para não levantar suspeitas.
Escolhi como companhias, enquanto elas não chegavam, um livro, um roupão de fleece
e meu
travesseiro. Ou seja, fiquei quietinha em minha cama, aconchegada sob o
edredom, lendo uma história bem light para jovens adultos, que me deixou
concentrada e, ao mesmo tempo, relaxada.
As pessoas mais íntimas chegariam
ao castelo por volta do meio-dia. Desse grupo, faziam parte meus tios e primos
de Craiev, Joe e o primeiro-ministro da Krósvia — que era um grande amigo de
Andrej —, Zlater Muriev, com sua esposa, Stephania. Ah, e, claro, minha mãe,
vovó e Selena.
Almoçaríamos juntos à 1h30 da
tarde, depois teríamos um tempo para nos trocar e então seguir em comboio para
o Palácio de Perla.
Propositalmente, Laika não
pertencia ao grupo de íntimos. Acredito que Irina teve grande influência nessa
decisão e eu não pude — nem quis — fazer nada para mudar. Tampouco Joe pareceu
chateado.
Sobre os dois vestidos, agora já
posso explicar. É que à noite haveria um baile para convidados especiais, e
Irina insistiu que eu não poderia usar a mesma roupa da cerimônia de apresentação.
Por isso, fomos à caça de dois, o que se converteu numa jornada dificílima e estressante,
pois nada do que eu gostava agradava Irina e vice-versa. Por fim, ela sugeriu
que contratássemos um estilista, mas recusei. Gosto de comprar minhas roupas,
de experimentá-las nas lojas, e não ficar esperando alguém confeccioná-las para
mim. Dá muito trabalho.
Quando quase não havia mais
esperanças, acabei encontrando na mesma butique os dois vestidos de uma só vez.
Para a cerimônia, eu usaria um tubinho azul-marinho, justo — mas comportado —,
tomara que caia, com um bolero de renda da mesma cor por cima. Irina sugeriu
que eu prendesse apenas um dos lados do cabelo, mas que deixasse o restante
solto, para “exibir minha beleza e exuberância”. Ah, tá!
Porém, à noite, o estilo mudaria
totalmente. De tanto folhear as revistas de celebridades e visitar as lojas
mais descoladas do país, concluí que os longos estavam com tudo, especialmente
os com fendas até o meio de uma das coxas, sensação da temporada. Seguindo o
conceito elegante-mas-sexy, meu coração quase parou assim que bati os olhos no
vestido de meus sonhos: um longo rosê — contrariando a dispensável opinião de
Laika de que minha pele não combinava com tons pastel — de uma seda puríssima,
quase translúcido, com decote profundo na frente, ajustado na cintura por uma faixa
do mesmo tecido, presa por um broche de cristais. A saia era reta, mas se abria
gradualmente por causa da fenda na lateral esquerda. Maravilhoso! Minha mãe
amaria, já que ela se ligava muito mais nessas coisas de moda do que eu. E ai
de quem o achasse feio. Era da Dior Couture! Socorro! Eu não via a hora de
colocá-lo novamente no corpo e desfilar com ele pelo salão.
O livro que eu lia já tinha
passado da metade quando o telefone do quarto fez um barulho estridente. Pelo
toque, não era uma chamada externa. Alguém de dentro do castelo queria falar comigo.
— Oi?
— Demi! Depressa! — exclamou
Irina. — Elas chegaram!
Desci feito uma louca as escadas
até o hall de entrada, esquecendo-me completamente de meus trajes — ou da falta
deles. Mas, naquele momento, não importava se eu estivesse de biquíni ou
enrolada numa toalha. Tudo o que eu mais desejava era ver as três mulheres mais
importantes de minha vida: minha mãe, minha avó e minha melhor amiga.
Quando aterrissei no andar térreo
do castelo, avistei as três, de boca aberta e olhos esbugalhados, mal segurando
o choque por estarem diante de um lugar tão magnífico. Sorri, ao mesmo tempo em
que as lágrimas embaçavam minha visão.
