quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Capítulo IX


The Fault In Our Stars

Um dia antes da viagem para Amsterdã voltei à reunião do Grupo de Apoio pela primeira vez desde que conheci o Joseph. O elenco havia sido ligeiramente alterado ali no Coração Literal de Jesus. Cheguei cedo, o suficiente para que Lida — a sempre forte sobrevivente do câncer de apêndice — me atualizasse a respeito de todo mundo enquanto eu comia um cookie industrializado de chocolate encostada na mesa de biscoitos.
Michael, o leucêmico de doze anos de idade, tinha partido desta para melhor. Ele lutara bravamente, me contou a Lida, como se houvesse qualquer outra forma de lutar. O resto do pessoal ainda continuava por lá. Ken estava SEC desde que terminara a radioterapia. Lucas teve uma recaída, e a Lida disse aquilo com um sorriso amarelado e um leve ‚dar de ombros‛, da mesma forma que contaria que um alcoólatra teve uma recaída.
Uma menina gordinha e bonitinha se aproximou da mesa, disse “oi” para a Lida e depois se apresentou para mim como Susan. Eu não sabia ao certo qual era o problema dela, mas havia em seu rosto uma cicatriz que ia da lateral do nariz até o lábio e atravessava a bochecha. A Susan tinha passado maquiagem na cicatriz, o que só serviu para chamar mais atenção. Eu estava com um pouco de falta de ar por causa daquele tempo todo em pé, então falei:
— Vou me sentar ali.
Foi quando o elevador se abriu, revelando o Nicholas e a mãe. Ele estava de óculos escuros e se apoiava no braço da mãe com uma das mãos, a bengala na outra.
— A Demetria do Grupo de Apoio e não a Selena — falei, quando ele chegou perto o suficiente. O Nicholas sorriu e disse:
— E aí, Demetria. Como vão as coisas?
— Tudo bem. Fiquei totalmente gata depois que você perdeu a visão.
— Aposto que sim — Ele comentou.
A mãe o guiou até uma cadeira, beijou a cabeça dele e se deslocou de volta até o elevador. O Nicholas tateou o espaço abaixo do corpo e se sentou. Eu me acomodei numa cadeira ao seu lado.
— E então, como está tudo?
— Bem. Feliz por ter voltado para casa, acho. O Joe me disse que você passou pela UTI.
— É — respondi.
— Que droga! — ele disse.
— Estou bem melhor agora — falei. — Vou para Amsterdã com o Joe amanhã.
— Sei disso. Estou bastante atualizado a respeito da sua vida, porque o Joe nunca. Fala. De. Outra. Coisa.
Sorri. O Kevin pigarreou e disse:
— Se todos pudermos ocupar nossos assentos… — O olhar dele cruzou com o meu. — Demetria! — falou. — Estou tão feliz em vê-la!
Todos se sentaram e o Kevin começou a recontar a história da sua ausência de bolas, o que me levou a retomar a rotina do Grupo de Apoio: me comunicando com o Nicholas por meio de suspiros, me sentindo mal por todas as pessoas naquele cômodo e também por todas as pessoas fora dele, me distraindo da conversa para me concentrar na minha falta de ar e na dor. O mundo continuou girando, como sempre, sem a minha participação integral, e eu só despertei do meu devaneio quando alguém disse meu nome.
Foi Lida, a Forte. A Lida em remissão. A loira, saudável, robusta Lida, que fazia parte do time de natação da escola. A Lida, que só não tinha o apêndice, falou meu nome, dizendo:
— A Demetria é uma baita fonte de inspiração para mim; de verdade. Ela continua lutando, acordando todos os dias e indo para a guerra sem reclamar. Ela é tão forte... Tão mais forte que eu. Queria ter sua força.
— Demetria? — indagou o Kevin. — Como você se sente ao ouvir isso?
Encolhi os ombros e olhei para a Lida.
— Dou minha força para você se puder ter sua remissão em troca. — O sentimento de culpa me invadiu assim que completei a frase.
— Não acho que tenha sido isso o que a Lida quis dizer — o Kevin falou. — Acho que ela…
Mas eu já havia parado de prestar atenção.
Depois das preces para os vivos e da ladainha interminável dos mortos (com o Michael adicionado no fim), demos as mãos e dissemos:
— Vivendo o melhor da nossa vida hoje!
A Lida foi correndo me pedir desculpas e se justificar, e eu disse:
— Não, não, está tudo bem — fazendo um gesto de “deixe pra lá” com a mão, e falei para o Nicholas: — Você se incomoda de me acompanhar até lá em cima?
Ele pegou meu braço e eu o guiei até o elevador, grata por ter uma desculpa para evitar a escada. Já tinha quase percorrido o caminho todo quando vi a mãe dele parada num canto do Coração Literal.
— Estou aqui — ela disse para o Nicholas, e ele trocou o meu braço pelo dela.
Então me perguntou:
— Você quer ir lá em casa?
— Claro — respondi.
Eu me sentia mal por ele. E mesmo odiando a pena que as pessoas tinham de mim, não consegui evitar ter pena dele.

