quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Capítulo 22 (Último) – Simplesmente Demi - MARATONA

Dois anos depois...

— Ah, minha filha, você está linda!
Minha mãe avançou a passos largos até mim e enxugou os olhos com um lenço de linho que alguém do castelo providenciara para ela. Desde que chegara à Krósvia, vivia emocionada, chorando pelos cantos.
— Mãe, por favor, não vai chorar de novo. Desse jeito seu nariz vai ficar vermelho em todas as fotos.
Mas não teve jeito. Só o fato de eu estar vestida daquela forma era um novo motivo para ela se debulhar em lágrimas. E minutos depois vovó Sue fez o mesmo, seguida por Selena, Irina e até Karenina. Eu não estava conseguindo acreditar naquilo. Quanto exagero! Afinal, eu só estava a ponto de oficializar uma situação que já estava consolidada havia muito tempo.
Muita coisa havia acontecido desde o dia em que Joe fora me procurar em Belo Horizonte e nós finalmente ficáramos juntos. Bom, tivemos muitos contratempos, como o fato de morarmos em países diferentes. Eu continuei vivendo no Brasil, cursando direito na PUC, trabalhando como voluntária numa instituição assistencial para crianças abandonadas e estagiando na embaixada da Krósvia. Meu pai mexeu uns pauzinhos e voilà!
Claro que viajei bastante para Perla, mas não tanto quanto Joe foi ao Brasil. Passei todas as férias no país de meu pai, mas Joseph reestruturou sua vida de modo que aparecesse em Belo Horizonte pelo menos uma vez a cada dois meses. E sempre ficava de uma semana a 15 dias comigo.
Mesmo assim, não foi fácil. Os tempos sem ele eram cinzentos, sem graça, sem cor. Eu sentia a falta dele nas mínimas coisas, desde assistindo a um filme na TV até escutando Bon Jovi cantar, pela enésima vez consecutiva, a música-tema de nossa história: “In These Arms”.
Mas fiz de tudo para me manter firme, pois sabia que essa fase passaria. Então, aproveitei para curtir minha família e meus amigos e me dediquei ao máximo a eles. Não deixei de ir aos churrascos de minha turma de faculdade nem às reuniões no sítio de meu tio em Itabirito. Porque eu estava decidida a partir de vez para a Krósvia logo que recebesse meu diploma de bacharel em Direito das mãos do reitor da universidade. Ou melhor, assim que fizesse a prova da OAB.
Afinal, e daí não morar mais no Brasil?
Ainda assim, minha família estaria lá e eu poderia fugir para eles sempre que quisesse. O que não dava era para continuar vivendo com um oceano, um continente e um mar entre mim e Joe. O restante eu suportaria.
Ao saber de minha decisão, cada pessoa teve uma reação diferente:
• minha mãe caiu em prantos;
• meu pai organizou uma festa para comemorar;
• Joe ficou todo convencido;
• Selena me concedeu dois dias de gelo, mesmo dando a maior força para meu romance de novela;
• o pessoal do Palácio Sorvinski se desdobrou para ajeitar minha mudança.
E, quando eu dei por mim, sobrevoava definitivamente parte do mapa-múndi rumo à terra de meus ancestrais paternos. Ah! E com um item inédito em minha bagagem: o domínio total da língua krosviana. Mas vamos combinar que minha pronúncia era um fracasso.
Agora, ali estava eu, cercada por um bando de choronas e tendo que lidar com um penteado nada confortável, elaborado minutos antes pelo queridíssimo Patrick, com o qual eu havia conseguido dialogar pela primeira vez em krosvi.
— Gente, não estou acreditando nisso — declarei, de braços cruzados sobre a parte de cima de meu lindo vestido de cetim. — Ainda não consegui processar o motivo de tanta choradeira.
Por acaso tem alguém morrendo?
Uma sinfonia de fungadas foi a resposta mais imediata à minha pergunta, seguida pela explicação de minha avó:
— É que você está tão linda e hoje é um dia tão especial que fica difícil controlar as lágrimas.
— Fiz suco de maracujá para todas nós, Demi — Karenina anunciou na maior inocência, com o nariz tão vermelho quanto o das outras.
— Vocês são inacreditáveis — falei, revirando os olhos. — E a tia Marieva? Já apareceu? Como vou entrar se as crianças não tiverem chegado?
Meus primos me acompanhariam ao longo do trajeto que me levaria ao altar. Além deles, um cortejo de meninas do Lar Irmã Celeste abriria a cerimônia, preparada com bastante antecedência pela equipe de relações públicas da família real.
Minha vida estava perfeita, mas um fato jamais fora solucionado. Nunca soubera por que Marcus, marido de tia Marieva, agia de forma tão estranha perto de mim. Joe dizia que ele era um invejoso e aceitei essa justificativa por não encontrar outra melhor — ou pior, dependendo do ponto de vista.
— Estão a caminho — Irina respondeu, dividida entre a eficiência e a emoção. Nos últimos dois anos, tínhamos aprofundado nossos laços e nos tornáramos grandes amigas. Mas entre ela e meu pai as coisas continuavam só na vontade.
Dela. Irina preferia cultivar seu amor platônico a arriscar perder seu cargo de confiança ao lado de Andrej. Vai entender.
Depois de minha partida, mamãe não aguentara a solidão por muito tempo. Resistente como uma dama recatada do século XVIII, custara a aceitar as investidas de um médico bonitão e certinho, que caíra de quatro por ela assim que a conhecera num evento que seu buffet organizara para o hospital onde ele trabalhava. Mas, enfim, acabou aceitando.
Mas a maior novidade do século aconteceu poucos meses após eu ter deixado o Brasil. Contrariando todas as expectativas, Selena decidiu dar uma chance a Nick e disse sim. Entretanto, isso só foi possível porque ele a convenceu de que sempre estivera apaixonado por ela, mesmo na época em que ficava comigo. Só não sabia disso ainda. Por mim, tudo bem. Nada contra o amor dos dois. Esse tipo de situação é comum por aí afora, quero dizer, um cara achar que gosta de uma garota e depois descobrir que prefere a melhor amiga dela.
— Chegaram! — avisou Irina, num ir e vir irritante. — Está pronta, Demi?
— Mais do que nunca.
Então, meus pequenos primos se juntaram a mim e as primeiras notas de um conjunto de cornetas soaram do salão de solenidades do palácio.
Meu coração palpitou de expectativa, mas eu me mantive firme, até serena. Caminhei atrás de Giovana, Luce e Luka e parei no topo da escada.
Todos os olhares se voltaram para mim. Tive medo de desmaiar e cair rolando degraus abaixo. Tanta gente desconhecida! Vi de chefes de Estado a primeiros-ministros e localizei, de pé num dos locais mais privilegiados do salão, a presidente do Brasil.
No entanto, no meio de toda aquela gente, um rosto especial se destacava. Foi só avistar Joseph olhando embevecido e orgulhoso para mim que me senti fortalecida. Dois anos haviam se passado e nada mudara entre nós. Isto é, estávamos mais maduros, mas ainda sentíamos um frio na barriga quando nos beijávamos, ainda tínhamos prazer em estar juntos, e acho que essas coisas nunca mudariam. Pode soar piegas, mas fomos feitos um para o outro.
Ele ainda me surpreendia com gestos especiais, como no dia em que aparecera em Belo Horizonte com uma sacola de lingeries da Victoria’s Secret — as que eu tinha deixado no castelo. Quase morri de vergonha, principalmente porque Joe me fez usar cada uma delas e depois elegeu os três primeiros lugares.
Por essas e outras é que jamais me cansaria dele. Portanto, vê-lo de fraque, todo lindo e irresistível, incentivando-me apenas com o olhar, fez meu coração se derreter. De novo. E me mantive firme até me encontrar com meu pai sobre o altar dos tronos do Palácio Sorvinski, usando um traje formal antigo, parecido com os dos príncipes de filmes da Disney.
Ei! Esperem aí. Não acredito que você estava pensando que toda aquela circunstância fazia parte de meu casamento. É claro que não. Só tenho 22 anos e muita coisa para fazer antes de me casar. Espero que, quando chegar o momento certo, seja mesmo com Joseph. Mas aquela ali era minha coroação como princesa da Krósvia. Andrej fazia questão de enfiar uma coroa em minha cabeça. Quem sou eu para negar um pedido de meu pai?
O legal foi que pude usar o vestido de minha bisavó Catarina, aquele amarelo-ouro, tomara que caia, enfim, o que aparecia em meu sonho. É.
Aparecia. Pois, desde que eu decifrara seu significado, ele me abandonara de vez. Graças a Deus!
Finalmente coroada e adornada com o manto real — feito de seda pura e bordado com fios de ouro —, depois de jantar formalmente com a comitiva de políticos convidados especialmente para minha coroação, pude enfim sair à francesa com Joe e me livrar dos sapatos apertados.
— Como está se sentindo? — ele quis saber, enquanto eu puxava o vestido até o meio das coxas e me sentava na traseira de sua BMW.
— Muito bem. E você?
Joseph ainda estava de pé, mas completamente grudado na lateral de meu corpo. Massageou uma das minhas pernas e disse:
— Melhor impossível. Sabe por quê?
Fiz que não com a cabeça, ansiosa para ouvir a resposta.
— Porque, no final da história, eu ganhei a princesa.
Então, ele me beijou provocantemente e depois partimos em alta velocidade através da noite de Perla.
Como em todo conto de fadas, vivemos felizes para sempre.

