terça-feira, 13 de maio de 2014

Capítulo 12 - Simplesmente Demi

O pescador de Corações

SELENA: — Você vai o quê, Demi?
EU: — Você escutou, Selena. Ouviu muito bem, por sinal.
SELENA: — Sim, mas queria confirmar se ouvi direito mesmo. Então, quer dizer que vai trabalhar com crianças órfãs?
EU (corrigindo): — Meninas.
SELENA: — Como?
EU (arrancando um generoso pedaço de uma maçã verde): — Vou trabalhar com meninas órfãs, Selena. Elas vão passar duas tardes comigo durante a semana e eu vou ler para elas, contar histórias. Já separei um monte de livros para começar. Lembra quando lemos A Droga da Obediência na escola? Pois então. Resolvi começar por ele e vou traduzi-lo para o inglês enquanto leio. Legal, né?
SELENA: — Dá para parar de mastigar enquanto fala, ô sem noção?
EU: — Credo! Que estresse é esse, hein?
SELENA: — Um cara chamado Nick. Conhece?
EU (engolindo a maçã depressa): — O que o imbecil fez dessa vez? Deu em cima da minha mãe ou, pior, da vovó Sue? — Não segurei o riso.
SELENA: — Nada disso. Ele continua atrás de mim, fica me enchendo o saco, dizendo que você o dispensou e que não tem nada de mais a gente ficar.
EU: — Não foi bem uma dispensa, mas ele realmente sumiu. Para mim, foi ótimo. Agora, se você achar que não tem nada a ver...
SELENA (com o tom de voz aumentando uns decibéis): — Cala a boca, Demi! Eu não quero nada com aquele safado, cara de pau, ridículo. Você fica aí bancando a descolada, mas é porque não tem que aguentar o que eu tenho aguentado. Ele me liga quase todos os dias e fica flertando. Deve ser para eu te contar e fazer ciúmes em você.
EU: — Ou não. Vai ver que o Nick está mesmo a fim de você. Olha, Selena, por mim, tudo bem. Sério mesmo. Eu não sinto mais nada por ele e não vou ficar chateada caso você resolva ter algo com ele, tá legal?
SELENA (descontrolada): — Demetria, tem nexo isso que você está dizendo? Esse Nick é um mentiroso, um enrolador que não sabe manter a palavra. Disse que ia esperar por você, mas na primeira oportunidade caiu em tentação. E, quer saber, não sou eu quem devia estar dizendo isso, mas você mesma. Que ideia é essa de ficar empurrando o sacripantas para cima de mim, hein?
EU (com lágrimas de riso): — Sacripantas? Quem te ensinou essa palavra, hein? Seu bisavô?
SELENA: — Se você mencionar o nome do Nick outra vez, vou desligar, Demi. E também vou ficar sem te atender por um bom tempo.
EU: — Ei, tudo bem. Parei, viu?
SELENA (mais calma): — Ótimo. Agora, me explica direito esse lance com a creche.
EU: — Não é creche, Selena, é orfanato. Vou trabalhar como voluntária, porque fiquei realmente comovida com as meninas e suas histórias de vida. Já que eu só como, leio e durmo aqui na Krósvia, fazer algo produtivo vai ser, no mínimo, uma distração.
SELENA: — E como pretende despistar os paparazzi?
EU: — Não vou sair de casa. As meninas vêm me encontrar aqui.
SELENA: — Aposto que essa revolução tem um dedo do gostosão. Pode confessar.
EU: — Nem uma unha, se quer saber.
SELENA: — Talvez seja uma forma de você se mostrar como uma pessoa altruísta e, consequentemente, subir no conceito dele.
EU (indignada): — Se fosse essa a minha intenção, eu seria uma fútil.
SELENA: — Pelo visto, continua resistindo, né? Nada de admitir que gosta do Joe.
Até que eu já tinha assumido, mas só para mim. Desabafar com Selena pelo telefone, mesmo ela sendo minha melhor amiga, não estava em meus planos.
EU: — É verdade. Não tem admissão. E vamos parar por aqui, certo? Principalmente porque a conta de telefone vai chegar mordendo o bolso do meu pai.
SELENA (rindo de alívio): — Antes o dele do que o meu.