* * *

O Nicholas morava numa pequena casa estilo rancho em Meridian Hills, ao lado de uma escola particular para crianças ricas. Nós nos sentamos na sala de estar enquanto a mãe dele foi até a cozinha preparar o jantar, e aí ele me perguntou se eu queria jogar.
— Claro — respondi.
Nicholas me pediu que lhe passasse o controle. Fiz isso e ele ligou a televisão e um computador que estava conectado a ela. A tela da TV continuou preta, mas, após alguns segundos, uma voz grave começou a falar de dentro do aparelho.
Deception, disse a voz. Um ou dois jogadores?
— Dois — respondeu o Nicholas. — Pausar. — E virou-se para mim. — Eu jogo isso direto com o Joe, mas é muito irritante porque ele é um jogador de videogame totalmente suicida. Ele é, tipo, muito radical quando se trata de salvar civis e coisa e tal.
— É — falei, lembrando da noite dos troféus destroçados.
— Recomeçar — o Nicholas falou.
Jogador um, identifique-se.
— Essa é a voz ultrassensual do jogador um — o Nicholas disse.
Jogador dois, identifique-se.
— O jogador dois sou eu, acho — falei.
O Sargento Max Mayhem e o soldado Jasper Jacks acordam em um lugar escuro e vazio, de aproximadamente um metro quadrado.
O Nicholas apontou para a TV, como se eu devesse me dirigir a ela ou coisa assim.
— Humm — falei. — Tem algum interruptor para acender a luz?
Não.
— Tem alguma porta?
O soldado Jacks localiza a porta. Está trancada.
O Nicholas se juntou a mim.
— Tem uma chave em cima do batente da porta.
Sim.
— Mayhem abre a porta.
A escuridão continua total.
— Empunhar faca — o Nicholas disse.
— Empunhar faca — repeti.
Uma criança, que deduzi ser o irmão do Nicholas, saiu correndo da cozinha. Devia ter uns dez anos, toda agitada e elétrica, e meio que cruzou a sala de estar pulando e gritando, numa imitação perfeita da voz do Nicholas:
— ME MATE.
O Sargento Mayhem coloca a faca no pescoço. Tem certeza de que você…
— Não — disse o Nicholas. — Pausar. Frankie, não me faça sair daqui e te dar um chute no traseiro.
O Frankie deu uma risadinha e saiu furtivamente por um corredor.
Na pele do Mayhem e do Jacks, o Nicholas e eu avançamos tateando pela caverna até que esbarramos num cara que acabamos esfaqueando, depois de forçá-lo a nos confessar que estávamos numa prisão subterrânea na Ucrânia, mais de um quilômetro abaixo da superfície. Conforme continuávamos, efeitos sonoros — um rio subterrâneo ruidoso, vozes falando ucraniano e inglês com sotaque — nos guiavam pela caverna, mas não havia nada para ver naquele jogo. Depois de uma hora inteira, começamos a ouvir os gritos de um prisioneiro desesperado, implorando: “Deus, me ajude. Deus, me ajude.”
— Pausar — o Nicholas falou. — É sempre nessa hora que o Joe insiste em encontrar o prisioneiro, mesmo que isso nos impeça de vencer o jogo, e a única maneira de conseguir libertar o prisioneiro de verdade é vencendo o jogo.
— É. Ele leva muito a sério os jogos de videogame — falei. — Ele é apaixonado por metáforas.
— Você gosta dele? — o Nicholas perguntou.
— Claro que gosto. Ele é legal.
— Mas você não quer namorar o cara?
Dei de ombros.
— É complicado.
— Sei o que está tentando fazer. Você não quer dar para ele algo com que ele não vai conseguir lidar. Você não quer que ele Selenique você — o Nicholas disse.
— Mais ou menos isso — falei. Mas não era nada disso. A verdade é que eu não queria Nicholasficar o Joe. — Para não ser injusta com a Selena — falei —, o que você fez com ela também não foi muito legal.
— O que foi que eu fiz com ela? — ele perguntou, na defensiva.
— Você sabe, ter ficado cego e tudo mais.
— Mas isso não foi culpa minha — ele disse.
— Não estou dizendo que foi culpa sua. Estou dizendo que não foi legal. 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Capítulo VII e Capítulo VIII


The Fault In Our Stars

Gritei para acordar meus pais e eles entraram no quarto como dois furacões, mas não havia nada que pudessem fazer para diminuir a intensidade da supernova que explodia na minha cabeça, uma cadeia interminável de fogos de artifício intracranianos que me fizeram pensar que minha hora tinha chegado de vez, e tentei me convencer — como já tinha feito antes — de que o corpo desliga quando a dor fica insuportável demais, que a consciência é temporária e que tudo vai passar. Mas, como sempre, não desmaiei. Fui deixada na areia com as ondas batendo em mim, sem poder me afogar.
Papai foi dirigindo enquanto falava com o hospital ao celular, eu deitada no banco de trás com a cabeça apoiada no colo da minha mãe. Não havia nada a fazer: gritar só piorava. Para falar a verdade, qualquer estímulo só piorava.
A única solução seria tentar desmanchar o mundo, torná-lo negro e silencioso e inabitado de novo, voltar ao momento anterior ao Big Bang, no começo, quando havia o Verbo, e viver naquele espaço não criado e vazio sozinha com o Verbo. As pessoas falam da coragem dos pacientes de câncer, e eu não a nego. Por vários anos fui cutucada, cortada e envenenada, e segui em frente. Mas não se enganem: naquele momento, eu teria ficado muito, muito feliz em morrer.