Fim.
~*~

Eu jurava que tinha mais capítulos ^^ kkkkkk oops.
Não gostei tanto assim dessa história. Vou ver o que vou fazer em relação ao que irei postar aqui, agora que Simplesmente Demi acabou. E minhas aulas na faculdade começaram. To chorando já. Sdds férias. Enfim, espero que tenham gostado dessa fic, embora eu sei que não foi a melhor que já leram. Nem perto disso. Mas aprecio que vocês tenham comentado e acompanhado e terem ficado feliz com as Maratonas. Amo vocês por isso. Agora, tenho que pensar na próxima fic hahaha

Até breve, 
Yumi H.

Capítulo 21 – Simplesmente Demi - MARATONA

O melhor lugar do mundo

Passei a semana me policiando para evitar a Internet durante o dia. Se eu me permitisse, checaria meu Outlook o tempo inteiro, mas não estava disposta a me prender diante do computador, nem a deixar a ansiedade me dominar.
Mesmo assim, de vez em quando eu dava uma olhadinha na caixa de entrada e verificava se havia uma resposta de Joe. Mas ela nunca apareceu. Eu poderia tentar me convencer de que talvez seu endereço de e-mail tivesse mudado ou de que ele estava sem acesso à Internet no lugar por onde andava, caso ainda estivesse viajando. Porém, no fundo, já conhecia a verdade: o amor de Joseph por mim não era tão grande e ele me deletara de sua vida bem rapidinho.
Não contei minha última façanha para ninguém, nem para Selena. Aquele fracasso eu guardaria só para mim. Bom, pelo menos, era essa minha intenção...
Mas foi só tia Marieva me ligar para eu despejar em cima dela toda a frustração que sentia.
— Tia, eu sei que magoei o Joe com minha desconfiança, mas não acha que já fui punida o suficiente?
Eu sempre conversava com ela por telefone ou Skype e isso me ajudava a me manter conectada com a Krósvia. Tia Marieva me falava sobre seus filhos e as meninas do Lar Irmã Celeste e dizia que todos eles sentiam minha falta. Eu morria de saudade também.
— O Joe é muito cabeça-dura — comentou ela naquele dia, ao telefone.
— A questão não é bem essa — discordei. — Ele pode não ter participado da armação contra mim, como ficou provado, mas também não estava tão interessado. Caso contrário, teria me dado uma segunda chance, né?
— Não sei, querida. O Joseph é um homem incrível, mas é teimoso como ele só, desde criança.
— Bom, se é questão de teimosia, a coisa ainda é pior. Não dá para acreditar que não respondeu ao meu e-mail, nem ao menos para pedir que eu não o procure mais.
— Não sei, Demi. É estranho. De todo modo, você sabe, ele não está aqui em Perla. Nem o Natal Joe passou conosco. Está pelo mundo afora, de mochila nas costas, viajando por aí. Talvez nem tenha recebido sua mensagem.
— Duvido muito, tia. Mas tudo bem. Acabou. Vou procurar não me preocupar mais com essa história. — Suspirei, mudando de assunto: — Estou pensando em trabalhar como voluntária numa instituição assistencial aqui na minha cidade. Não decidi nada ainda, mas...
— Que notícia ótima, querida! Você leva o maior jeito mesmo. Mas por que não volta para cá e continua o trabalho que já começou aqui? — sugeriu ela, empolgada.
— Pelos mesmos motivos que me levaram a voltar para o Brasil antes do tempo.
— Você não pode fugir dele a vida toda. Ou vai deixar de nos visitar para sempre?
— Claro que não. Vou estar aí em breve. Mas não para morar. Eu tenho meu curso, minha mãe, meus avós...
— Eu sei — tia Marieva me interrompeu. — Conheço esses argumentos e não é de hoje. Porém, Demi querida, para tudo há um jeito. Tenho certeza de que você logo, logo vai encontrar o seu. Porque nós também não queremos viver longe da nossa princesa.
Faz um bem enorme para a alma a gente se sentir amada. Eu não tinha do que reclamar quanto a isso, pois tanto minha família brasileira quanto a da Krósvia eram maravilhosas. Desliguei o telefone mais aliviada, já que tinha desabafado e tirado um pedaço do nó que andara fixando residência em meu estômago.
Como era sábado, decidi sair um pouco de casa e aproveitar a tarde bonita para fazer uma caminhada na Praça da Assembleia. Vesti uma malha de ginástica, calcei meus tênis de corrida e fiz um rabo de cavalo alto, pois detesto me exercitar com os cabelos soltos, grudando na pele. Enfiei uma nota de 20 reais no cós da calça e saí, depois de avisar minha mãe para onde eu ia.
— Também estou de saída — ela gritou da cozinha. — Vou para aquele evento. Só volto amanhã.
— Ah, é? Então a festa lá vai ser das boas — comentei.
— Sim. São bodas de ouro e os filhos do casal programaram dois dias de comemoração.
— Bom, boa sorte então — gritei de volta.
— Obrigada, filha! Estou deixando um pastelão de frango. Ah! E uma torta de pão.
— Beleza! Beijo!
Fechei a porta sorrindo. Ter uma mãe craque no fogão tem suas vantagens. A gente nunca passa fome. O lado ruim é que fica impossível controlar as calorias extras com tanta comida boa em casa.