— Mãe! — berrei, saltando feito
uma cabra para os braços dela.
As três, ao notarem minha
presença, aproximaram-se de mim e nos unimos num abraço único e emocionado.
Nem reparei em quem estava na
sala. Pouco me importava ser pega naquelas condições, desde que os braços de
minhas queridas continuassem a meu redor. Como elas fizeram falta!
— Oh, meu amor! — disse vovó. —
Que saudade!
Mamãe se afastou um pouco para
analisar minha aparência. Pareceu gostar do que viu.
— Você está ótima! Corada,
reluzente.
— É claro! — interrompeu Selena,
cujas malas — mais de uma — estavam nas mãos de um Jorgensen aturdido. — Quem
ficaria mal num lugar como este? Isso tudo parece um sonho, Demi!
— Vocês ainda não viram nada.
Espero que dê tempo de mostrar todas as coisas lindas que encontrei por aqui —
desejei. E então alguém tossiu.
Era meu pai, parado a certa
distância, contemplando a cena do reencontro. A seu lado, a sempre fiel Irina.
— Espero que tenham feito uma boa
viagem — disse ele, formal, mas em inglês, imaginando que todas eram fluentes
naquele idioma. Mas depois relaxou. — E gostaria muito que ficassem à vontade
para conhecer o que quiserem, dentro e fora do castelo.
Minha mãe balançou a cabeça, mas
foi vovó quem respondeu, também em inglês (muito bom, por sinal):
— Obrigada, Sua Majestade. O
senhor é muito gentil. E estou feliz porque vejo que tem cuidado muito bem da
minha neta.
— Poderia estar fazendo melhor —
Andrej retrucou. — Se tivesse um pouco mais de tempo. A Demi fica praticamente
por conta da Irina e do meu enteado, o Joe.
Selena fez uma cara safada ao
escutar o nome Joe.
— E, por falar em Irina, esta é a
responsável por tudo isso aqui hoje. — Andrej empurrou-a de leve em nossa
direção, fazendo-a corar de prazer.
Se havia uma pessoa que adorava
ser reconhecida como eficiente, essa pessoa se chamava Irina.
— Ela é meu braço direito em
assuntos domésticos — continuou ele. — E também uma fã de carteirinha da nossa
Demi.
Corei com o emprego do pronome
“nossa”.
Soou tão afetuoso.
— E minha grande amiga — concluí,
segurando as mãos dela, de forma a retribuir tudo o que vinha fazendo por mim.
Houve um instante de cumprimentos
e trocas de beijinhos no rosto, gesto que nós, mineiros, não titubeamos em
utilizar. Notei que Irina ficou toda vermelha com tanta demonstração de afeto,
coisa com a qual ela não estava acostumada. Outro dia, eu perguntara a ela
sobre sua vida amorosa e ganhara uma resposta breve, sem direito a réplicas:
— Não tenho tempo para isso.
Mas, não sei, não. Ficara a
impressão de que Irina tinha uma quedinha por meu pai. E ele, por viver atolado
em trabalho até o pescoço, nunca se permitira perceber os sentimentos da moça.
Tadinha... Até que os dois fariam
um casal bonito.
Andrej levou as visitantes para o
salão de recepção, onde Karenina lhes serviu um lanche de primeira. Havia
estrelas nos olhos de cada uma e essa aprovação delas de “minha vida lado B” me
fez muito bem.
— Daqui a pouco chegam os demais convidados
para o almoço — anunciou Andrej. — Dianna, acho que você vai gostar de rever
minha irmã, Marieva. Lembra dela?
— É claro. Como não? Parece que
nos encontramos só uma vez, mas gostei dela.
Graças a Deus não foi estranho
para os dois iniciar uma conversa despretensiosa. Depois dessa, todo mundo no
ambiente deu uma relaxada. Até que Joseph apareceu, de supetão como sempre, e
nos presenteou com sua presença marcante. Fiquei uns cinco segundos sem
respirar, cada vez mais ligada à existência dele.