* * *

Acordei na UTI. Pude perceber que era a UTI porque não estava num quarto particular, e porque havia vários aparelhos bipando, e porque eu estava sozinha: eles não deixam a família ficar na UTI do Hospital Pediátrico vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana porque isso representaria risco de infecção. Ouvi um choro vindo do fim do corredor. O filho de alguém tinha morrido. Eu estava sozinha. Apertei o botão vermelho para chamar alguém.
Uma enfermeira apareceu alguns segundos depois.
— Oi — falei.
— Oi, Demetria. Sou Alison, sua enfermeira — ela disse.
— Oi, Alison Minha Enfermeira — falei.
Depois disso comecei a me sentir muito cansada de novo. Mas fiquei acordada por um tempo quando meus pais entraram, chorando, e me deram vários beijos. Tentei erguer o tronco para abraçar os dois, e tudo em mim doeu quando os abracei, e mamãe e papai me contaram que não havia nenhum tumor no meu cérebro, e que minha dor de cabeça tinha sido causada por má oxigenação, o que por sua vez foi provocado pelo fato de meus pulmões estarem nadando em líquido, um litro e meio (!!!!) que tinha sido drenado com sucesso do meu peito, e era por isso que eu talvez fosse sentir um leve desconforto ao deitar de lado, onde havia, ei, veja isso, um tubo que ia do meu peito até um recipiente de plástico com líquido até a metade, que, juro, parecia a cerveja preferida do meu pai. Mamãe me disse que eu iria para casa, de verdade, que só teria de fazer essa drenagem de vez em quando e que precisaria voltar a usar o BiPAP, o equipamento noturno que força a entrada e a saída de ar dos meus pulmões de araque. Mas eu tinha feito uma tomografia computadorizada de corpo inteiro na primeira noite no hospital, segundo eles, e a notícia era boa: nenhum crescimento de tumor. Nada de novos tumores. A dor no meu ombro tinha sido falta de oxigenação. Dores de um coração trabalhando mais que o normal.

— Hoje de manhã a Dra. Maria nos disse que continua otimista — papai falou.
Eu gostava da Dra. Maria, e ela não era de mentir, por isso adorei ouvir aquilo.
— Isso é só um detalhe, Demetria — minha mãe disse. — É um detalhe com o qual conseguiremos conviver.
Assenti com a cabeça, e então a Minha Enfermeira Alison meio que fez com que eles saíssem, educadamente. Ela me perguntou se eu queria umas pedrinhas de gelo e eu disse que sim, e aí ela se sentou na cama comigo e me deu as pedrinhas na boca, de colher.
— Então você ficou fora do ar alguns dias — a Alison disse. — Humm… O que você perdeu?… Uma celebridade se drogou. Políticos brigaram. Uma outra celebridade usou um biquíni que revelou uma imperfeição corporal. Um time venceu um campeonato, mas outro time perdeu. — Eu sorri.
— Você não pode continuar se isolando do mundo assim, Demetria. Você perde muita coisa.
— Mais? — interroguei, fazendo um gesto com a cabeça na direção do copo branco de isopor que estava na mão dela.
— Eu não deveria — ela respondeu —, mas sou rebelde. — E me deu outra colherada do gelo triturado.
Murmurei um “obrigada”. Graças a Deus pelas boas enfermeiras.
— Está ficando cansada? — ela perguntou.
Fiz que sim.
— Durma um pouco — ela completou. — Vou tentar mexer uns pauzinhos e lhe dar algumas horas antes que entre alguém para verificar seus sinais vitais e coisas do gênero.
Agradeci mais uma vez. Em hospitais, você agradece o tempo todo. Tentei me ajeitar no leito.
— Você não vai perguntar nada sobre seu namorado? — ela me questionou.
— Eu não tenho namorado — falei.
— Bem, um garoto mal saiu da sala de espera desde que você chegou aqui — ela disse.
— Ele não me viu assim, viu?
— Não. Só a família.
Assenti com a cabeça e mergulhei num sono aquoso.

* * *

Ainda faltariam seis dias para eu voltar para casa, seis dias perdidos olhando para o isolamento acústico no teto, vendo televisão, dormindo, sentindo dor e querendo que o tempo passasse logo. Não vi o Joseph nem ninguém além dos meus pais. Meu cabelo parecia um ninho de passarinho; meu passo de cágado, o de um paciente com demência. Mas a cada dia me sentia ligeiramente melhor: cada sono acabava revelando uma criatura que se parecia um pouco mais comigo. O sono combate o câncer, disse meu médico, Jim, pela milésima vez quando pairou sobre mim certa manhã, rodeado por um grupo de estudantes de medicina.
— Então eu sou uma máquina de combate ao câncer — disse para ele.
— Isso você é mesmo, Demetria. Continue descansando e, com sorte, poderemos mandá-la para casa logo.