Mais um motivo para eu caminhar na praça. Aliás, já que eu passaria o final de semana em casa só comendo, melhor mesmo seria correr de uma vez. E foi justamente isso que fiz. Apertei meus óculos escuros no rosto, liguei o iPod e segui o fluxo de corredores. No começo, tive um pouco de dificuldade para manter o ritmo, uma vez que andava meio fora de forma. Mas acabei pegando o jeito e me animei a dar mais de dez voltas — meu recorde até então.
Não prestei atenção em nada a meu redor. Não posso nem afirmar se o lugar estava cheio ou não. Só corria, procurando eliminar qualquer tipo de pensamento de meu cérebro. Meia hora depois, já podia sentir o efeito animador da endorfina em meu organismo.
Só parei quando minha panturrilha direita reclamou. Notei que o músculo deu uma repuxada, então desacelerei. Caminhei devagar até um vendedor ambulante e comprei uma garrafa de água mineral.
— Você é a Demi, né? — perguntou ele, com os olhos brilhando de empolgação. — A princesa.
— Sim — respondi com cuidado. A última coisa que desejava era chamar atenção.
— Eu sabia! Falei para minha mulher que já tinha visto você caminhando por aqui, muito tempo atrás, mas ela me chamou de mentiroso. Vê se pode!
Sorri encabulada, doida para escapar dali.
— Meu nome é Romeu e fiquei surpreso quando te vi no Fantástico. Quase caí do sofá. Não acreditei que era você, a garota mais bonita da praça. Que história, hein!
— Nem me fale! — Revirei os olhos, tirando um pouco da importância do fato.
— Você se importa de tirar uma foto comigo?
Quase engasguei com a água.
— Tirar um foto? — repeti, insegura. — Aqui?
— É. Rapidinho. Meu celular tem uma câmera excelente — ele assegurou, enquanto retirava o aparelho do bolso de trás da calça. — Eu só preciso pedir para alguém bater.
— Certo — concordei, resignada. Se eu dissesse não, pareceria uma dessas celebridades esnobes. E não queria ser nem uma coisa, nem outra.
— Ali. Tem um moço lá.
Romeu apontou para um homem parado a poucos metros de distância. Aproveitei o momento e tomei um bom gole da água. O calor estava demais! Quando desgrudei o gargalo da garrafa dos lábios e olhei na direção do vendedor, minhas pernas fraquejaram. De calça jeans clara, surrada, até com uns rasgos no joelho, camisa verde, botas marrons, óculos Ray Ban e uma barba que havia dias devia estar por fazer, a imagem de Joe preencheu todo o meu campo de visão. Miragem ou não, só sei que a garrafa de plástico escorregou de minha mão e se espatifou a meus pés. Não consegui pronunciar nenhuma palavra.
Perplexa, acompanhei com o olhar a aproximação de Romeu e Joseph, os dois lado a lado, vindo em minha direção.
— Esse cara aqui não fala português, mas acho que entendeu meu pedido. — Alheio ao fio elétrico que me ligava a Joe, Romeu preparou a câmera do celular.
Acho que todo o sangue de meu corpo se esvaiu e meu raciocínio lógico se foi. Eu não sabia o que fazer. Joe não tirava os olhos de mim. Nem os óculos escuros foram capazes de esconder isso.
— Pronto, princesa Joe — Romeu falou. — Posso chegar mais perto?
A essa altura, Joseph segurava o celular de Romeu e o apontava para nós. Mexi a cabeça, concordando. Então, fizemos uma pose e a foto foi tirada. Em seguida, o vendedor pegou o telefone de volta e conferiu a qualidade da imagem.
— Obrigado! — ele agradeceu. — Agora, quero ver minha mulher duvidar de eu que conheço você!
E então Romeu desapareceu com seu carrinho, permitindo que Joe e eu ficássemos cara a cara e a sós. Mas eu não sabia como agir. Decidi não fazer nada e esperar Joseph se manifestar.
— A gente pode conversar? — Aquela voz maravilhosa e profunda, que eu não escutava havia tanto tempo, atingiu meus ouvidos num inglês carregado com o delicioso sotaque da Krósvia.
Num segundo, os óculos de Joe foram parar na gola de sua camisa e eu pude visualizar aqueles olhos verdes que me levavam à loucura. Ele deu um passo, aproximando-se, e eu dei outro, só que na direção oposta. Eu me recusava a ser decepcionada novamente.
— Conversar sobre o quê? — questionei.
Joseph esfregou os cabelos, que estavam mais curtos, com uma das mãos e sua tatuagem se insinuou debaixo da manga da blusa. Na mesma hora, meu estômago deu uma cambalhota.
— Sobre nós, Demi, é claro. Por que outro motivo eu estaria aqui se não fosse por você? — Ele parecia impaciente.
E eu mantive o mesmo tom.
— Bom, faz tempo, você não acha? E eu não entendo o que te trouxe a BH, já que, ao não dar bola para meus e-mails, os dois, você deixou bem clara sua decisão.
— É por isso que precisamos conversar — insistiu ele, ainda bastante sisudo, mas ansioso. — Preciso explicar umas coisas.
Sempre tão mandão...
— Por favor — completou. — Essa história já foi longe demais.
E como, pensei. Mas não por minha culpa.
Parece que Joe adivinhou meu pensamento, pois começou a explicar:
— Sei que não facilitei as coisas, Demi. Fui um idiota completo. Agora, estou apavorado aqui, na sua frente, com medo de você virar as costas e dizer que não tem mais jeito.