***

Na faculdade, durante as aulas do curso de Direito, eu aprendi que todas as pessoas são inocentes até que se prove o contrário. Mas, observando os rostinhos embevecidos das garotas do Lar Irmã Celeste, pus-me a questionar que tipo de ser humano é capaz de abandonar seus filhos. Sim, porque penso que existem pouquíssimas justificativas, ou melhor, só uma: a morte dos pais e a total falta de parentes próximos. Qualquer outro motivo não cola.
Elas chegaram ao castelo numa van. Vestiam o uniforme do orfanato — camisa branca, saia azul-marinho plissada, na altura do joelho, casaco da mesma cor, meias brancas e sapatos pretos. Nas costas, todas carregavam uma mochilinha.
Eram apenas dez garotas, com idades entre 6 e 10 anos. Na última hora, eu disse a tia Marieva que não precisava vir com elas. Se eu não fosse capaz de dar conta sozinha de algumas poucas crianças, como lidaria com audiências no fórum no futuro?
Fiquei um dia inteiro por conta dos preparativos. Organizei a biblioteca de modo que parecesse mais aconchegante. Irina me ajudou a escolher umas almofadas bem coloridas e fofas, que deram um ar infantil à sala.
Separei vários títulos interessantes, mas deixei o livro de Pedro Bandeira, A Droga da Obediência, meu predileto na pré-adolescência, na frente de todos. Não que eu seja nacionalista nem nada — ou só um pouco. Mas que mal tem priorizar meu país, o de nascimento mesmo?
Karenina preparou um banquete digno de chefes de Estado. Caprichou num cardápio condizente com o gosto das crianças e abusou de doces e guloseimas com zero teor de nutrientes.
Por tudo isso, meu coração só faltava transbordar no peito de tanta agitação. Eu queria que as meninas gostassem de passar o dia comigo, queria que elas se divertissem e ficassem à vontade.
Portanto, desci a escadaria da entrada do castelo parecendo um filhotinho de cachorro, ou seja, só faltei balançar o rabinho — caso tivesse um, é claro.
— Olá! — disse num tom alegre — Que bom que vocês chegaram!
As garotas sorriram timidamente, menos uma, que se manteve séria e deu um passo à frente. Logo deduzi que deveria ser uma espécie de líder, a que tinha a responsabilidade de falar pelas outras.
— Bom dia, princesa Demi. Em nome de todas nós, eu gostaria de agradecer pelo convite — disse a menina, mais parecendo uma funcionária de telemarketing do que uma criança.
— Bom dia, minha linda. E me chame só de Demi — pedi. — É mais fácil. Também gostaria de saber o nome de vocês. Mas vamos combinar uma coisa? Cada uma diz o seu. Legal assim?
Como se tivessem combinado, as meninas esperaram a líder falar primeiro.
— Eu sou Sofja. A Irmã Sonja pediu para eu tomar conta das outras. É que eu já tenho 10 anos e sou a mais velha do grupo.
— Que ótimo, Sofja! É uma responsabilidade muito grande. Parabéns.
Ela esboçou uma risada, deliciando-se com o elogio.
— Meu nome é Ekaterina — anunciou uma delas, talvez a menor de todas, com o peito estufado. — E meu aniversário está chegando. Vou fazer 7 anos no dia 8 de novembro. Vai ter bolo.
— Nossa, isso é maravilhoso! — exclamei, dando-lhe minha total atenção. Já vi que criança gosta disso. — Espero ser convidada, combinado?
— Hum-hum.
Em seguida, uma a uma, todas foram se pronunciando, não apenas revelando os nomes — alguns megadifíceis de pronunciar —, mas também complementando as apresentações com pequenos comentários sobre assuntos diversos. Achei tão divertido...
— Princesa Demi, a Irmã Catja pediu que entregássemos isto para você. — Sofja retirou da mochila um embrulho impecável, feito com papel azul-piscina e fita amarela.
Peguei o pacote de suas mãos e, com cuidado, retirei a fita adesiva que prendia as laterais do papel. Lá dentro, havia uma toalha de banho branca, com meu nome bordado em ponto cruz numa das extremidades e uma tira de renda ornamentando uma das pontas.
— Que linda! — Fiquei emocionada com o gesto carinhoso.
— Foi a Sofja que bordou — alguém contou.
— Menina, como você é prendada! — elogiei. — Eu realmente adorei.
Fiz um sinal para que elas me acompanhassem e segui ao lado das garotas em direção ao interior do castelo.
Nenhuma delas conseguiu segurar os “ahs” e “ohs”. É a reação natural de todo mundo que entra pela primeira vez num castelo de verdade, digo, com moradores ainda vivos, se é que me entendem.
Deixei que as garotas perguntassem o que quisessem e admirassem tudo. Até mesmo eu ainda me impressionava com tanta ostentação e suntuosidade. Teríamos o dia inteiro para ler histórias e, se elas achassem mais interessante ficar perambulando pelo palácio, eu não me oporia.
— Nós podemos ir à praia? — indagou uma delas, Karol, eu acho.
— Karol! — Sofja puxou-a pela camisa e fechou a cara para ela. Ela devia ter recebido mil vezes a recomendação de não permitir que as colegas perdessem o controle. Mas a pequena Karol não se intimidou.
— Nós trouxemos maiô. Colocamos na mochila, escondidos da Irmã Sonja. — Ela me olhou com a carinha mais fofa do universo, dessas que fazem gelo derreter. — Por favor...
Realmente, eu havia planejado de tudo, menos levar as garotas à praia. Em primeiro lugar, não queria me arriscar caso algumas — ou todas — não soubessem nadar e acabassem se afogando.
Depois, estava fazendo frio. E não há nada neste mundo que eu deteste mais do que água gelada em minhas costas.
— Bom, podemos combinar o seguinte... — disse, tentando ganhar tempo para elaborar uma ideia brilhante. — A gente vai à biblioteca primeiro. Quando nos cansarmos de ler, fazemos um piquenique na praia, mas sem usar roupa de banho por enquanto. Legal assim?
Minha proposta foi aceita com entusiasmo.
Para quem não vivia rodeada por crianças, eu até que levava jeito. Talvez trocasse de curso assim que voltasse para o Brasil. Pedagogia era uma boa, né? Ou psicologia, quem sabe?
Brincadeirinha.
Eu sabia que os livros não me decepcionariam. Por quase três horas, ficamos mergulhadas em páginas e mais páginas de ficção. Pedro Bandeira fez o maior sucesso com o grupo Os Karas, mas só com as mais velhas. As menores acabaram escolhendo histórias mais infantis e também se deixaram levar pelo mundo da imaginação.
Gosto de ler desde pequena, graças ao estímulo e ao exemplo de minha mãe. Ela sempre foi uma leitora frenética e nunca negou sequer um livro para mim. Na verdade, tomei gosto pela coisa com as revistinhas da Turma da Mônica. E não parei mais desde então.
Agora imagino como deve ser motivo de orgulho para um adulto constatar que seu filho aprecia os livros, pois eu estava me sentindo assim: orgulhosa. E olhe que eu não tinha mérito nenhum pela curiosidade literária daquelas meninas.
Karenina entrou com o lanche, depois voltou para buscar o que restara e, nas duas vezes, encontrou todas elas esparramadas pelos tapetes e almofadas, concentradíssimas em suas histórias.
Ela apenas piscou para mim e saiu toda satisfeita, também com sua dose própria de orgulho no olhar. Quando chegasse a hora de voltar para Belo Horizonte, uma parte de meu coração ficaria para trás. Digo isso sem querer ser piegas nem sentimental demais. O fato é que me apeguei às pessoas. Karenina, Irina, tia Marieva, meus primos, as meninas do orfanato — de quem eu queria cuidar, proteger, dar carinho —, meu pai... E era melhor eu nem colocar Joseph nesse grupo, se não aí é que a coisa ficaria feia mesmo.
E eu que achava que sentiria falta de Nick por ficar seis meses na Krósvia. Era até covardia comparar isso com o que eu sentiria quando deixasse Joe para trás.
— Demi, você deixa a gente ir para a praia agora? Hein?
Devanear perto de crianças não é legal. Elas não esperam a gente voltar a raciocinar.
— Podemos, Demi?
— Claro que a Demi vai deixar, não é, princesa?
Dei um pulo. Apesar de todos os rostos terem se mexido automaticamente pela manifestação de uma voz masculina naquele ambiente dominado por garotas, eu me mantive na mesma posição, ou seja, de costas para a porta e impossibilitada de verificar quem entrava e saía na biblioteca. Não que eu precisasse olhar, diga-se de passagem, pois sabia exatamente quem era o dono da voz mais profunda e sexy da face da Terra.
Por que Joe tinha que aparecer para complicar um dia tão bom? E como assim, me chamar de princesa? Ridículo.