* * *

Na terça-feira, eles me disseram que eu iria para casa na quarta. Na quarta, dois residentes minimamente supervisionados removeram o dreno do meu tórax. A sensação foi de estar levando uma facada de dentro para fora, o que, no fim das contas, não saiu como deveria, por isso eles decidiram que eu teria de ficar até quinta. Já estava começando a pensar que eu era objeto de algum experimento existencialista de gratificação postergada em modo contínuo quando, na sexta-feira de manhã, a Dra. Maria apareceu, me farejou por um minuto e me disse que eu poderia ir embora.
Aí a mamãe abriu sua enorme bolsa e mostrou que lá dentro estavam, desde sempre, minhas Roupas de Ir Para Casa. Uma enfermeira veio e retirou os aparatos da terapia intravenosa. Eu me senti livre, mesmo ainda tendo de carregar o cilindro de oxigênio para todo lado. Entrei no banheiro, tomei meu primeiro banho em uma semana e me vesti. Quando saí, estava tão cansada que tive de deitar para recuperar o fôlego.
— Você quer ver o Joseph? — minha mãe perguntou.
— Pode ser — respondi, após alguns instantes.
Eu me levantei e me transferi para uma das cadeiras de plástico encostadas na parede, enfiando o cilindro debaixo dela. Aquilo acabou comigo.
Papai voltou com o Joseph minutos depois. O cabelo dele estava bagunçado, caindo na testa. Seu rosto se iluminou com um legítimo Sorriso Bobo à la Joseph Jonas quando me viu, e também não consegui evitar um sorriso. Joe se sentou na poltrona reclinável azul de couro falso que estava perto da minha cadeira. Ele se inclinou para a frente, se aproximando de mim, aparentemente incapaz de conter o sorriso.
Mamãe e papai nos deixaram sozinhos, o que foi meio constrangedor. Eu me esforcei para olhar nos olhos dele, embora fossem tão lindos que eram quase impossíveis de encarar.
— Estava com saudade de você — o Joseph disse.
Minha voz saiu mais baixa do que eu gostaria.
— Obrigada por não tentar me ver quando eu parecia ter saído do inferno.
— Para falar a verdade, sua aparência ainda não está lá essas coisas.
Eu ri.
— Senti saudade de você também. Só não quero que você veja… tudo isso. Só quero, tipo… Não tem importância. Não é sempre que a gente pode ter o que quer.
— Sério? — ele perguntou. — Sempre pensei que o mundo fosse uma fábrica de realização de desejos.
— Acontece que não é esse o caso — falei. Ele era tão belo… Levantou a mão para pegar a minha, mas eu balancei a cabeça negativamente. — Não — falei baixinho. — Se vamos ficar juntos, tem de ser, tipo, não assim.
— Tá — ele disse.
— Bem, eu tenho boas e más notícias no campo da realização de desejos.
— Então? — falei.
— A má notícia é que, obviamente, não vamos poder ir a Amsterdã até você melhorar. Mas os Gênios vão executar a famosa magia deles quando estiver se sentindo bem o suficiente.
— Essa é a boa notícia?
— Não. A boa notícia é que, enquanto você dormia, Peter Van Houten compartilhou um pouco mais de sua mente genial conosco. Ele aproximou a mão da minha de novo, dessa vez para colocar nela uma folha bem dobrada, um papel timbrado sob o nome de Peter Van Houten, Romancista Emérito.

* * *

Não li a carta até entrar em casa e deitar na minha enorme cama vazia, sem qualquer chance de interrupção médica. Levei horas tentando decifrar a escrita inclinada e garranchosa de Van Houten.

Caro Sr. Jonas,

Acabei de receber sua correspondência eletrônica com data de 14 de abril e estou devidamente impressionado com a complexidade shakespeariana de seu drama. Todos nessa história têm uma harmatia sólida como uma rocha: a dela, estar tão doente; a sua, estar tão bem. Se ela estivesse melhor ou o senhor, mais doente, então as estrelas não estariam tão terrivelmente cruzadas, mas é da natureza das estrelas se cruzar, e nunca Shakespeare esteve tão equivocado como quando fez Cássio declarar: “A culpa, meu caro Bruto, não é de nossas estrelas / Mas de nós mesmos.” Fácil falar quando se é um nobre romano (ou Shakespeare!), mas não há qualquer escassez de culpa em meio às nossas estrelas.
Permanecendo no assunto das falhas do bom e velho William, seu texto acerca da jovem Demetria me fez recordar o soneto cinquenta e cinco do bardo, que, como o senhor deve saber, começa assim: “Nem o mármore, nem os áureos mausoléus / De reis hão de durar mais que meu verso ardente; / Mas nele brilhareis mais refulgentemente / Do que a pedra largada aos ultrajes do tempo.” (Fugindo um pouco do assunto, mas: que meretriz é o tempo. Nos fode a todos.) É um lindo poema, porém, enganoso: com certeza, nos lembramos dos versos ardentes de Shakespeare, mas o que temos em mente sobre a pessoa que ele homenageia? Nada. Temos quase certeza de que se trata de um homem; tudo mais é suposição. Shakespeare nos revelou muito pouco sobre o homem que sepultou em seu sarcófago linguístico. (Perceba também que, quando falamos de literatura, o fazemos no tempo presente. Quando falamos dos mortos, não somos tão generosos.) Não se imortaliza a perda escrevendo sobre eles. A escrita enterra, mas não ressuscita. (Declaração total e irrestrita: não sou o primeiro a fazer esta observação. Cf. o poema de MacLeish ‚Nem o mármore, nem os áureos mausoléus‚, que contém o verso heroico: “Direi que morrerás e não se lembrarão de teu passado.”)
Estou a divagar, mas eis a falha: os mortos são visíveis apenas através do terrível olho vigilante da memória. Os vivos, graças aos céus, mantêm a capacidade de surpreender e de decepcionar. Sua Demetria está viva, Jonas, e o senhor não deve impor sua vontade sobre a decisão de outrem, em particular uma decisão que foi tomada após muita ponderação. Ela deseja salvaguardá-lo da dor, e o senhor deve deixar que ela assim o faça. É possível que não ache a lógica da jovem Demetria persuasiva, mas tenho atravessado esse vale de lágrimas há mais tempo que o senhor e, do meu ponto de vista, não é ela a lunática.