Meus olhos começaram a lacrimejar.
Entretanto me recusei a chorar diante dele. Já tinha feito isso uma vez, por puro desespero, e depois quase desidratara durante um mês de muitas lágrimas. Chega!
— Joe, eu não sei o que dizer — confessei, puxando nervosamente a barra de minha blusa de ginástica.
— Então, deixa que eu falo.
Olhei ao redor. Havia gente demais por perto e muito barulho de conversas, gritinhos de crianças e motores de carros.
— Aqui não é o lugar ideal.
— Concordo. Vamos até sua casa, então.
Franzi a testa, desconfiada.
— Como sabe que moro perto daqui?
— Ora, Demi, eu tive que correr atrás para te encontrar, né? E eu tenho fontes confiáveis.
— Posso presumir que minha mãe faz parte delas?
Joe riu pela primeira vez desde que se materializara diante de mim. Fiquei sem fôlego. O sorriso dele não tinha explicação.
— Lógico que sim. Além de me contar onde você estava, a Dianna me deu uma carona.
Por que eu estava impressionada? Joe sempre conseguia o que queria.
O trajeto de volta a meu apartamento foi tenso. Caminhamos lado a lado, mas não permiti que nos tocássemos. Já havíamos estado naquela situação, quando passeávamos despreocupadamente pelas estradas e cidades da Krósvia. A diferença era que, naquela época, não tínhamos experimentado estar nos braços um do outro. Portanto, ficar perto de Joe sem sentir seu calor era como ir a uma bomboniere e não se empanturrar de doces.
Ele até tentou engatar um início de conversa, mas preferi esperar o momento certo, quando estivéssemos dentro de casa. Falamos apenas sobre banalidades no elevador, que demorou demais até parar em meu andar. Ao chegarmos, abri a porta e anunciei:
— Vou tomar um banho primeiro.
— Ah, qual é, Demi! — Joe quase estourou. — Vai ficar adiando só para me castigar?
— Não, Joe. Preciso de um banho porque corri demais e estou suada, né? Já reparou como faz calor aqui? Toma. — Entreguei na mão dele o controle remoto da televisão. — Assiste a um pouco de TV. Não vou demorar nada.
E saí sem dar chance a ele de retrucar. Na verdade, a chuveirada era um pretexto. Eu precisava me acalmar e colocar a cabeça para pensar com coerência, pois não queria me fazer de difícil, mas também não podia baixar a guarda assim, de cara. Sabe-se lá o que Joseph diria, no fim das contas.
Deixei a água da ducha massagear minhas costas e meu coro cabeludo. Notei que a tensão que me dominava se esvaía aos poucos, então decidi não protelar mais a tal conversa decisiva e desliguei o chuveiro. Enrolei meu corpo numa tolha e os cabelos em outra, moldando uma espécie de turbante em cima da cabeça.
Não me preocupei em sair do banheiro desse jeito porque meu quarto é uma suíte. Portanto, abri a porta, que eu nem tinha trancado com chave, com a intenção de me vestir logo e encarar Joe em seguida.
— Gosto mais do seu quarto do castelo.
Literalmente pulei de susto. Como de costume, Joseph me surpreendeu dentro de meu quarto, sem dar aviso prévio. Agarrei o nó da toalha com força. Se ela resolvesse cair, o negócio ficaria feio para o meu lado.
— Sei lá — continuou ele, todo à vontade. — A vista é mais bonita e a cama... bem maior.
Joe já tinha perdido o ar de preocupação e agora falava com a segurança de quem sabia que teria sucesso em seu propósito. Seu olhar passeou de minha pequena cama de solteiro para a toalha que cobria insuficientemente meu trêmulo e apavorado corpo. Estremeci.
— Você não perde a mania de invadir os lugares sem ser convidado — acusei. — Eu pedi para você me esperar.
— E foi o que fiz.
Joseph avançou em minha direção até me prender contra a parede. Tive, então, a consciência de seu perfume e da rigidez de seu corpo. Sem que eu pudesse prever, ele estendeu a mão e retirou a toalha de minha cabeça. Meus cabelos caíram molhados e completamente bagunçados sobre meus ombros. Mas, como minhas mãos seguravam a outra toalha, não pude arrumá-los.
Mais uma vez prevendo minha intenção, Joe penteou os fios indomados com os dedos, tanto ajeitando a cabeleira quanto me torturando. Minha respiração acelerou.
— O que você está fazendo? — ofeguei.
— Tentando te persuadir a baixar a guarda para mim.
Ai, meu Deus! Joseph era tão seguro de si, tão autossuficiente!
Empurrei-o para longe. Quero dizer, não tão longe, mas o suficiente para seu corpo deixar de pressionar o meu.
— Você acha que pode resolver as coisas assim, me seduzindo como se eu fosse uma adolescente cheia de hormônios e incapaz de resistir ao seu toque? — indaguei, estressada demais para ser delicada. — Joe, no momento nós precisamos de palavras. Eu preciso entender o que houve no último mês, o que aconteceu para você desaparecer e não aceitar meus dois pedidos de desculpas. E o que mudou para agora você estar aqui na minha frente, tentando retomar de onde paramos, como se nada tivesse acontecido nesse intervalo de quatro semanas!