— Olá para todos — cumprimentou despojadamente,
mas endireitou o corpo assim que viu minhas convidadas do Brasil. — Oi. Desculpem.
— Ficou desconcertado. Uma gracinha.
— Joe, que bom que chegou! —
disse Andrej. — Estas são Dianna, dona Sue Hart, e Selena, mãe, avó e melhor
amiga da Demi.
— Só Sue, por favor — retrucou
vovó.
Joe se dirigiu a elas e
cumprimentou uma a uma com um aperto de mão. Fingi que não vi, mas Selena
estava prestes a fazer algum comentário, um daqueles bem ambíguos, só para ver
minha reação.
— Chegaram agora? — Joe
perguntou, educado, mas de olho em mim. Engraçado: ele parecia estar segurando
o riso, como se estivesse olhando para um palhaço ou coisa parecida.
— Sim. Faz pouco tempo —
respondeu Selena, analisando nossas reações.
— E devem ter pegado a Demi de
surpresa, né? Já que ela nem teve tempo de vestir uma roupa.
Olhei para mim devagar. Já tinha
até me esquecido de que usava meu roupão verde-água com bolinhas lilás, de fleece. Macio e confortável, mas
ridículo. Ai, que vergonha!
Todos riram, menos eu, é claro,
que estava prestes a correr dali. Disparei a gaguejar:
— A-cho que vo-ou sub-bir para me
tr-trocar.
— Vou com você! — E tinha jeito
de Selena não se prontificar a me acompanhar? Eu já podia até escutar as
engrenagens do cérebro dela fazendo barulho.
Acabei ajudando-a com as malas.
Pelo jeito, ela pretendia passar mais do que um feriado prolongado na Krósvia.
Fomos direto para meu quarto e
prometi leva-la ao dela mais tarde.
— Nossa, Demi! Que lugar é este?!
Você tem vivido bem, hein, garota?
— Não é? Às vezes, eu penso: pra
que tudo isso? Mas acho que vida de gente importante é assim mesmo —
justifiquei-me de dentro do closet, onde aproveitei para escolher a
roupa que usaria no almoço.
Selena pôs-se a passear pelo
quarto, absorvendo os detalhes feito Hercule Poirot à procura de provas
criminais nos livros da Agatha Christie.
— Nunca imaginei que um dia fosse
entrar num castelo como este — observou ela. — Muito menos que seria a melhor
amiga da princesa.
— É inacreditável mesmo. —
Concordei por concordar, porque a essa altura minha ficha já havia caído havia
muito tempo.
— E você é uma sortuda com S
maiúsculo — continuou Selena. — Além de tudo isto — ela fez um movimento com os
braços, como se estivesse abrangendo tudo ao redor —, ainda tem o Joe. Por que
você nunca o descreveu direito para mim?
— Peraí. Vamos por partes. — Saí
do closet com o zíper da saia aberto. — Eu não tenho
o Joe. Isso
é coisa da sua cabeça. Além do mais, como assim descrevê-lo? Pelo que me
consta, eu mencionei todos os detalhes importantes.
— Por acaso você me informou que
ele era lindo e charmoso e tinha os olhos mais verdes e penetrantes do mundo?
— Não, mas fui bem sincera ao
falar sobre a implicância dele comigo e sobre como os tais olhos verdes
penetrantes só sabiam me fuzilar no princípio. Sem mencionar a desconfiança,
lembra?
Consegui subir o zíper e ajeitar
a saia sobre a blusa de seda. Voltei para o closet
atrás dos sapatos.
— Demi, eu queria detalhes que
você deixou de lado, acho que de propósito. Pode confessar que tentou guardar
esse tesouro só para si. Eu não ligo.
— Fala sério, Selena! — Dei
meia-volta, com os dois sapatos nas mãos. — Você enlouqueceu. Se eu não te
descrevi o Joe é porque não era importante, tá legal? Nem reparei direito, se
quer saber.
Levei o maior susto com a
gargalhada descontrolada que Selena soltou.