Atenciosamente,
Peter Van Houten

Tinha sido mesmo escrita por ele. Lambi o dedo, umedeci o papel e a tinta borrou um pouco, e foi assim que soube que era verdadeiramente verdadeira.
— Mãe — disse.
Não falei muito alto, mas não precisava mesmo. Ela estava sempre à espera. Sua cabeça apareceu por trás da porta.
— Está tudo bem, querida?
— Podemos ligar para a Dra. Maria e perguntar se uma viagem internacional me mataria? 

Capítulo VIII

Nós tivemos uma grande Reunião da Equipe do Câncer alguns dias depois. De vez em quando, médicos, assistentes sociais, fisioterapeutas e várias outras pessoas se reuniam em volta de uma mesa enorme numa sala de reunião e debatiam a minha situação. (Não a situação do Joseph Jonas, nem a situação de Amsterdã. A situação do câncer.)
Eu me sentia um pouco melhor, acho. Dormir com o BiPAP a noite toda fazia meus pulmões parecerem quase normais, embora, pensando bem, eu não me lembrasse direito de como era a normalidade pulmonar.
Todos chegaram lá e fizeram uma grande demonstração de como aquela reunião seria totalmente focada em mim ao desligarem seus pagers e tudo mais, e então a Dra. Maria disse:
— Bem, a boa notícia é que o Falanxifor continua a controlar a evolução do tumor, mas obviamente ainda estamos vendo sérios problemas com a acumulação de líquido. Então, a questão é: como devemos proceder?
E aí ela simplesmente olhou para mim, como se esperasse uma resposta.
— Humm — falei. — Acho que não sou a pessoa mais qualificada nesta sala para responder a essa pergunta.
Ela sorriu.
— Certo. Eu estava esperando a resposta do Dr. Simons. Dr. Simons?
Ele era outro médico de câncer de algum tipo.
— Bem, nós sabemos, pela experiência com outros pacientes, que a maioria dos tumores acaba achando um jeito de evoluir apesar do Falanxifor, mas se fosse esse o caso, veríamos o crescimento do tumor nos exames de imagem, e não foi o que vimos. Portanto, ainda não se trata disso.
Ainda, pensei.
O Dr. Simons batia na mesa com o indicador.
— O consenso aqui é que é possível que o Falanxifor esteja piorando o edema, mas nós depararíamos com problemas muito mais sérios se descontinuássemos seu uso.
A Dra. Maria acrescentou:
— Não conhecemos os efeitos reais do Falanxifor após muitos anos de uso. Pouquíssimas pessoas vêm se tratando com ele a mesma quantidade de tempo que você.
— Então não vamos fazer nada?
— Vamos continuar com esse procedimento — a Dra. Maria disse —, mas precisaremos nos esforçar mais para evitar a piora do edema.
Fiquei meio enjoada por algum motivo que não sei qual, como se fosse vomitar. Eu odiava as Reuniões da Equipe do Câncer, em geral, mas odiei essa especialmente.
— Seu câncer não vai sumir daí, Demetria. Mas já vimos pessoas viverem com o mesmo nível de penetração tumoral por muito tempo.
(Eu não perguntei o que constituía o “muito tempo”. Já havia cometido este erro antes.)
— Sei que, por ter acabado de sair da UTI, a sensação é outra, mas esse líquido é, pelo menos por enquanto, administrável — ela concluiu.
— Não dá para simplesmente eu fazer tipo um transplante ou algo assim? — perguntei.
Os lábios da Dra. Maria sumiram para dentro da boca.
— Infelizmente, você não seria considerada uma forte candidata para um transplante — ela disse.
E eu entendi: não fazia sentido desperdiçar pulmões bons em um caso perdido. Assenti com a cabeça, tentando não deixar transparecer que aquele comentário havia me magoado. Meu pai começou a chorar baixinho. Não olhei para ele, mas ninguém disse nada por um bom tempo, e então o choro dele era o único ruído sendo emitido naquela sala. Eu odiava fazê-lo sofrer. A maior parte do tempo, conseguia não me lembrar disso, mas a verdade inexorável era: eles podiam estar felizes por me ter por perto, mas eu era o alfa e o ômega no sofrimento dos meus pais.

* * *

Logo antes do Milagre, quando eu estava na UTI e parecia que ia morrer, e a mamãe ficava me dizendo que estava tudo bem, que eu poderia descansar em paz — e eu bem que tentava descansar em paz, mas meus pulmões continuavam procurando pelo ar —, a mamãe soluçou algo no peito do papai que eu preferiria não ter ouvido, e esperava que ela nunca descobrisse que eu ouvi. Ela falou: “Eu vou deixar de ser mãe.” Isso arrasou comigo.
Não consegui parar de pensar nesse episódio durante toda a Reunião da Equipe do Câncer. Não conseguia tirá-lo da cabeça, o som da voz dela quando disse a frase, como se nunca mais fosse ficar bem de novo, o que provavelmente aconteceria.