Ele me encarou por um tempo e depois se sentou em minha cama, desviando o olhar para meu mural de fotos. Eu mantinha uma espécie de linha de tempo num painel de metal sobre a escrivaninha. Havia retratos desde minha infância até meu período na Krósvia. Mas tive o cuidado de não colar nenhuma foto dele. Para quê? A imagem de Joe jamais substituiria sua pessoa, e olhar para ele no papel me faria sofrer ainda mais.
— Demi, eu tive muita raiva de você.
Agora, sim. Conversaríamos sem joguinhos de sedução. E, mesmo não gostando de escutar aquela primeira frase, não o interrompi.
— Eu fiquei puto, porque nunca imaginei que você fosse acreditar na palavra de desconhecidos em vez de confiar em mim. Eu tinha aberto meu coração, coisa que não faço com frequência, tinha lhe dado a escolha de ficar ou não comigo. Porque eu não forcei a barra com você, não no que diz respeito a dormirmos juntos. Verdade ou não?
Balancei a cabeça, concordando.
— Então, como pôde pensar mal de mim? Desde o princípio, aquela história tinha cara de armação!
— Joe, tudo aconteceu muito depressa. Fui pega de surpresa — justifiquei-me, sentada de frente para ele na cadeira de estudo. — E um dos fotógrafos falou com você, te chamou pelo nome. Acha que consegui raciocinar com clareza?
— Era só olhar para mim que enxergaria a verdade. Eu estava tão chocado quanto você. Até mais, porque eu vi repulsa no rosto da mulher que eu amo, uma repulsa por mim. Isso depois de ter passado com ela a melhor noite da minha vida, de ter feito de tudo para que fosse perfeita.
Joseph enterrou o rosto nas mãos, mas não parou de falar. Enquanto isso, minha mente se fixou na afirmativa “mulher que eu amo”, dita no presente.
— Eu esperava um pouco mais de crédito — continuou ele.
— Com a cabeça quente, nem sempre agimos com lucidez — interrompi. Meu coração batia aos pulos, dificultando bastante a pronúncia das palavras, que saíram meio entrecortadas, como numa transmissão ruim de rádio.
— Certo. Isso eu até entendo. Mas você só mudou sua opinião a meu respeito quando ficou provado que eu não estava envolvido na armação. E já tinha dado tempo de esfriar a cabeça, não é?
Diabo de homem que tinha argumento para tudo!
— Sim, Joe. Por isso é que eu praticamente implorei para você me perdoar, porque tive consciência do tamanho da minha burrada.
— No dia que recebi aquele e-mail, eu estava mal. — Seus olhos prenderam os meus. — Não consegui te desculpar naquela hora, Demi.
— Nem depois, né? — completei para ele. — E olha que meu segundo e-mail foi ainda mais desesperado. Eu confessei coisas inéditas até para mim mesma.
Com um movimento inesperado, Joe ficou de pé e enfiou a mão num dos bolsos de trás da calça. Retirou de lá um papel dobrado e se ajoelhou para ficar com o rosto no mesmo nível do meu. Eu só conseguia olhar para a folha branca, que se revelou, depois de desdobrada, ser minha segunda mensagem.
— Demi, quando recebi isto aqui — Joseph balançou o papel —, estava prestes a ceder. Viajei por um tempo, o que me ajudou a pensar com mais calma. Eu viria atrás de você de qualquer forma.
Sua mensagem só reforçou minha decisão. E se eu não respondi foi porque queria te olhar e falar olhando nos seus olhos, porque apesar das nossas falhas, de nós dois termos sido cabeças-duras, eu só consigo ficar feliz perto de você.
Senti que um sorriso tímido se insinuou em meus lábios e Joe os contornou com o polegar, como já havia feito antes, em meu outro quarto, na Krósvia.
— Sinto falta de tudo em você, Demi — ele continuou, sussurrando, a voz meio embargada. Seus olhos verdes não largavam os meus. — Tenho saudade da sua alegria, do seu amor pelas pessoas, do seu entusiasmo diante das situações mais simples, até do seu humor variável.
Quase chorei quando a palavra saudade foi dita em português. Significava muito para mim, não pelo uso de meu idioma, mas porque traduzia a enormidade de seus sentimentos.
Com a boca colada em meu ouvido, Joseph completou:
— Sinto saudade da sua pele, dos seus lábios macios e do seu corpo apaixonado. Não posso mais viver sem tudo isso, Demi. Então, por favor, diz que me aceita de volta e acaba com essa agonia.
Mais inebriada de paixão do que qualquer princesa de contos de fadas, respondi ao apelo de Joe jogando meus braços em volta de seu pescoço, puxando-o para um beijo daqueles. Nem preciso dizer que a toalha que envolvia meu corpo afrouxou e, num instante, não estava mais a meu redor. Joseph me tirou da cadeira e me levou até minha minúscula cama, mas, em vez de matar a saudade dos momentos que vivêramos na Ilha de Catarina, ele primeiro contornou minhas feições com o indicador e declarou:
— Você é a pessoa mais importante da minha vida, Demi. Esse último mês foi um pesadelo.
Fechei os olhos e me entreguei a ele. Eu estava certa: o melhor lugar do mundo era onde eu estivesse com Joseph.