— Ah, claro, a senhorita não
reparou! Então, deve ter sido outra pessoa que o chamou de mauricinho gostosão.
Não acreditei que ela se lembrava
disso!
— Isso foi abrangente, Selena.
Não foi uma declaração nem nada — expliquei, sabendo que a desculpa não colou.
— Entendo. Realmente, o adjetivo gostosão
abrange
muitas coisas mesmo. — Que raiva! Selena não queria deixar isso quieto. — E
define bem o nosso Joe. Porque ele é isso mesmo, um gostosão. Mas, quanto ao
mauricinho, sou obrigada a discordar de você.
Joguei-me na cama, sentindo-me
meio derrotada. Enfiei os saltos nos pés e encarei minha amiga.
— Tudo bem, Selena. Eu me rendo.
Admito que o Joe é um gato, que mexe com meus nervos de um jeito inédito pra
mim.
Ela levantou as sobrancelhas,
como se dissesse “não falei?”.
— Mas nada disso importa. O Joe é
um cara comprometido. E enteado do meu pai — acrescentei depressa. — Ou seja, é
quase meu irmão.
Agora, sim, a gargalhada me deu
medo. Foi igual à de um vilão psicótico.
— Conta outra, Demetria! Quase
irmãos...
É sempre assim. Quando Selena
está a fim de me enfezar, ela me chama de Demetria. Todo mundo sabe que não
gosto de ser chamada assim.
— Olha, Selena. Não sei por que
estamos perdendo tempo discutindo esse assunto. O Joe e eu somos duas pessoas
convivendo uma com a outra por obrigação, pela situação. Não fosse isso, jamais
teríamos nos conhecido, ou talvez sim, mas não seria nada de mais. E não é,
mesmo agora.
Daqui a uns meses eu volto para o
Brasil e fim.
— Se você está dizendo. — Selena
deu de ombros. — Mas eu particularmente penso...
— Pensa coisa nenhuma — cortei-a.
— Vamos, venha me ajudar com a maquiagem. Daqui a pouco precisamos descer e não
quero aparecer de cara limpa.
— Uau! E depois você diz que é
indiferente ao “mauricinho gostosão”. — Selena fez sinal de aspas no ar.
— Cala a boca!
E acabei ganhando mais uma sessão
de gargalhadas.
Eu deveria estar histérica. Mas,
estranhamente, me sentia bem. Como tudo transcorreu na santa paz durante o
almoço, presumi que os demais momentos daquele dia interminável também seriam tranquilos.
Selena não falou mais sobre
Joseph. De vez em quando, ela desviava a atenção para ele e ficava babando como
uma tiete diante do ídolo.
Não fiquei com raiva nem nada, só
achei meio ridículo.
Mamãe e vovó engataram uma
conversa animada com tia Marieva, enquanto as crianças me rodearam para contar
as novidades. A mais impressionante de todas foi que Giovana perdera seu
primeiro dente de leite. Ela esticou os lábios para me mostrar a janelinha com
um orgulho muito pouco disfarçado.
Zlater e Stephania Muriev
demonstraram ser um casal simpático. Participaram das conversas como se fossem
gente de casa, ignorando solenemente o assunto política. Achei essa atitude excelente,
e contou pontos para os dois.
Joe tentou chamar minha atenção o
tempo todo. Mas decidi ignorá-lo — 1, por causa da história do roupão, e, 2, devido
às minhas reações nada naturais diante dele. E olhe que ele utilizou várias
abordagens: fez piada com meu medo de andar de moto, fofocou que eu era
impressionável em se tratando de histórias antigas, contou que eu levava jeito
na cozinha — o que deixou minha mãe toda orgulhosa. Por fim, deu um chute em
minha canela e eu juro que quase reclamei em voz alta, bem assim:
— Pai, o Joe me chutou!
Só que não fiz nada disso, é
óbvio.
Quando o almoço terminou,
despedi-me apressadamente de todos, pois Irina anunciou em alto e bom som que
Virna, minha primeira e única manicure na Krósvia, estava me aguardando no quarto.