* * *

Enfim, acabamos resolvendo manter as coisas do jeito que estavam, a única diferença sendo as drenagens mais frequentes do líquido. Ao término da reunião, perguntei se poderia viajar para Amsterdã, e o Dr. Simons riu, literalmente, mas a Dra. Maria perguntou:
— Por que não?
O Simons questionou, meio hesitante:
— Por que não?!
E a Dra. Maria completou:
— É. Eu não vejo por que não. Eles têm oxigênio nos aviões, no fim das contas.
O Dr. Simons disse:
— Quer dizer que eles vão despachar um BiPAP?
E a Maria respondeu:
— Sim. Ou vão ter um lá esperando por ela.
— Colocar uma paciente, nada menos que um dos sobreviventes mais promissores do Falanxifor, a oito horas de voo da única médica intimamente familiarizada com o caso dela? É a receita para um desastre.
A Dra. Maria deu de ombros:
— Aumentaria alguns riscos — ela reconheceu, e depois virou para mim e completou:
— Mas é a vida dela.

* * *

Só que, nem tanto. No carro, na volta para casa, meus pais decidiram: eu não iria a Amsterdã a menos, e até, que houvesse um consenso entre os médicos de que seria seguro para mim.

* * *

O Joseph me ligou naquela noite depois do jantar. Eu já estava na cama — meu toque de recolher havia mudado provisoriamente para logo depois do jantar —, apoiada num zilhão de travesseiros, o Azulzinho do lado, computador no colo. Atendi falando logo:
— Má notícia.
E ele disse:
— Merda. O que aconteceu?
— Não posso ir a Amsterdã. Um dos meus médicos não acha que seja uma boa ideia.
Ele ficou calado por um instante.
— Cara — disse, por fim. — Eu deveria ter pago a viagem com o meu dinheiro. Deveria ter levado você direto dos Ossos Maneiros para Amsterdã.
— Mas aí eu provavelmente teria tido um episódio fatal de desoxigenação em Amsterdã, e meu corpo teria sido despachado de volta no compartimento de carga do avião — falei.
— É, pode ser — ele disse. — Mas, antes disso, meu gesto extremamente romântico com certeza teria levado você direto para a minha cama.
Eu ri muito, tanto que até senti dor no ponto em que o dreno torácico tinha estado.
— Você ri porque sabe que é verdade — ele disse e eu ri de novo. — É verdade, não é?!
— Provavelmente não — falei e, depois de alguns instantes, acrescentei: — Mas, nunca se sabe.
Ele gemeu, em ânsias:
— Eu vou morrer virgem — falou.
— Você é virgem? — perguntei, surpresa.
— Demetria — ele disse —, você tem uma caneta e uma folha de papel? — Respondi que tinha. — Então tá. Desenhe um círculo, por favor. — Desenhei. — Agora faça um círculo menor dentro dele. — Obedeci. — O círculo maior representa os virgens. O círculo menor é composto por jovens de dezessete anos com uma perna só.
Ri mais uma vez e argumentei que o fato de a maior parte das atividades sociais dele ocorrerem num hospital pediátrico também não ajudava muito no quesito promiscuidade. Aí falamos sobre o comentário extremamente genial de Peter Van Houten quanto à meretricidade do tempo e, mesmo eu estando na minha cama e o Joseph, no porão dele, realmente deu a impressão de que estávamos de volta àquela terceira dimensão invisível, lugar que gostei muito de visitar na companhia dele.
Depois que desliguei o telefone, minha mãe e meu pai entraram no meu quarto e, mesmo a minha cama não sendo grande o suficiente para nós três, eles se deitaram comigo, cada um de um lado, e todos assistimos ao ANTM na minha televisãozinha. A garota de quem eu não gostava, Ashley, tinha sido eliminada do programa, o que por algum motivo me deixou bastante satisfeita. Então mamãe me conectou ao BiPAP e ajeitou as cobertas em cima de mim, papai beijou minha testa, um beijo arranhado, de barba malfeita, e, por fim, fechei os olhos. Basicamente, o que o BiPAP fazia era assumir o controle da minha respiração, o que era muito incômodo, mas o grande barato era o barulho que fazia, ressoando a cada inspiração e chiando quando eu expirava.
Eu ficava pensando que aquele som parecia o de um dragão respirando ao mesmo tempo que eu, como se eu tivesse um dragão como bicho de estimação, aninhado junto a mim, e que se importava tanto comigo que até sincronizava sua respiração com a minha. Estava pensando nisso quando mergulhei num sono profundo.