***

— Quer dizer que encheu a cara na noite da virada do ano?
Curtindo a letargia pós-maratona de exercícios físicos noturnos, Joe e eu estávamos aconchegados um no outro, tanto pela vontade de não nos desgrudarmos nunca mais quanto pelo tamanho reduzido de minha cama de solteiro. Eu descansava minha cabeça em seu tórax bem delineado e mantinha meus dedos entrelaçados aos dele. Com a outra mão, Joseph traçava preguiçosamente os ossos de minha coluna vertebral enquanto falávamos sobre todos os assuntos atrasados, ocorridos no mês anterior.
— Que modo mais pré-histórico de afogar as mágoas, hein! — Joe brincou. Eu dei um tapa em seu ombro.
— Deixa de ser convencido! Minha bebedeira não teve nada a ver com você. Foi uma questão de ingerir a bebida errada, ou seja, vodca.
— Então, no reveillon a senhorita se esqueceu dos nossos problemas e caiu na gandaia.
Que bonito!
Abracei-o ainda mais, adorando aquela discussãozinha de mentira, o que tornava nosso relacionamento mais leve. Mais normal.
— Exatamente — confirmei, dando em seguida uma mordida sobre a tatuagem de Joe, aquela que me deixava doida. — Saí com a Selena e quebramos tudo.
Eu só estava querendo provocá-lo. Todo mundo sabia que aquela noite havia sido um fiasco.
Com um movimento rápido, Joseph me prendeu sob seu corpo e me encarou com cara de bravo.
— Grande sofrimento esse seu!
Comecei a rir. Nem fazendo esforço para parecer zangado ele ficava menos bonito. E aquele homem era todo meu. Será que um dia minha ficha cairia?
Um barulho fora do quarto desviou nossa atenção e Joe deu um pulo da cama. Vestiu a calça em dois segundos, como se o fato de estar semivestido fosse fazer alguma diferença caso fôssemos flagrados por minha mãe.
Apoiei a cabeça na palma da mão e o observei passar por aquele aperto.
— Será que é a Dianna? — quis saber, ofegante de susto.
Fiz cara de mistério, mas careca de saber que não era ela. Deveria ser no apartamento do vizinho.
— Demi, puxa, será que sua mãe...
— Relaxa, Joe! Não é ela. Minha mãe só chega à noite. Agora, volte aqui.
Os ombros dele relaxaram automaticamente.
— Hum... Que tal se a gente comer alguma coisa? Estou meio sem energia — ele propôs.
Concordei. Na cozinha, servi para nós dois um pedaço de torta de pão. Ela estava geladinha e suculenta, irresistível. Entre uma garfada e outra, tomei coragem para fazer a pergunta que não queria calar:
— Como ficamos daqui para a frente?
Pensei que Joseph se retrairia diante desse tema não muito agradável, mas parecia que ele já havia previsto a conversa e planejado as respostas.
— Juntos. Ou ainda tem dúvida?
— Você sabe que não foi isso o que eu quis dizer.
Ele largou o garfo sobre o prato e me olhou nos olhos.
— Minha linda, tudo vai se ajeitar. Posso muito bem dividir meu tempo entre a Krósvia e o Brasil. Estava até pensando em aprender português.
— Jura? — Segurei as lágrimas, que tentavam a todo custo romper minha resistência.
— Vou estar aqui sempre, quando for possível conciliar meu trabalho com uma temporada de descanso. Não quero que você se sinta pressionada a largar seu curso e partir de mala e cuia para Perla de novo.
— Vai ficar tudo bem entre a gente, então? Mesmo se cada um estiver numa parte do mundo?
Joe se levantou da cadeira e me puxou para um abraço apertado.
— É claro que sim. Não vai ser gostoso passar umas temporadas longe de você, mas vamos sentir a tal da saudade boa, já que vamos poder matá-la sempre que quisermos.
— Meu pai vai ficar feliz. Porque não pretendo ficar tão longe da Krósvia.
— E eu, mais ainda — Joseph garantiu.
— Pena que não vou poder sequestrar você para meu apartamento todas as vezes, senão seu pai manda aqueles dois brutamontes atrás de mim.
Caí na gargalhada.
— Nada disso! Daqui para a frente, acho bom o Andrej arranjar uma nova função para o Boris e o Zlafer.