Ainda sem me mover, respondi calmamente — se é que dava para ficar calma naquela situação —, como uma professora das mais pacientes:
— Se vocês estiverem mesmo cansadas de ler por hoje, não vejo nenhum problema em levá-las à praia. Mas não vamos nadar, certo? E só vamos sair depois de guardarmos os livros.
Rapidamente, as meninas deram conta de organizar a sala. Quer motivação melhor que a promessa de um passeio ao ar livre na praia particular do Palácio Sorvinski?
Durante todo o momento de arrumação, senti os olhos de Joe me observando. Ele ficou parado na porta, com um ombro encostado de maneira despojada no batente, de olho em tudo, ou melhor, em mim. Claro que primeiro cumprimentou as meninas e fez um gesto rápido com a cabeça em minha direção, mas nem se preocupou em nos ajudar, nem disse nada. Só ficou lá, com aquele olhar de lince, avaliando meus movimentos, como um encarregado de turma numa fábrica.
— Precisa de alguma coisa? — indaguei, a personificação da indiferença. Pura fachada.
— Nada, não — disse, todo confortável. — Só estou esperando vocês para o passeio. Vou acompanhá-las.
Deu para perceber o tom? “Vou acompanhá-las” e não: “Posso acompanhá-las?”. É muita confiança, fala sério.
— Não precisa. Vamos fazer um programa feminino, não é, garotas?
— Ah... Mas ele pode ir, se quiser — falou Karol, meio enfeitiçada por Joseph. E quem é que não ficaria? Até uma garotinha de 7 anos.
— Obrigado pelo convite, lindinha — agradeceu, charmoso. — Porque, se dependesse dessa princesa aqui, eu ficaria sozinho, sem nada para fazer.
Encarei-o com fúria. Princesa era a vovozinha. Bom, eu também era, mas não precisava ficar lembrando disso toda hora.
— Você não tem que trabalhar? — questionei. Sim, pois, de acordo com Nome de Cachorro, Joseph já tinha perdido tempo demais comigo.
Ele levantou o punho da jaqueta — a já mencionada, de couro, preta — e checou o horário no relógio de atleta. Sei disso porque esse tipo de relógio é... bom... Ah, sei disso porque sei.
— Trabalhei o suficiente por hoje. Mereço uma tarde relaxante. Concordam, meninas?
— Siiiiim!
Ai, Senhor. Vencida por dez pirralhas que passaram o dia comigo e deveriam estar do meu lado. O que um homem bonito faz com o cérebro das mulheres? Congela?
— O que vocês acham de a gente pescar? — sugeriu Joe, todo empolgado. — Conheço um lugar superlegal.
— Como assim, pescar? — guinchei, de um jeito nada atraente.
— Bom, a gente usa vara, anzol e isca e joga na água. — Joe cruzou os braços no peito e plantou no rosto uma expressão bem safada. — Se o peixe for fisgado, significa que a gente pescou. Entendeu agora?
Ele estava zoando com minha cara. Que sujeitinho mais irritante! Ou ele se achava muito engraçado, ou sabia que me afetava. Senti o sangue subir para minha face, rompendo o restante de autocontrole que eu ainda possuía.
— Nossa! Essa piada foi hilária. Viu como eu ri? — ironizei. — Agora, vamos, meninas, senão fica tarde.
— Demi, eu estou falando sério. Quero levá-las para pescar. O lago da Caverna do Pirata é um lugar excelente para pescaria. Qual é o problema?
Pus as mãos da cintura e empinei o nariz.
— O problema, Joseph, é que não dá para ir a pé até a Caverna do Pirata. E também não temos o equipamento adequado para essa atividade.
Ele não se deixou vencer. Como aspirante a advogada, meu poder de persuasão ia de mal a pior.
— As meninas chegaram aqui de quê? Vi uma van parada no estacionamento. Imagino que tenha trazido as garotas. — Então, ele andou até parar bem perto de mim e completou: — E o castelo tem um depósito cheio de apetrechos de pescaria. Podemos até escolher. E agora? Mais alguma desculpa?
A derrotada na discussão acabou sendo eu. O que mais eu poderia alegar? Não, Joseph, não vamos com você porque quase morro quando estamos juntos. Ou então eu poderia dizer também: É melhor não sairmos juntos mais porque eu mal consigo respirar perto de você.
Murchei os ombros, sentindo-me diminuída. Em compensação, as crianças ficaram em êxtase. Dispararam um falatório em krosvi e rodearam Joseph, resolvendo deliberadamente que a companhia dele gerava muito mais diversão do que a minha.
Olhei para minhas roupas. Não eram adequadas para uma pescaria. Afinal, um conjunto de plush confortável foi feito para, no máximo, uma caminhada com pouco suor.
Joe, percebendo minha hesitação, questionou:
— O que houve agora?
— Nem as garotas nem eu estamos vestidas para a ocasião.
Com a paciência por um fio, Joe passou a mão pelos cabelos e suspirou:
— Demi, pelo amor de Deus, qualquer roupa serve. Vamos ficar sentados na beira do lago, com as varas estendidas sobre a água. Não estamossaindo para mergulhar. Deixa de fazer drama.
Pronto. Agora ele tinha mexido com meu orgulho.
— Tudo bem. — Virei as palmas das mãos na direção de Joe e baixei a guarda. — Mas vamos depressa, antes que fique muito tarde.
Não preciso nem comentar que o sorriso que ele me lançou fez minhas pernas amolecerem e meu coração mudar de ritmo. Não preciso, embora não me canse de contar.
— Os peixes desse lago não são ornamentais?
— Não se tiverem mais de 30 centímetros. E aqui a maioria tem.
Não gosto muito de pescar porque morro de pena dos peixes. Odeio ver o anzol agarrado na boca dos bichos, o que deve causar uma dor horripilante. Mesmo quando a pescaria é do tipo “pesca e solta”, fico imaginando a sensação de ter a boca furada e ser largado de volta na água. Mas as meninas estavam achando o máximo.
Cada uma ganhou uma vara e se ajeitou em torno do lago da caverna, repetindo tudo o que Joe havia explicado a elas sobre pescaria. Graças aos céus, o trajeto até a Caverna do Pirata fora tranquilo. Depois das primeiras semanas falando da princesa declarada da Krósvia, os jornalistas começaram a se dispersar e meu pai manteve as medidas de segurança só por garantia. Está certo que eu ainda não tinha permissão para ir e vir por conta própria, mas só o fato de poder entrar numa van sem Zlafer e Boris já era um imenso progresso.
Achei prudente avisar tia Marieva antes de nos aventurarmos fora dos limites do castelo, mas ela concordou que fôssemos passear, especialmente porque Joe iria junto. Ele aproveitou o percurso para contar a história do pirata Barba Longa para as garotas e elas ficaram tão ou mais impressionadas do que eu. Pena que Joseph não havia levado a moeda antiga para dar um susto nelas, como havia feito comigo.
Sentada numa pedra, meio longe de todo mundo, como boa observadora que sou, fiquei analisando a situação, tentando ser a mais imparcial possível. Joe era mesmo um cara diferente. Além de todas as características que já contei e repeti não sei quantas vezes, ele também sabia lidar com crianças. Na maior paciência, ele ensinou como segurar a vara e lançar o anzol até mesmo para as menores. Quando uma delas errava, Joseph a encorajava a tentar de novo. Ele evitava falar em krosvi para não me excluir, mas a afinidade que criou com as meninas levou-o a acabar se comunicando na língua materna deles, um ato inconsciente.
Tanta observação me deu sono. Eu acabei deitada sobre a pedra e nem vi quando cochilei. Só sei que tudo começou a perder o foco e as vozes foram ficando abafadas e distantes. Fui sugada por Morfeu.
— Você não vai se aproveitar de mim.
Os pingos de água fria e aquela voz de general me libertaram de meu sonho recorrente. Já me disseram que podemos sonhar uma história inteira durante um sono de 30 segundos. E foi justamente isso o que aconteceu comigo. Nem bem fechei os olhos, todo aquele drama de vestido amarelo, ventania, cabelos revoltos e olhares perdidos passou como um filme em minha cabeça. Esse enredo ainda era um mistério para mim.
— O quê? — ofeguei, assustada.
— Pensa que vai ficar numa boa, dormindo por aí, enquanto tomo conta de todas as meninas?
— As meninas? — Meu susto se elevou ao cubo. — O que houve?
Com um pulo, já estava de pé. Joe começou a rir de um jeito gostoso, relaxado. Então, esticou o braço e tirou uma mecha de cabelo de meu rosto, ajeitando-a atrás da orelha. A sensação foi a mesma de ter sido eletrocutada numa cadeira elétrica.