* * *

Acordei tarde na manhã seguinte. Vi televisão ainda na cama, li meus e-mails e, depois de um tempo, comecei a rascunhar uma mensagem para o Peter Van Houten contando por que não conseguiria ir a Amsterdã, mas dizendo que jurava pela vida da minha mãe que nunca compartilharia qualquer informação sobre os personagens com ninguém, que eu nem queria dividir isso com ninguém, porque eu era uma pessoa incrivelmente egoísta, e que, por favor, será que ele poderia me dizer se o Homem das Tulipas Holandês é ou não um vigarista e se a mãe da Anna se casa com ele e, também, o que aconteceu com Sísifo, o hamster?
Mas não enviei. Era patético demais, até para mim.
Lá pelas três da tarde, imaginando que o Joseph já teria chegado em casa da escola, fui até o quintal e liguei para ele. Enquanto o telefone tocava me sentei na grama, que já estava bem alta e apinhada de dentes-de-leão. O balanço ainda estava lá, ervas daninhas brotando da pequena vala que eu havia criado com os pés ao me impulsionar cada vez mais alto quando era bem novinha. Lembrei do dia em que papai trouxe para casa o kit de balanço da Toys “R” Us e montou aquele aparato no quintal com a ajuda de um vizinho. Ele insistiu em se balançar primeiro para testar a resistência do brinquedo, e o troço quase quebrou todo.
O céu estava cinzento e nublado, mas não chovia ainda. Desliguei quando ouvi a voz do Joseph na saudação da caixa postal e coloquei o telefone no chão ao meu lado. Continuei olhando para o balanço, pensando que eu abriria mão de todos os dias doentes que me restavam em troca de uns poucos saudáveis. Tentei me convencer de que poderia ser pior, que o mundo não era uma fábrica de realização de desejos, que eu estava vivendo com câncer e não morrendo por causa dele, que eu não deveria deixar que ele me matasse antes da hora, e aí comecei a murmurar idiota idiota idiota idiota idiota idiota sem parar até que o som da palavra se desassociou do seu significado. Ainda estava repetindo quando ele retornou a minha ligação.
— Oi — falei.
— Demetria Lovato — ele disse.
— Oi — falei de novo.
— Você está chorando, Demetria?
— Mais ou menos.
— Por quê? — ele perguntou.
— Porque eu… eu quero ir a Amsterdã, quero que ele me diga o que acontece depois que o livro acaba, e simplesmente não quero mais essa vida, e, além disso, o céu está me deixando deprimida, e tem esse velho balanço aqui que meu pai montou para mim quando eu era criança.
— Preciso ver esse velho balanço de lágrimas imediatamente — ele disse. — Chego aí em vinte minutos.

* * *

Continuei no quintal porque minha mãe sempre ficava muito angustiada e preocupada quando eu chorava, já que eu não chorava com frequência, e sabia que ela ia querer conversar e debater se eu não deveria considerar fazer alterações nos meus remédios, e só de pensar na possibilidade dessa conversa toda fiquei com vontade de vomitar.
Não que eu tivesse uma lembrança clara e comovente de um pai saudável empurrando uma criança saudável no balanço e a criança dizendo mais alto mais alto mais alto, ou de algum outro momento metaforicamente ressonante. O balanço só estava lá, abandonado, as duas cadeirinhas, imóveis e tristes, penduradas de uma tábua acinzentada de madeira, o formato dos assentos parecendo o traço de um sorriso feito por uma criança.
Atrás de mim, ouvi o ruído da porta de correr de vidro se abrindo. Virei o corpo. Era o Joseph, com uma calça cáqui e uma camisa xadrez de manga curta. Enxuguei o rosto na manga da blusa e sorri.
— Oi — falei. Ele demorou um pouquinho para se sentar no chão ao meu lado, e fez uma careta ao aterrissar um tanto desajeitadamente de bunda.
— Oi — falou, por fim. Olhei para ele e vi que observava o quintal atrás de mim.
— Entendo o que você quer dizer — ele disse e passou o braço por cima dos meus ombros. — Aquele é um pedaço de balanço triste e maldito.
Aninhei a cabeça no ombro dele.
— Obrigada por se oferecer para vir aqui.
— Você sabe que tentar me manter a distância não vai diminuir o que eu sinto por você — ele disse.
— Talvez? — falei.
— Todos os esforços para me proteger de você serão inúteis — ele disse.
— Por quê? Por que é que você deveria sequer gostar de mim? Já não se colocou em situações difíceis assim o suficiente? — perguntei, pensando em Caroline Mathers.
O Joe não respondeu. Ele só ficou ali, me abraçando, os dedos firmes no meu braço esquerdo.
— Precisamos fazer algo a respeito desse raio de balanço — ele falou. — Vou dizer uma coisa para você: ele é o responsável por noventa por cento do problema.

* * *

Assim que me refiz, entramos e sentamos no sofá, lado a lado, o laptop metade apoiado no joelho (de mentira) dele e a outra metade, no meu.
— Quente — comentei sobre o fundo do laptop.
— Está mesmo? — Ele sorriu.
Joe acessou um site de doações chamado Grátis Sem Pegadinha e juntos redigimos um anúncio.
— Título? — ele perguntou.
— Balanço Precisa de um Lar — falei.
— Balanço Extremamente Solitário Necessita de um Lar Amoroso — ele disse.
— Balanço Solitário e Ligeiramente Pedofílico Procura Bumbuns de Crianças — falei.
Ele riu.
— É por isso.
— O quê?
— É por isso que gosto de você. Você tem ideia de como é raro encontrar uma gata que use essa versão adjetivada do substantivo pedófilo? Você está tão ocupada sendo você mesma que não faz ideia de quão absolutamente sem igual você é.
Respirei fundo pelo nariz. Nunca havia ar suficiente no mundo, mas a carência dele naquele momento estava particularmente crítica.
Escrevemos juntos o anúncio, fazendo as devidas edições às nossas ideias conforme íamos digitando. Por fim, acabamos com o seguinte texto:

Balanço Extremamente Solitário Necessita de Um Lar Amoroso

Um balanço bastante usado, mas em condições estruturalmente boas, procura um novo lar. Crie lembranças com seu filho, ou filhos, para que um dia ele, ou ela, ou eles olhem para o quintal e sintam o mesmo tipo de sentimentalismo que experimentei esta tarde. Tudo é frágil e efêmero, caro leitor, mas com este balanço seu filho conhecerá os altos e baixos da vida devagar e com segurança, e também poderá aprender a lição mais crucial de todas: não importa quão forte seja o impulso, não importa o quão alto se chegue, não será possível dar uma volta completa.
O balanço reside atualmente na Rua 83, quase esquina com a Spring Mill.