— Com certeza. Nem em sonhos minha linda namorada vai andar com homens seguindo seus passos. Pode deixar que eu mesmo cuido da sua retaguarda.

Capítulo 20 – Simplesmente Demi - MARATONA

Meu caminho é você

Imaginei que o tempo seria meu maior aliado na luta contra a doença chamada Joseph, mas me enganei.
Um mês havia se passado e eu continuava deprimida, desgostosa, sem ânimo. Pelo menos, algo positivo aconteceu: as fotos jamais foram publicadas. E quem resolveu esse problema não foi nem meu pai, nem seus advogados. Soube, dias depois de desembarcar no aeroporto de Confins, que Joe impediu a divulgação usando seu excelente poder de persuasão. Irina me contou que ele não só ameaçou os fotógrafos como chegou a quebrar uma das câmeras assim que eu fui embora às pressas da Ilha de Catarina.
Também ficou provada sua não participação na emboscada. Isso foi meu pai quem me relatou, com um tom de eu não disse? Pelo telefone, Andrej esclareceu como tudo ocorreu:
— O namoro entre o Joe e a Laika não andava bem há muito tempo, mesmo antes de você chegar. E ele piorou depois, porque ela morria de ciúmes de vocês dois. Com razão, né?
— Como assim? — questionei. — Eu não ficava dando em cima do Joseph, como se eu fosse uma piranha.
— Mas ele dava sinais de que estava interessado em você. Por que outro motivo ficaria passeando para todo lado com você, Demi? Quando ele deu essa sugestão, eu não refleti, mas a verdade era clara. E a raiva da maluca da Laika foi só aumentando. A gota d’água foi o término do namoro. Desesperada, ela contratou os paparazzi e pediu a eles que ficassem no pé do Joe.
— Até encontrarem a oportunidade para fazer o que fizeram — completei, totalmente sem chão.
Foi difícil encarar minha burrice. Tanto tempo louca de amor por Joe, tanta expectativa, para eu simplesmente estragar tudo. Como eu me odiei naquele momento! Mais horrível ainda foi escutar meu pai dizer que Joseph ainda estava bastante magoado, a ponto de não querer conversar comigo. E eu poderia criticá-lo? Eu fora uma megera, uma insensível sem coração.
Aqui no Brasil, todo mundo tentou me animar. Passei o mês de dezembro sendo paparicada em excesso por minha mãe e meus avós. Até Selena entrou na onda deles. Resultado: o dia inteiro tinha alguém me perguntando: você está bem?
Também tive outros problemas, a maioria de readaptação. Eu ficara tão habituada a pensar em inglês que passei a falar tudo misturado, muitas vezes usando palavras da língua inglesa no meio de frases em português.
E o que posso dizer do clima? O calor de dezembro quase me matou. Acostumada com o inverno rigoroso da Krósvia, o verão brasileiro me levava a pensar nas camadas mais profundas da Terra. Mas pelo menos eu continuava de férias. Portanto, consegui evitar o sol forte ao máximo — e as pessoas também. Minhas atitudes nada sociáveis deixaram minha família e meus amigos muito assustados. Até porque eu costumava ser uma garota extrovertida e animada, o oposto do que havia me tornado.
Claro que a qualquer momento eu teria que sair daquela fossa. Burra eu não sou, portanto, ou eu fazia um esforço e me recuperava, ou ficava doente e me enterrava de vez na depressão. Então, entendi que, para virar esse capítulo nebuloso, eu precisava tomar uma atitude. E o primeiro passo seria me desculpar com Joseph.
Não pessoalmente, nem por telefone, pois não possuía tanta coragem assim. Quem sabe se eu escrevesse uma mensagem bem sincera ele acabasse me perdoando? Não custava tentar. E foi o que fiz.
No décimo segundo dia após meu retorno ao Brasil, sentei-me diante do computador e digitei:

De: Demetria Lovato
Para: Joseph Jankowski
Assunto: Desculpa

Joe,
Nem sei por onde começar esta mensagem. Tenho consciência do tamanho da sua mágoa e, acredite, dou razão a você. Porque, se fosse o contrário, se você tivesse duvidado de mim como duvidei da sua palavra, eu também teria preferido me afastar, pois confiança é a base para qualquer relacionamento.
Estou com vergonha da minha atitude infantil, principalmente porque minha imaturidade causou sofrimento para muitas pessoas: meu pai, Irina, Karenina, tia Marieva, meus primos e as meninas do Lar Irmã Celeste. E, claro, também fiz você sofrer, depois de tudo o que fez por mim. Mas, por favor, não me queira mal.
Perdoe-me por ter sido burra, ridícula e paranoica. Estou muito arrependida, com vontade de voltar no tempo e fazer tudo de novo, só que da maneira certa.
Liga para mim para a gente conversar, por favor. E, se não fizer isso, vou aceitar sua decisão, mesmo que contrariada. Não quero perder você, Joe. Agora eu sei. Porque eu amo você.