— Calma, estou brincando. Não aconteceu nada. As meninas continuam bem ali. — Ele apontou para elas, mas continuou olhando diretamente em meus olhos. Temi que eles revelassem meu segredo mais bem guardado.
— Está na hora de voltar?
— Não. Está na hora de você tentar.
Não entendi, de verdade. Tentar o quê? Falar krosvi? Pilotar a moto dele? Beijá-lo?
Joe pegou minha mão e me puxou consigo.
— Você agora vai pescar.
Retirei a mão e empaquei.
— Não. De jeito nenhum. Não tenho vocação para torturadora de animais. Já é bem difícil para mim ver vocês fazerem isso.
— Demi, não estamos torturando nada. É só uma pescaria. Vem. Eu te ajudo.
Com a mão mais uma vez capturada, deixei Joe me arrastar até a beirada do lago. Olhei para as garotas com cara de “socorro”, mas elas só riram de mim e nenhuma tomou meu partido.
Traidoras.
— Joe, é sério, me deixe fora dessa. Além de dó, eu tenho nojo de peixe, morto ou vivo.
Ele nem ligou. Limitou-se a me repassar as regras básicas, fazendo os gestos certos de modo que eu o imitasse.
— Pensei que bastasse lançar a isca na água e esperar o peixe fisgar, se fisgar — comentei, esforçando-me para copiar o que Joe fazia. — Em Minas Gerais, o estado onde moro, as pessoas têm o costume de ir a pesque-pagues. Geralmente, são sítios ou chácaras com lagoas e a gente tem que pagar para pescar. Se quiser, pode levar o peixe pescado para casa ou devolvê-lo à água.
— E o que isso tem de emocionante? — Joseph questionou.
— Absolutamente nada. — Eu ri. — É isso o que estou tentando dizer.
— Não, senhora. Deve ser chato pescar peixes confinados, mas esse não é nosso caso.
Olhei para o lago.
— Não?
— Demi, esse lago é formado pelo mar. Se você mergulhar nele, vai enxergar por onde a água do oceano entra.
— Sério?! — exclamei. — Que bacana!
Joe balançou a cabeça, me desaprovando como se eu fosse uma tapada de carteirinha. E eu devia ser mesmo, porque a linha de meu anzol não ficava reta nem por decreto, enquanto a dele estava esticadinha.
— Demi, você precisa fazer o movimento certo com os braços.
— Eu estou fazendo.
— Não está, não. Precisa fazer assim.
Em questão de milésimos de segundo, Joseph largou seu anzol no chão e passou por trás de mim. Antes que eu tivesse tempo de raciocinar sobre o que acontecia ali, ele encostou o corpo no meu e fechou sua mão direita sobre a minha. Meu corpo inteiro se enrijeceu com o contato e eu perdi a noção do que estava fazendo.
— Levante o braço até aqui.
Com a boca a centímetros de minha orelha, seu comando soou como um mantra inebriante. Tive que lutar para não fechar os olhos e deixar meu corpo se recostar no dele. De repente, eu me tornei ultrassensível. Podia sentir todos os músculos dele e também as batidas de seu coração, além do odor masculino que exalava. Tortura pura e lenta.
— Depois, lance a linha desse jeito.
Que linha? E eu lá ligava para aqueles movimentos de pesca idiotas? Se bem que era por causa deles que Joseph estava grudado em mim. Acho que vou amar pescarias para sempre.
Agora, sua barba por fazer fazia cócegas em minha nuca. E todas as partes de meu torturado corpo começaram a dar sinal de vida. Fui ficando lânguida e muito empolgada, a ponto de quase perder a rigidez nas pernas e cair de cara no lago.
Será que Joseph tinha ideia do que estava fazendo comigo? Já não era fácil quando não havia aproximação entre nós... Mas ele não se afastou. Parecia tão entusiasmado como eu, preso naquele joguinho safado de sedução. Mais antigo e barato, impossível.
— Não deu certo — sussurrei, quase inaudível.
— Não. Vamos tentar de novo. — Com uma voz rouca, Joseph pronunciou pausadamente cada uma daquelas palavras, prolongando ao máximo aquele momento.
Só que, em vez de explicar os movimentos novamente, ele fez com que meus dedos abrissem e soltassem o anzol, que caiu no chão de qualquer jeito. Acariciou minha nuca com o nariz, abrindo espaço entre meus cabelos soltos, enquanto subia as mãos lentamente por meus braços, só deixando-os para segurar minha cintura. A respiração dele se tornou mais difícil e pesada e dessa vez eu fechei os olhos para potencializar a sensação de seu toque. Apesar de minha pele estar quase toda coberta pelas roupas, sentia meu corpo queimar onde Joe tocava. Eu estava prestes a entrar em combustão na frente das dez meninas do Lar Irmã Celeste. Se aquilo não era loucura, não sei mais o que seria. Mesmo assim, eu só queria estar ali e em mais nenhum outro lugar no mundo.
E pelo jeito Joe queria o mesmo. Não havia dúvidas. Ele estava se aproveitando de mim, mas de uma forma boa. Seu nariz manteve o movimento através de meus cabelos, o que me deixou toda arrepiada.
Já fora beijada antes, é claro, muitas vezes até — ok, não tanto. Mas nenhum dos beijos que recebera chegou a ser tão excitante e sedutor quanto o toque sutil de Joseph. A frase “subindo pelas paredes” tinha acabado de ganhar uma nova versão.
— Demi — ele sussurrou em meu ouvido, roçando os lábios em minha orelha, tão de leve que eu poderia ter apenas imaginado. — Eu...
— Ai, pesquei um! — alguém gritou.
Justamente na hora que as coisas estavam ficando quentes, muito quentes mesmo. Entretanto, elas ficaram frias num piscar de olhos, pois o susto fez Joe se deslocar para trás numa rapidez... Sobraram apenas o vácuo e uma sensação estranha de vazio. Meu corpo queria o dele de volta.
Só fui capaz de perceber de onde e por que o grito havia surgido quando meu cérebro tomou as rédeas da situação. Assim que voltei a pensar racionalmente, enxerguei Karol esforçando-se para puxar da água um peixe muito bem fisgado.
Como se nada tivesse acontecido momentos antes, Joe agiu como herói, dando a força necessária para que a menina conseguisse fazer o peixe emergir. E, com a ajuda dele, isso não demorou a acontecer. Em poucos segundos, o animal surgiu chacoalhando-se todo, lutando pela vida prestes a ir embora.
As garotas comemoraram com palmas.
Estavam maravilhadas com o resultado da atividade que entrara na agenda do dia de maneira inusitada e tornara-se a sensação do passeio. Mesmo não tendo sido ideia minha, a pescaria completou a felicidade delas e só por isso eu já era grata a Joseph.
Por outro lado, meu corpo ainda tentava processar o fato de Joe e eu termos nos deixado levar pelo impulso, o que poderia ter tomado proporções medonhas caso tivéssemos sido flagrados pelas meninas. E eu não me perdoava por ter sido tão descuidada e tão óbvia. Minha aceitação às suas carícias pode ter revelado a ele o que eu sinto. Como eu sabia que o sentimento não era compartilhado — se fosse, ele não estaria com Nome de Cachorro —, tudo o que eu podia fazer era, além de lamentar, fingir que estavatranquila em relação ao fato. Se Joe quisesse se explicar e pedir desculpas, eu daria de ombros e perguntaria: “Está se desculpando por quê?”.
Eu não aguentaria ouvi-lo dizer que nosso “momento” havia sido um erro e que não se repetiria mais, nem que ele tinha sido levado pelo calor do momento etc. Preferia seu silêncio a seu remorso.
— Demi, venha ver o peixe que eu pesquei!
A vozinha excitada da pequena Karol me tirou de minha autorreflexão. Olhei para ela com um sorriso amarelo para disfarçar a angústia.
Ignorei Joe deliberadamente.
— Puxa, que peixão! — E, realmente, era um dos grandes. — O que quer fazer com ele? Devolver para o lago ou levar para a Karenina preparar um assado?
Não sei de onde tirei tanta tranquilidade para falar sem gaguejar. Acho que foi o receio de me expor ainda mais.
— Posso mesmo ficar com ele? — Karol indagou, com uma súplica muito mal encoberta. — Queria tirar uma foto para mostrar para minhas amigas que não vieram hoje.
— Se o problema é esse, então está resolvido — Joe disse, muito à vontade por sinal. — Estou com meu celular e ele tem uma câmera excelente.
— Então eu quero uma foto que nem as dos pescadores de verdade!
Segurando o peixe pela cauda, Karol posou para a máquina. Enquanto eu torcia o nariz de nojo do bicho, ela e as outras meninas se divertiram, encorajadas por um Joe alegre e despreocupado.
Por fim, acabei me rendendo e me juntei ao grupo para uma foto coletiva. Só não consegui encarar a câmera. Como poderia sorrir para o fotógrafo se eu mal conseguia olhar para ele?