Depois disso ligamos a televisão por um tempo, mas não conseguimos achar nada que nos interessasse, então peguei o exemplar de Uma aflição imperial da mesa de cabeceira, levei o volume para a sala de estar e o Joseph Jonas leu algumas páginas para mim, enquanto mamãe, que preparava o almoço, escutava.
— “O olho de vidro da mãe da Anna virou ao contrário” — o Augustus começou.
Enquanto ele lia, me apaixonei do mesmo jeito que alguém cai no sono: gradativamente e de repente, de uma hora para outra.

* * *

Quando verifiquei meus e-mails uma hora depois, descobri que havia vários candidatos para o balanço dentre os quais poderíamos escolher. No fim, selecionamos um cara chamado Daniel Alvarez, que anexou uma foto de seus três filhos jogando videogame e, no assunto do e-mail, escreveu: Só quero que eles brinquem ao ar livre. Respondi à mensagem dizendo que poderia buscar o balanço quando bem entendesse.
O Joseph me perguntou se eu queria ir com ele à reunião do Grupo de Apoio, mas eu estava muito cansada, depois de passar um dia inteiro ocupada Tendo Câncer, por isso declinei do convite. Estávamos no sofá quando ele empurrou o corpo para cima, para se levantar, mas acabou caindo sentado de novo e me tacou um beijo na bochecha.
— Joseph! — exclamei.
— Beijo de amigo — ele disse. Empurrou o corpo para cima novamente, dessa vez permanecendo de pé, e então deu dois passos na direção da minha mãe. — É sempre um prazer vê-la — ele disse, e minha mãe abriu os braços para lhe dar um abraço, no que o Joseph se inclinou e deu um beijo na bochecha dela. E se virou para mim: — Viu? — perguntou.
Fui para a cama logo após o jantar, o BiPAP suprimindo o mundo que ficava do lado de fora do meu quarto.
E nunca mais vi o balanço.

* * *

Dormi bastante tempo, dez horas, provavelmente por causa do processo lento de recuperação, provavelmente porque o sono combate o câncer e provavelmente porque eu era uma adolescente sem hora certa para acordar. Ainda não me sentia forte o suficiente para voltar a frequentar as aulas no MCC. Quando, enfim, tive vontade de levantar, tirei a máscara do BiPAP do nariz, coloquei o cateter do oxigênio nas narinas, liguei o aparelho e tirei o laptop de debaixo da cama, onde o tinha guardado na noite anterior. Lá havia um e-mail da Lidewij Vliegenthart.

Cara Demetria,

Recebi uma mensagem dos Gênios dizendo que você virá nos visitar com Augustus Waters e sua mãe, chegando aqui no dia 4 de maio. Em apenas uma semana! Peter e eu estamos encantados e não vemos a hora de conhecê-los pessoalmente. Seu hotel, o Filosoof, fica a apenas uma rua da casa do Peter. Talvez devêssemos dar um dia para que vocês se recuperem dos efeitos do jet lag? Sendo assim, se for conveniente, nós os encontraremos na casa do Peter na manhã do dia 5 de maio, talvez às dez horas, para uma xícara de café e para que ele responda às perguntas que você quer fazer sobre o livro dele. E, depois disso, nós poderíamos talvez fazer uma visita a um museu ou à Casa de Anne Frank.

Cordialmente,
Lidewij Vliegenthart
Assistente-executiva do Sr. Peter Van Houten,
autor de Uma aflição imperial

— Mãe — falei. Ela não respondeu. — MÃE! — gritei. Nada. De novo, mais alto: — MÃE!
Ela veio correndo enrolada numa toalha cor-de-rosa velhinha, toda pingando, ligeiramente em pânico.
— O que aconteceu?
— Nada. Foi mal. Eu não sabia que você estava tomando uma chuveirada.
— Eu estava na banheira — ela disse. — Só estava… — Fechou os olhos. — Só estava tentando tomar um banho de banheira de cinco segundos. Perdão. O que está havendo?
— Você poderia ligar para os Gênios e dizer a eles que a viagem foi cancelada? Acabei de receber um e-mail da assistente do Peter Van Houten. Ela acha que vamos até lá.
Mamãe franziu os lábios e passou por mim com os olhos semicerrados.
— O quê? — perguntei.
— Não era para eu dizer nada até seu pai chegar.
— O quê? — perguntei de novo.
— A viagem está de pé — ela disse, por fim. — A Dra. Maria nos ligou ontem à noite e nos convenceu de que você precisa viver a sua…
— MÃE, EU TE AMO TANTO! — gritei.
Ela foi até a minha cama e deixou que eu a abraçasse.
Mandei um torpedo para o Joseph porque sabia que ele estava na escola:

Ainda disponível dia três de maio? :-)

Ele respondeu na mesma hora.

Está tudo indo às mil maravilhas para o meu lado.

Se ao menos eu conseguisse ficar viva por uma semana, conheceria os segredos não publicados da mãe de Anna e do Homem das Tulipas Holandês. Dei uma espiada na minha blusa, na altura do peito.
— Vocês têm de se comportar — sussurrei para meus pulmões