Mamãe e vovó também se despediram
e foram levadas ao hotel para um descanso rápido. Elas acompanhariam a
cerimônia de apresentação no Palácio de Perla e seriam levadas até lá por Jorgensen,
que estava por conta delas. Não foi fácil separar nós três. Desejava mais um
tempo de mimos e paparicos. Por outro lado, sabia que a ocasião exigia
paciência. Depois da apresentação, teríamos mais liberdade.
Virna caprichou na produção.
Agora já expert nas técnicas brasileiras de manicure e pedicure, fez um
trabalho perfeito em minhas unhas. Escolhi vermelho vivo para as mãos e os pés.
Quem sabe a cor desviasse a atenção de cima de mim? Quanto menos pessoas
ficassem me encarando, melhor seria para meu coração descompassado.
Unhas feitas, hora do cabelo. Eis
que surgiu na minha frente a figura mais exótica da face da Terra para “dar um up” em meu visual. Nome: Patrick.
Gênero: duvidoso. Simultaneamente batendo palmas e estalando os dedos, Patrick
invadiu meu quarto agarrado numa maleta pink e falando pelos cotovelos. Em krosvi.
— Ei! — praticamente tive que
gritar para ser ouvida. — Em inglês, por favor.
Patrick arregalou os olhos —
muito bem delineados de lápis preto — e abriu a boca. Mas de lá não saiu mais
nenhuma palavra.
— Oh-oh — disse eu. Pelo jeito,
ele não falava nem entendia nada daquela língua. E agora?
— I
don’t speak English — alegou,
num inglês muito ruim.
— And
I don’t speak Krosvi — retruquei,
exasperada. Como é que ficaria meu cabelo se nós não conseguíamos entender a
língua um do outro?
Na certa, se eu pedisse para
deixar liso, Patrick acabaria fazendo um permanente. Levantei as duas mãos para
ele, fazendo um gesto para que esperasse. Recorri a Irina, que teria que dar
uma de intérprete. Quem mandou contratar um cabeleireiro com o qual eu não
conseguia me comunicar?
Resolvida a questão, deixei que
ele trabalhasse em minhas madeixas. Até que a figura tinha dedos de anjo, pois
fui ficando grogue de sono enquanto Patrick mexia para lá e para cá nas minhas
mechas.
— Ele está dizendo que seus
cabelos são muito sedosos, Demi. — Irina me tirou do torpor traduzindo a frase
de Patrick.
— O que ele não deve estar
querendo dizer em voz alta é que esses meus cabelos são teimosos como um cavalo
selvagem. E não traduza isso! — ordenei. — Verdade. Posso ter cabelo liso, mas não
é nada fácil lidar com ele.
Por fim, tive que admitir que o
resultado ficou muito bacana. Patrick fez como Irina sugeriu, prendendo só um
dos lados com grampos. Em cima deles, tanto para escondê-los como para dar um charme,
colocou um prendedor bonito, incrustrado de minúsculas estrelas de cristal.
— Patrick está dizendo que a cor
dos seus cabelos é bonita. — Outra tradução feita por Irina. — E que, se você
quiser clareá-los mais um pouco, pode procurá-lo. Ele terá o maior prazer de se
tornar o hair stylist oficial da princesa Demi da Krósvia.
Revirei os olhos, achando a
oferta uma graça.
Clarear os cabelos? Quem sabe?
Da maquiagem eu mesma cuidei,
pois já estava acostumada. Nunca saía à noite sem maquiagem em BH e, de dia,
estava sempre de gloss, pelo menos.
Assim que me olhei no espelho de
corpo inteiro de meu closet e constatei que não faltava mais nada, suspirei. A sorte estava
lançada. Em poucos minutos, eu deixaria de ser simplesmente Demetria Devonne
Lovato para me tornar algo próximo a uma celebridade.