 ~*~

Consegui postar hoje hahaha estou morta de cansaço. Não desejo a ninguém faculdade em tempo integral ;P kkkkk

Sobre os cometários: Obrigada por comentarem! E Gente, eu não queria ficar tanto tempo sem postar, mas as vezes a vida pessoal fica um caos... :/ Eu disse que não ia abandonar o blog, mas também disse que não ia poder postar regularmente. Não garanto que postarei toda semana, mas vou tentar. E não garanto ficar, sei lá, um mês sem postar nada, mas vou fazer o possível para isso não acontecer. Não irei fazer promessas que não poderei cumprir, porque eu sei que serão vocês a ficarem decepcionadas. Tudo bem? Falei quinhentas mil vezes, mas só pra não perder o costume: "Vocês só precisam ter paciência" <3 E ficar com raiva de mim pela demora faz parte kkkk

Amo vocês, amores.
Yumi H. 


Ps: Esqueci de falar com vocês, MAS EU FINALMENTE REALIZEI MEU SONHO E FUI NO SHOW DA DEMI AQUI EM BRASÍLIA ksjhflksjdafhalksjdfhaksjdhf Melhor dia da minha vida!!! <33333

(vídeo gravado por mim aksjfhalskdjf)

domingo, 11 de maio de 2014

Capítulo 11 - Simplesmente Demi

Aspirante a Lady Di

Que saudade do anonimato! Ser uma pessoa pública implica privação — e invasão — de privacidade, além de desestruturar uma vida das mais pacatas, como a minha. Comecei a ter ideia da enormidade da situação no dia seguinte à cerimônia de apresentação. Eu bem achando que poderia dar uma volta pelo Centro de Perla com mamãe, vovó e Selena, como se fosse uma turista feliz, mas Andrej e Irina cortaram meu barato assim que mencionei a possibilidade.
Meu pai perguntou se eu queria ser atropelada pelas câmeras dos jornalistas ou pisoteada pelos curiosos de plantão, que não desgrudavam da entrada do Palácio Sorvinski desde a noite anterior. A guarda do castelo teve que ser reforçada com mais nem sei quantos homens fardados e eu fui terminantemente proibida de sair desacompanhada. Por desacompanhada, entenda-se sem um ou dois guarda-costas truculentos.
Preciso confessar um fato por demais vergonhoso. A gente não deve rir da desgraça alheia, pois há sempre um imenso risco de que ela recaia sobre nós mesmos. É o que está acontecendo comigo. Nunca critiquei tanto uma pessoa como fiz ao ver a Xuxa, numa foto feita por um paparazzo, passeando por um shopping no Rio de Janeiro com seu yorkshire vaporoso e dois armários ambulantes ao lado dela. Pois é. O fato vergonhoso é que agora eu tenho meus próprios armários: Zlafer e Boris.
Resultado dessa medida disparatada: decidi que era melhor ficar em casa, na segurança de quatro paredes, do que sair e ser seguida por duas sombras gigantescas, de terno preto e óculos escuros. Nem se eu me chamasse Stefani Joanne Angelina Germanotta, vulgo Lady Gaga, eu desejaria isso para mim.
Mas, tadinhos, até que Zlafer e Boris eram gente boa. Nunca falavam nada, não me interrompiam jamais. Só ficavam parados, como duas estátuas. O problema eram o tamanho e a envergadura deles. Imaginem aqueles lutadores de MMA, as Artes Marciais Mistas. Então... É bem sinistro.
Sendo assim, em vez de passar dias agradáveis ao lado de mamãe, vovó e Selena, andando despreocupadamente pelas ruas da capital, tive que me contentar com as imediações do castelo. Ou seja, foi um tédio só, até porque as três puderam aproveitar a liberdade delas, enquanto eu fiquei de castigo dentro de casa.
E tem gente que gosta de ser famosa.
Não demorou nada e minhas três convidadas brasileiras já estavam de partida. Por pouco não entrei em depressão, porque foi muito ruim vê-las indo embora e me deixando para trás. Quase desejei nunca ter sido encontrada por meu pai. Eu disse quase.
Acabei estabelecendo uma rotina bem caseira: acordar por volta das 9h, levantar às 9h30, tomar café na cozinha com Karenina, caminhar na praia com Bruce, dar um mergulho e pegar um pouco de sol — quando o tempo ajudava, porque, como já disse, estávamos no outono —, voltar para casa, tomar um banho, almoçar com Irina e, às vezes, com Andrej, me enfiar na biblioteca e passar as demais horas do dia entocada, vivendo a vida através dos livros.
Havia dias um pouco diferentes. Eram aqueles em que eu me arriscava a cozinhar um pouco com Karenina. Da última vez, ensinei-a a fazer brigadeiro. Acredita que ela não conhecia esse doce tão popular no Brasil?
Eu ainda estava devendo a feijoada para tia Marieva. Mas nossas agendas — quero dizer, a dela, a de meu pai e a de Marcus — cismavam em não combinar.
Pelo menos eu recebia algumas visitas, especialmente de meus primos com cara de anjo — só cara mesmo. Mas a companhia deles era deliciosa. A gente se divertia horrores fazendo brincadeiras pelos incontáveis aposentos do castelo. Eu nem sabia que gostava tanto de crianças.
Outro dia, Giovana me fez passar horas debaixo de uma cabana improvisada, feita com lençóis e pregadores de roupa, lendo para ela um livro com apenas a luz de uma lanterna. Acabei dormindo sem terminar a história. Já Luce gostava de conversar e fazer perguntas, algumas um tanto constrangedoras, como querer saber com quantos anos dei meu primeiro beijo e em quem foi. Menti dizendo que foi aos 15 anos, mas, na verdade, meu primeiro beijo rolou aos 13, com um colega de escola chamado Victor. Detestei, principalmente porque ele usava aparelho e eu fiquei com um pouco de nojo, com medo de ter algum resto de comida agarrado nele. Eu sei. É nojento da minha parte, mas foi esse meu pensamento na hora. Fazer o quê?
Agora, Luka era um caso à parte. Ele era esperto, agitado, inteligente. Era necessária muita energia para acompanhar as peripécias do garoto. Até o Bruce se rendeu numa dessas ocasiões e desistiu de nos acompanhar numa ida à praia.
Claro. O menino não deu sossego para o pobre cachorro.
No fim de dias como esses, era gostoso contar com a companhia de tia Marieva. Era sempre ela quem buscava os meninos e aproveitávamos esse tempo para nos conhecer melhor. Ela era tão jovem e engajada! Eu adorava ouvir suas histórias, principalmente sobre as meninas do orfanato onde ela trabalhava como voluntária.
— Você podia ir lá conhecer, Demi — ela me convidou, enquanto tomávamos um maravilhoso café da tarde no terraço.
As crianças perambulavam por perto e, de vez em quando, beliscavam alguma coisa.
— Jura? Nossa, tia, eu adoraria! Não aguento mais ficar presa aqui, com aqueles dois trogloditas atrás de mim. Uma visita ao orfanato seria maravilhosa.
— Então, a gente pode combinar isso direito. É claro que preciso falar com seu pai e ajeitar tudo, de modo que você não corra riscos — disse ela, prevenida. — E podemos fazer isso quanto antes. As meninas gostam tanto de visitantes, especialmente de moças bonitas como você. E famosas. Pensa que elas não sabem?
Sorri. Mas estava com dor na consciência. Tia Marieva estava ali, toda solidária e dedicada, mesmo cheia de trabalhos e compromissos profissionais e pessoais. Eu sempre fui meio indiferente, não daquelas que chutam mendigos na praça, mas entre participar de ações solidárias e dar dinheiro, normalmente optava pela segunda alternativa. Conhecer o orfanato feminino poderia significar um recomeço.
— Eu topo! Mas acho melhor você falar com o Andrej. Ele anda muito protetor ultimamente.
— Com razão, não é?
E foi assim que nasceu minha nova missão.
Do nada, eu deixei de ser expectadora para me tornar gente que faz. Ou que tenta, pelo menos. Meu pai achou a ideia excelente. Encaixava-se direitinho com o futuro que ele almejava para mim: eu definitivamente instalada na Krósvia, realizando atividades condizentes com o papel de princesa, sendo sua representante na comunidade. Através de seus sonhos, eu me via vestida com um tailleur cor de pérola e coque no cabelo, quase uma Lady Di, com uma única diferença: o comprimento dos cabelos. Ah não, duas: não existia um príncipe em minha vida.
Mas Andrej quis articular tudinho do jeito dele. Quem disse que ele não poderia se tornar um pai impositivo? Foi assim:
1º: Nada de chamar atenção. A visita não seria divulgada para não alarmar a imprensa, e todos os envolvidos — inclusive as freiras do orfanato — deveriam manter a máxima discrição.
Credo, pai, duvidar de irmãs de caridade? Essa foi demais.
2º: Jorgensen não seria o motorista da rodada, porque já estava ficando visado. Tia Marieva também não poderia me apanhar no castelo, pois pareceria suspeito. Achei essa lógica um pouco estranha. Tia Marieva ia muito ao palácio. Sua presença não levantaria suspeitas. Mas, enfim...
3º: Joe me levaria, mas não na BMW S1000RR, por razões que nem vou me dar o trabalho de explicar. O fato de ele ser figurinha constante no castelo lhe dava a invisibilidade necessária para não chamar atenção. Portanto ele, eu e vidros fumês éramos a equação perfeita.
Pena que, na prática, a continha maluca de meu pai tivesse um denominador fora do lugar.
No dia marcado para a visita ao Lar Irmã Celeste — sim, Celeste; a freira que dera nome ao orfanato não era krosviana —, Joseph apareceu de carro. Não entendo muito de marcas, mas sei reconhecer uma bela máquina. Joe surgiu num Audi R8 (li o nome na traseira) prateado, com óculos escuros Ray Ban no rosto e uma Laika muito empertigada no banco do carona. Quase não acreditei no que meus olhos estavam enxergando. Desejei nunca ter combinado nada com tia Marieva.
Respirei fundo umas cinco vezes para não perder meu autocontrole. Já era difícil ter consciência de que Nome de Cachorro vivia no mesmo planeta que eu, imagine dividir espaço com ela num carro apertado por quase duas horas (só de ida), sem mencionar o tempo que passaríamos no orfanato. Eu não merecia aquele castigo. Em quem eu deveria colocar a culpa por aquela mocreia estar estragando meu dia? Em Joe, no destino, em Deus?
Que saco!
Joseph saiu do carro e deu um sorriso torto. Fiquei sem ar ao vê-lo de jeans preto surrado, camiseta preta de malha, casaco de couro — preto — e coturno e — adivinhem a cor? Aquilo não era um homem. Estava mais perto de um deus grego, ou que tal um galã de cinema meio bad boy. Hum...
Nossos olhares se encontraram de um modo caloroso e, mesmo que as lentes dos óculos estivessem bloqueando a visão dos olhos dele, pude sentir a atração.
— O que é isso? — ele perguntou, desviando o olhar para o pacote que eu levava nos braços.
Custei a raciocinar e entender a que ele havia se referido. Dei pela coisa uns bons segundos depois da pergunta.
— Brigadeiro — esclareci sucintamente. — Estou levando para as meninas do orfanato.
Joe fungou em cima do embrulho para sentir melhor o aroma do doce. Mas foi o cheiro dele que prevaleceu. Para mim, pelo menos.
— Hummm... Parece bom — observou. — Posso provar?
E, antes que eu respondesse, ele já estava enfiando a mão no embrulho. Sem pensar, dei um tapa nela, como as mães fazem com as crianças gulosas que não conseguem esperar a hora dos parabéns para comer as guloseimas.
Acho que minha atitude irritou Laika profundamente, pois ela abriu a porta do carro e saiu de lá pisando duro.
— Ei, amor, anda logo! Esqueceu que não temos o dia todo?
Para tudo! Em primeiro lugar, quem mandou a lambisgoia nos acompanhar? Ela que ficasse em casa tomando martíni com cereja numa taça de cristal. Ou fosse trabalhar, já que era uma grande executiva. Em segundo, como assim amor? Vai ser brega assim lá na casa do caralho.
Bem feito. Joe se voltou para ela, mas abriu a porta para mim. Um a zero, cachorra magrela! Acenei freneticamente para Irina e Karenina, que, zelosas como elas só, acompanhavam minha saída. No fundo, elas ficavam com pena de mim, pois sabiam como eu detestava viver presa.
Ajeitei-me no banco de trás do carro de modo que não conseguisse enxergar o rosto de Laika pelo retrovisor. Acabei focalizando a linda carinha de Joseph. Mas baixei os olhos para não provocar a garota histérica, que fez questão de segurar a mão direita de Joe enquanto ele manobrava o carro.
— Santa insegurança! — murmurei em português. Aliás, que ideia brilhante! De agora em diante eu xingaria Nome de Cachorro quanto quisesse, mas sempre em minha língua nativa. Ninguém ia nem perceber.
Mas as mãos não ficaram juntas por muito tempo. Joe soltou a dele para mexer no aparelho de som e sintonizou uma música que eu conhecia da frente para trás e de trás para a frente.

Hoje eu preciso te encontrar de qualquer jeito
Nem que seja só pra te levar pra casa
Depois de um dia normal...
Hoje preciso de você
Com qualquer humor, com qualquer sorriso
Hoje só tua presença
Vai me deixar feliz
Só hoje

Ofeguei. Jota Quest era uma banda maravilhosa, eu amava e sabia todas as letras, porém, fazia um tempão que eu não escutava. Mas minha surpresa maior foi o fato de Joe conhecer o grupo e ainda ter o CD no próprio carro... O que estava acontecendo?
— Joe, que música é essa? — quis saber Laika, mas não de um jeito “surpresa agradável”. — E em que língua horrorosa o cara está cantando?
Ah, não! Agora ela tinha extrapolado. Porque tudo bem EU às vezes xingar o bendito ser que criou a língua portuguesa e sua gramática complicada. Mas eu posso, pois falo português desde que saí da barriga de minha mãe. Mas ela...
Aproximei-me do banco do motorista, agarrando o encosto da cabeça para dar impulso, e exclamei:
— Cara, você conhece o Jota Quest!
Joseph estava se divertindo. Não deu bola para meu espanto, respondendo casualmente:
— Quem não conhece? Eles são ótimos!
— Quem é Jota Quest, gente? — indagou Laika.
Ignoramos a dúvida de Nome de Cachorro.
— Faz tempo que você tem o CD deles? — perguntei, desconfiada. Tinha a impressão de que Joe só estava tentando me agradar.
— Não muito — ele deu de ombros.
— Você sabe o que a letra diz? — Essa pergunta eu fiz bem devagar.
Joe me olhou de esguelha, evitando encontrar meu olhar. Diante disso, levantei algumas hipóteses: Joe sabia. Se sabia, é porque buscara uma tradução para ela, pois não pronunciava nem “obrigado” em português. Se fora atrás da tradução, provavelmente queria entender a letra. E, se ficou sem graça com a minha pergunta, foi porque fizera tudo isso pensando em mim.
Ou não. Ele poderia muito bem gostar mesmo do Jota Quest e já ter esse CD há tempos. E também ser um cara supercurioso a ponto de traduzir todas as línguas que escutava — ou pelo menos as músicas. Mas por que então nunca comentara que curtia um conjunto musical brasileiro? Mistério...
— De onde é essa banda, Joe? — Laika guinchou. Estava na cara que ela surtaria a qualquer momento.
— Do Brasil — ele e eu respondemos juntos.
Laika fez uma careta cheia de significado, tipo “eu vou ter mesmo que matar essa garota”.
— O que diz a letra, Joe? — a doida varrida exigiu saber. Mas pela primeira vez eu estava com ela. Vamos, Joe, justifica agora?
— Sei lá — ele se esquivou, girando a chave para ligar o carro. — Como eu posso saber, Laika? Não falo português.
— Ela fala de um cara — resolvi explicar — que teve um dia ruim por um motivo não revelado, e ele diz que precisa encontrar a mulher que ele provavelmente ama para se sentir melhor, pelo menos nesse dia. A música se chama Só hoje.
Laika torceu o nariz sem a menor discrição. E ainda completou:
— Parece bem piegas.
Por outro lado, achei que Joseph ficou um pouco mais desconfortável. Para evitar faíscas assassinas em minha direção, coloquei meus óculos escuros no rosto e fingi estar concentradíssima na paisagem.
No entanto, não parei de pensar um minuto sequer em tudo o que vinha acontecendo com Joseph e comigo nos últimos tempos. Olhando em retrospecto, a análise revelou elementos bastante contraditórios.
Joe já tinha me odiado — embora não admitisse —, já tinha desconfiado de minhas intenções. Também já me levara para conhecer boa parte da região de Perla e até lugares exóticos, como a Caverna do Pirata. Já me fizera rir de seu gênio sinuoso e até me protegera. Fora sarcástico e indiferente, mas demonstrara ter senso de humor. Chegara a se emocionar, mesmo que de leve, em algumas ocasiões, como quando me contara a história de minha bisavó Catarina ou reconhecera o colar de sua mãe em meu pescoço.
Às vezes, demonstrava gostar de mim e até me admirar e me provocava o tempo todo, fosse com palavras, fosse ou atitudes. Mas, independentemente de qualquer uma dessas supracitadas posturas, ele era sempre Joe, o Joe. Aquele que não me dava folga, que me atormentava até nos sonhos e que me fazia sentir coisas que eu nunca sentira antes. Era por causa dele que eu andava com vontade de quebrar o nariz de Nome de Cachorro desde o dia em que a vira pela primeira vez.
Aliás, Nome de Cachorro era um apelido que surgira por instinto, antes mesmo de eu conhecer o caráter podre da garota. Fui motivada por um ciúme que até então desconhecia, já que nunca fora uma pessoa ciumenta.
Também fora devido a Joe que eu deixara de gostar de Nick, por quem julgara estar muito apaixonada. Mas isso tinha sido bom, afinal, o cara era um galinha. Então, como, por Deus, como ignorar a verdade se ela estivera o tempo todo estampada em minha cara? Sem medo de plagiar a fala de Charles, personagem do filme Cartas para Julieta, ao qual assisti umas 19 vezes no Telecine Pipoca, reconheci que estava completa, absurda e irrevogavelmente apaixonada por Joseph Jankowski. Bom, a fala não era bem assim, mas era quase isso.
E era a mais pura verdade. Toda vez que olhava para ele, meu corpo tremia. Quando seus olhos prendiam os meus num daqueles olhares perigosos, eu quase entrava em parafuso. Só de me lembrar da tatuagem tribal em seu tríceps esquerdo, chegava a ofegar.
Não havia um só dia em que ficasse indiferente a Joseph, mesmo no princípio, quando achava que o odiava. E o que eu ganhava com essa constatação? Tristeza. Justamente o que eu afirmara para Selena uns dias atrás, quando eu apenas conjecturava.
Afundei ainda mais no banco de trás, temendo que de repente essa paixão ficasse estampada em minha cara. Eu podia estar apaixonada, mas não admitiria essa verdade para ninguém, nem sob tortura. Já era humilhante demais gostar de um cara comprometido e que não sentia o mesmo por mim. Pior foi ter que aguentar Nome de Cachorro lá na frente, fazendo carinho na nuca de Joseph enquanto ele dirigia, conversando com ele em krosvi para me excluir de propósito. Antes eu tivesse levado meu iPod, só para ficar surda durante o trajeto.
Como coisas ruins tendem a demorar mais a passar do que as boas, achei a viagem lenta demais. No entanto, quando pensava que não chegaríamos jamais, avistei um portão de ferro fundido com uma placa ao lado, cujas palavras em krosvi pareceriam escritas em código, não fosse o nome Celeste. Esse eu não só consegui ler como reconheci. Estávamos, finalmente, no lar das meninas órfãs de Craiev.
— Demi! Que bom que chegaram!
Tia Marieva me viu de longe e se apressou para me encontrar. Trocamos um abraço caloroso, eu equilibrando o pacote de brigadeiros. Ela também cumprimentou Joe e Laika, mas foi minha mão que ela segurou e foi a mim que conduziu para dentro da casa em estilo colonial que abrigava o orfanato.
Depois que saímos do carro, fiz questão de ignorar meus dois acompanhantes. Estar apaixonada não é sinônimo de ser otária. Duas coisas eu não faria de jeito nenhum: mendigar atenção de Joseph e bater de frente com Nome de Cachorro. Eu podia sofrer, podia chorar rios de lágrimas, mas não daria esse gostinho a nenhum deles. Joe e Laika que se aguentassem.