Soube que a imprensa brasileira
invadiu Perla em peso, mesmo sem saber absolutamente nada sobre mim. Mas, como
a assessoria de imprensa do governo soltara uma nota informando que a notícia
que o rei Andrej daria naquela tarde dizia respeito ao Brasil também, os
jornalistas não ficaram parados, esperando para ver. Acamparam no pátio do
Palácio de Perla com câmeras e microfones e lá ficaram o dia todo.
Uma leve batida na porta me
provocou um sobressalto. Pensei logo em Joseph, mas ele jamais batia. Entrava
de uma vez, com ou sem autorização. Já vacinada contra suas invasões, preferi
atender pessoalmente, em vez de mandar entrar.
— Olá! — Era meu pai. — Como está
esse coração?
Abri caminho para ele e então vi
seus trajes. Andrej estava alinhadíssimo, num fraque impecável, talvez até
demais para o horário. Mas, como não entendo muito de etiqueta, nem sei se tinha
ou não razão quanto a isso.
— Batendo acelerado — confessei.
Ele me olhou com aprovação.
— Você está linda. Parece uma
princesa.
Sorrimos. Ele estava fazendo
piada, embora de uma forma bastante sutil. A cara de Andrej.
— Queria garantir a você que será
rápido, que você não ficará exposta demais — disse, com uma expressão carregada
de ternura. — Que as pessoas não atormentarão você...
Balancei a cabeça, compreensiva.
— Mas eu não posso... — meu pai
assumiu, por fim. Deu um longo suspiro, que depois se transformou num sorriso
consolador. — Só quero deixar as coisas mais confortáveis, se é que tem jeito.
Não haverá coroação, não agora. Príncipes e princesas não precisam ser coroados
para serem reconhecidos como herdeiros do trono. Mas, no seu caso, faço questão
disso... caso você decida viver aqui para sempre.
Uma camada de ar gelado percorreu
minha coluna vertebral. Achei que já tinha deixado bem claro que voltaria para
o Brasil, independentemente de qualquer coisa.
Parece que Andrej leu meus
pensamentos, pois tratou de esclarecer:
— Não estou exigindo que more na
Krósvia, que deixe o Brasil de vez. É só um desejo meu muito, muito forte.
Assenti. E ele voltou a pisar em
terreno sólido.
— Vou ficar do seu lado o tempo
todo. Você não precisa dizer nada, se preferir assim.
— Prefiro — concordei mais que
depressa.
— Só lhe peço um único favor.
— Pode pedir. — Senti que era
necessário abrir a guarda. Esse pai era mais do que eu merecia.
Andrej enfiou a mão no bolso do
paletó e retirou uma caixinha azul. Fiquei olhando para ela, sem entender. Ele
me daria uma joia?
Ao abrir a embalagem, apareceu um
colar, que eu julguei ser de ouro branco. Na verdade, era uma correntinha
prateada, muito fina e delicada, com um pingente brilhante no formato de um
botão de rosa.
— Este diamante pertenceu à minha
mãe, sua avó Andrina. — Diamante! E eu pensando que fosse, no
máximo, um cristal Swarovski. — Quando me casei, ela o deu de presente para Elena,
esperando que um dia tivéssemos uma filha que herdasse a joia. Quero que a use
hoje.
Andrej ficou atrás de mim e
colocou o colar em meu pescoço. Instintivamente, toquei o pingente. Tão lindo!
— Elena morreu sem saber sobre
você. Mas acredito que, se estivesse aqui, faria o que estou fazendo agora, e
até melhor, Demi. Ela era uma pessoa maravilhosa e teria amado você tanto quanto
eu.
Senti lágrimas formando-se em
meus olhos, mas eu não choraria. Por mim, por meu pai, por tudo, ficaria firme
até o fim.
— É lindo — murmurei. E o abracei
em seguida. — Obrigada por tudo. Vou fazer meu melhor. Prometo, papai.
E essa foi a primeira vez que
chamei Andrej de pai. Deliberadamente.
O rosto dele adquiriu uma
expressão de realização, como se aquela simples palavra fosse a mais bonita e
importante do mundo. Naquele momento, ela era, sim. Pelo menos para nós.