Minha mãe sempre me avisou que homens não gostam de mulher grudenta. É diretamente proporcional: quanto mais elas agarram, mais eles se afastam. Tenho tanto pavor de me tornar uma pessoa assim que acabei distante até demais dos caras. Resultado: não sou nem um pouco fácil, mas também não tenho grandes experiências amorosas para listar.
Segui com tia Marieva até uma sala pequena, onde uma freira colava cartazes numa parede revestida de azulejos amarelos. Lembrou minha antiga escola lá em Belo Horizonte, onde estudei minha vida inteira. As freiras do colégio adoravam pregar mensagens e imagens nas paredes, deixando o ambiente, além de bonito, muito aconchegante.
A irmã, que usava um hábito claro, assim que notou nossa presença, deixou de lado o serviço e caminhou até nós com um sorriso angelical no rosto. Elas sempre têm, não é? Digo, as freiras e os sorrisos angelicais. Marca registrada.
— Irmã Sonja (lê-se Sônia), esta é a Demi, minha sobrinha. Ela veio nos fazer uma visita e conhecer as meninas do Lar.
— Claro! Acompanhei a história dela na televisão. — Como minha tia nos apresentou em inglês, a irmã de caridade deve ter presumido que eu não falava krosvi, pois respondeu na mesma língua. — Seja bem-vinda, Demi. Tenho certeza de que as meninas vão ficar alvoroçadas quando conhecerem você.
Não querendo ficar para trás nem passar por menos importante, Laika deu um pequeno passo à frente, fazendo-se notar. No entanto, ficou calada, pois queria receber a honra de ser apresentada à Irmã Sonja assim como eu fui.
Então, tia Marieva lembrou-se dos outros dois visitantes e tratou de incluí-los na conversa.
— E esta é a Laika, Irmã. Ela é filha do senador Romanov e namorada do Joe, enteado do meu irmão Andrej.
Todos se cumprimentaram, Joe mais amistoso do que a polida Laika.
— Eu trouxe uns doces para as meninas, Irmã Sonja — anunciei, estendendo o embrulho na direção dela. — Não sei se fiz bem. Elas podem comer doces?
Realmente, eu não havia pensado nisso antes.
— Claro, minha filha. Elas vão adorar. E espero que sobre um pouquinho para mim, pois o aroma está delicioso.
Irmã Sonja e tia Marieva nos guiaram pelos cômodos da casa, que estavam estranhamente vazios. Eu esperava encontrar crianças e seus barulhos, mas tudo era calmo demais. Até chegarmos a um pátio, no interior do prédio. Lá, a algazarra era geral. Meninas de várias idades corriam e brincavam pelo espaço, observadas por outras duas freiras e uma mulher “à paisana”, isto é, que não usava hábito.
A princípio, nenhuma delas notou nossa presença. A diversão parecia das boas e um parquinho colorido devia ser bem mais atraente do que cinco adultos plantados na entrada do pátio.
Até que tia Marieva bateu palmas. Isso foi suficiente para que as dezenas de pares de olhinhos se voltassem em nossa direção. Vou contar uma coisa a vocês: foi amor à primeira vista. Assim que pus meus olhos sobre aquelas garotinhas órfãs, meu coração derreteu dentro do peito. Não porque elas fossem bonitinhas — e eram mesmo. Tinham as características do povo eslavo: cabelos e pele claros, olhos variando entre verde e azul, carinhas de anjo. Mas o que me pegou de jeito foi outra coisa. É duro encarar um monte de crianças aparentemente alegres sabendo que elas não têm pai nem mãe. Dá vontade de levar todas para casa e dar tudo para elas, tudo mesmo.
Irmã Sonja fez um gesto com as mãos e, num piscar de olhos, as meninas se juntaram a seu redor, embora os olhares estivessem fixos nas figuras estranhas que quebraram a rotina delas, ou seja, Joe, Laika e eu. As outras mulheres adultas também se aproximaram e tia Marieva apresentou-as para nós, enquanto Irmã Sonja fazia um pequeno discurso em krosvi para as garotas.
Eu era a única que não estava entendendo nada. E acho que Joe percebeu meu desconforto, pois parou a meu lado e traduziu tudo o que a freira disse, que foi mais ou menos assim:
— Meninas, hoje estamos recebendo aqui na nossa casa uma pessoa muito especial. Ela se chama Demi e veio do Brasil para colorir ainda mais nosso lindo país.
Que fofo!
Uma menininha de uns 7 anos levantou a mão.
— Pois não, Aleksandra? — Joe repetiu as palavras de Irmã Sonja, em inglês e bem baixinho, com a boca quase colada à minha orelha. Mesmo perto de todas aquelas pessoas, senti minhas pernas fraquejarem. Eu estava no limite de me tornar patética.
— Eu sei quem ela é! — a menina chamada Aleksandra falou e Joe traduziu. — Eu vi na TV, lembra, Irmã Catja? Nós vimos juntas! — Ela parou um pouquinho para fazer suspense. — Ela é a princesa Demi da Krósvia.
Gritos agudos dominaram o ambiente. Não eram vaias nem exclamações de espanto, mas de reconhecimento. Subitamente, todas as garotas puseram-se a falar e a gesticular ao mesmo tempo, mas permaneceram sentadinhas no chão, muito disciplinadas.
As freiras pediram calma e tia Marieva assumiu o posto de porta-voz. Mesmo de costas, pude ouvir Laika bufar. Quem dera ela resolvesse dar meia-volta e se mandar dali! Não me importaria nem um pouco se voltasse a pé para Perla.
— Meninas, vou falar em inglês porque sei que vocês são capazes de entender. E também precisam treinar, não é verdade? — incentivou tia Marieva.
— Siiiiim — responderam elas, em coro. Na verdade foi yeeeessss.
— Muito bem. A Demi é isso mesmo, Aleksandra. Nossa princesa. Mas também é uma moça muito inteligente e legal. Ela até fez uns docinhos de chocolate para vocês.
— Oba!
— Podemos comer agora?
— Chocolate ao leite ou meio amargo?
— Quantos eu posso comer?
— Ela vai falar com a gente?
Se eu tinha achado a coletiva de imprensa no dia da cerimônia um festival de perguntas, bombardeio mesmo faziam as meninas do Lar Irmã Celeste. Só não cheguei a ficar tonta como na outra vez. Acho que estava me acostumando.
— Calma, garotas. Vocês vão ter tempo para comer os doces e também para conversar com a Demi. Ela vai passar um tempinho aqui com a gente, certo?
— Siiiiim — de novo.
Então, minha tia explicou minha história de forma bem resumida e disse que eu estava preparada para responder às perguntas, contando que cada uma das meninas esperasse sua vez. Elas foram organizadas por Irmã Catja e quase não podiam se conter de tanta ansiedade.
Confesso que estava nervosa. Sentia o suor brotar na palma das mãos e me segurei para não secá-las na calça jeans.
Resolvi me juntar às garotas no chão e me sentei entre elas. Foi minha melhor decisão das últimas horas. Fizemos uma grande roda no pátio e o bate-papo soou bem mais informal do que eu esperava. Ficamos um bom tempo por lá e o assunto entre nós fluiu espontaneamente, como se já fôssemos velhas conhecidas.
De cara, constatei que, embora nenhuma daquelas crianças tivesse família, elas não mostravam olhares tristonhos nem pareciam insuficientemente amadas. Isso me deixou feliz e acabou acelerando uma decisão que eu vinha formatando em minha cabeça desde que entrara no Lar: eu trabalharia ali pelo restante de meus dias na Krósvia. Se tia Marieva, que era casada, tinha um emprego e filhos e dava conta disso, por que não eu, uma completa desocupada?
Claro que primeiro eu teria que convencer meu pai de que ficaria tudo bem. Traduzindo: eu precisaria garantir que não seria atacada nem sequestrada por nenhum maníaco ou terrorista. E eu tinha meus métodos de persuasão.
Quando dei por mim, Laika já tinha sumido do mapa. Acredito que não aguentou me ver no centro das atenções enquanto ela era jogada de lado. Aposto que durante sua vida inteira ela sempre fora a estrela principal. Chupa essa, Nome de Cachorro.
O legal foi que Joseph permaneceu no mesmo lugar e não deu a mínima para os chiliques da namorada. Eu preferiria não ter que pensar nisso, mas era inevitável. Joe fazia parte da maioria de meus pensamentos durante o dia e de todos os meus sonhos à noite.
Eu não quis encará-lo muito, mas deu para notar o olhar de aceitação dele sobre mim. Tinha um quê de orgulho e admiração, como se eu tivesse me revelado outra pessoa, bem mais digna de sua aprovação. Melhor não se empolgar, dona Demi.
Assim que a conversa com as meninas terminou, seguimos para o refeitório, onde os brigadeiros foram servidos. Para cada garota havia um lugar específico, por ordem de idade, percebi. Na hora, me lembrei daquele desenho Madeline, cujas histórias se passam na França. A menininha que dá nome à série também vive num orfanato, coordenado pela bondosa freira Senhorita Clavel. Fiquei esperando a famosa oração que as internas proferem antes das refeições:
Nós amamos nosso Deus, nós amamos nosso pão, mas acima de tudo nós amamos de coração.
É claro que não rolou, quero dizer, não assim, com essas palavras. Porém, antes de caírem matando sobre o brigadeiro, as meninas juntaram suas mãozinhas e agradeceram pelo alimento, numa prece sussurrada para Deus e para si mesmas.
Constatei que somos seres muito ingratos. A maioria dos seres humanos comem bem e com fartura e são incapazes de agradecer por isso. Já as garotas do Lar Irmã Celeste provavelmente tinham uma alimentação regrada e ainda diziam “obrigada”. Mais uma lição para minha vida.
— Tia Marieva, estou encantada — confessei, assim que me despedi de todo mundo, prometendo repetir a visita. — Elas são fofas e educadas e muito alegres também.
Atrás de mim, ressurgida de algum esconderijo misterioso, Laika deu uma bufadinha, que eu interpretei como: “Deixa de ser puxa-saco, garota!”. Nem liguei.
— É verdade — concordou Joseph, reforçando minhas palavras. Será que ele podia deixar de ser legal para que eu pudesse voltar a odiá-lo? — São meninas muito espertas.
— Até chegarmos aqui, foi um trabalho longo e difícil — tia Marieva revelou, ajeitando uma mecha dos cabelos impecavelmente loiros atrás da orelha. — Muitas meninas vieram completamente desamparadas, num estado terrível de fragilidade. Mas hoje as coisas são bem diferentes. Ainda bem e graças às irmãs que vivem aqui e se doam integralmente.
Aproveitei a deixa para expor minha ideia:
— Sabe, tia, estive pensando... será que eu poderia trabalhar como voluntária aqui no Lar? Eu poderia fazer qualquer coisa, tipo brincar com as meninas ou ler para elas.
Laika me olhou como se eu fosse uma desvairada, mas Joseph sorriu de um jeito encantador. Tia Marieva pareceu refletir, talvez considerando as possibilidades, e acabou dizendo:
— Ler para elas é uma ótima ideia. O problema é que não temos um acervo muito grande e os livros que temos já foram todos lidos.
Então, tive um momento epifânico, como as personagens de Clarice Lispector, sempre acometidas por revelações que mudam sua história.
— Então o problema está resolvido! — quase gritei de tanta euforia. — Meu pai tem no castelo a maior biblioteca que já vi, só perde para a da minha faculdade. Se vocês não têm livros aqui, podemos levar as meninas a eles. Sei lá, duas ou três vezes na semana. A gente pode passar o dia lendo e aproveitando os ambientes do castelo, como o jardim, o terraço, a praia e, nos dias de chuva, a própria biblioteca. Não é uma excelente ideia?
Por um instante, todo mundo ficou mudo, olhando para mim como se eu fosse uma ET e tivesse acabado de dizer que converso com animais. Tia Marieva chegou a abrir a boca, mas desistiu no meio do caminho.
— Você acredita que seu pai vai dar corda para essa ideia maluca, Demi? — Laika meio que debochou, mas sem ser muito explícita para não pegar mal, para ela, claro.
— Bom, tudo é negociável — rebati, parada diante de tia Marieva, suplicando por seu apoio. — Não é, tia?
— Acho que pode dar certo — Joe profetizou. — Aquele castelo vai acabar virando um museu se alguma coisa produtiva não for feita o mais rápido possível. Quem precisa de tantos livros se ninguém lê? Ou melhor, ninguém lia, né, Demi? Agora que você está aqui na Krósvia, pelo menos deu uma oxigenada naquela sala abandonada.
Nunca alguém defendera uma sugestão minha com tanta veemência. Normalmente, eu só escuto: “Péssima ideia, Demi”.
— Concordo com isso — tia Marieva completou. — E as meninas vão poder sair do ambiente delas e ter acesso a uma outra realidade. Demi, se você não conseguir convencer o Andrej...
— Eu convenço — Joe prontificou-se.
— Ah, não acredito que você vai entrar nessa, Joe! — Laika bateu na perna, num gesto de extrema impaciência.
— Laika, é o mínimo que eu posso fazer — ele se defendeu, dando uma banana para os protestos da namorada cachorra. — E ainda estou me envolvendo pouco. Queria ter a metade da coragem da Demi para assumir uma responsabilidade dessas para mim.
Corajosa? Eu? Já fora chamada de muitas coisas, mas corajosa não era um adjetivo muito comum, não. Mas vindo de Joseph, era música para meus ouvidos apaixonados.
— Muito bem, então — tia Marieva concluiu.
— Acertamos tudo com o Andrej, depois combinamos com a Irmã Sonja. Mas vou sugerir que você fique com um grupo de meninas mais velhas, Demi. São as mais concentradas. Tudo bem assim?
— Tudo ótimo.
— Maravilha! — Fui abraçada por tia Marieva, que me deixou sem fôlego. — Você pode ter demorado a aparecer, Demi. Mas, sem dúvida, é uma de nós. Estou muito orgulhosa, querida.
Como não lido bem com elogios, especialmente em público, corei dos pés à cabeça. Devo ter ficado parecida com um tomate. 
No trajeto de volta ao castelo, depois de beijos e despedidas, a voz do vocalista do Jota Quest dominou novamente o ambiente interno do carro. A raiva de Laika era quase concreta, enquanto Joseph plantava no rosto uma expressão de desdém que me fez ter até dó da garota. Bom, mais ou menos.

Eu optei por ficar quieta, na minha. Se me fingisse de morta, talvez conseguisse escapar ilesa daquela briga iminente. Porém, essa banda era nostalgia pura pra mim. Ah! Quer saber? Dane-se. Como não li nenhum cartaz avisando que estava proibido cantar, soltei minha voz:
Além do horizonte deve ter
Algum lugar bonito pra viver em paz

~*~

Aconteceu alguns probleminhas hoje, então não deu pra postar mais cedo. Eu só tinha deixado esse capítulo pronto, infelizmente... Mas vou tentar postar mais um hoje. Ok?!

E sobre os comentários: Vocês são demais kkkkkkkk eu ri aqui. Pois é, finalmente apareci né?! ;P Vocês não vão se livrar de mim assim tão fácil u_u Obrigada por comentarem <33
Ah e sejam bem-vindas as novas leitoras!! ;D