Simplesmente Demi <3

Meu dedo indicador ficou passeando pelo ícone Enviar do gerenciador de e-mails antes de finalmente clicar e mandar a mensagem para a caixa de entrada de Joseph. Depois disso, passei algumas horas checando meu Outlook para ver se a resposta estava lá.
Mas as horas viraram dias, que se transformaram em semanas. E Joe nunca respondeu. Sim. Eu era cabeça-dura. Mas igual a ele nunca conheci ninguém!
Dias mais tarde, soube por meu pai que Joseph havia tirado umas férias e saído pelo mundo, numa dessas viagens de mochila cheia nas costas e preocupação zero na cabeça. Então, era assim que nossa história terminava? Cada um seguindo seu próprio caminho, em sentidos inteiramente opostos?
O Natal chegou e passou depressa e eu pude voltar a experimentar uma reunião de família normal. Foi legal, porque ninguém tocou no assunto proibido. Não mencionaram sequer o nome Krósvia. Só tive notícias de lá quando meu pai ligou à noite, mas me recusei a perguntar sobre mais Joe e a ouvir informações sobre ele. Se era para esquecer, o tratamento tinha que ser de choque.
Por falar em normalidade, agradecia a Deus todos os dias por ter voltado a ser uma pessoa comum. Felizmente, a imprensa brasileira não estava mais interessada na atrapalhada filha do rei da Krósvia e, tirando algumas poucas ocorrências, deixaram-me em paz. Afinal, os tabloides vivem de novidades e tinham gente famosa de verdade para perseguir.
— Eu proíbo você de ficar em casa hoje. — Selena apontou o dedo para minha cara e esbravejou: — Já lhe demos seu período de luto, mas agora chega! Não vou deixar você sofrer eternamente. Faça-me o favor!
Era 31 de dezembro. Eu tinha passado o dia deitada em minha cama, lendo um romance água com açúcar e enchendo minha barriga de porcaria, tipo brigadeiro e doce de leite em barra. Até Selena chegar e começar a metralhar meus ouvidos com sua ladainha sem fim. Será que o ser humano não tem o direito de escolher passar sua virada de ano da maneira que bem entender? Por acaso é algum tipo de crime escolher ficar em casa?
Minha mãe insistira para que eu fosse com ela a uma festa que seu buffet havia organizado. Dissera que só ia dar gente bonita e jovem e que a banda seria uma dessas que tocam em festas de formatura. Traduzindo: bem animada. Eu negara com veemência, mesmo ela tendo quase me arrastado para fora da cama. Ela saíra contrariada. Eu, por outro lado, suspirara de alívio. Seríamos apenas eu e meu livrinho.
Mas as pessoas têm a mania de pensar que querer ficar sozinho é sinônimo de suicídio. Como se eu fosse pular da varanda do quarto sobre o trânsito caótico da Avenida Amazonas ou enfiar a cabeça dentro do forno com o gás ligado. Até parece. Prova disso é que nem bem curti uma hora de solidão e Selena apareceu toda saltitante, exalando felicidade e otimismo pelos poros. A personificação de Poliana, aquela menina ultrapositiva, personagem de um livro que li na infância.
— Daqui a pouco é reveillon e você aqui, toda largada e malvestida.
Olhei para minhas roupas. Qual mal havia em usar um short de corrida velho e a camisa do terceiro ano do Ensino Médio se não pretendia ir a lugar nenhum?
— Selena, eu estou em casa. Sozinha. Não sabia que precisava estar de longo.
— Ai, que engraçado! Você sabe o que eu quis dizer, Demi. Não seja carrancuda.
Suspirei. Selena é um amor de pessoa, mas também sabe ser uma chata quando quer.
— E o que você pretende fazer mais tarde? — perguntei por perguntar.
— Eu, não. Nós. Nós vamos a uma festa, uma festa super-restrita que o noivo da minha prima ajudou a organizar. Vai ser lá no Minas Náutico Alphaville, com ninguém menos que o Fat Boy Slim.
— Ah não, Selena. Não estou no clima de balada. O Fat Boy Slim até que é legal, mas hoje, não. Minha cabeça é capaz de estourar num lugar desses.
— Demi, o Fat Boy Slim até que é legal? Só legal? Você pirou, minha filha? Ele é um dos DJs mais badalados do mundo. Fala besteira, não! E você não tem como se recusar a ir, porque para nós a festa saiu ao estilo 0800. De graça.
Engoli em seco. A coisa estava começando a ficar feia para meu lado. A Selena sempre tinha uma carta na manga.
— Eu tenho mesmo que ir? — choraminguei. — Estou tão desanimada!
— Vai tomar um banho e botar uma roupa bonita. Garanto que não vai conseguir ficar parada quando chegar lá. De mais a mais, é hora de enterrar aquela história que estou proibida de mencionar. Quem sabe apareça um gato novo no pedaço e tire você de uma vez por todas dessa fossa.
— Não estou na fossa — discordei, ainda sem me levantar da cama.
— Claro que não. — Selena revirou os olhos e me puxou pelas mãos. — Mesmo assim, vale a pena dar uma saída. Fiquei sabendo que o Tiago, aquele pedaço de mau caminho da Engenharia Mecatrônica, vai estar lá. Hum... Não ligaria nem um pouco de dar uns beijos nele. Nem você, espero.
— Pode parar. Se for para me obrigar a ficar com qualquer um hoje, eu me recuso a ir. Não quero beijar ninguém.
— Mas não é qualquer um, não, minha filha, é o Tiago.
É desse jeito. Selena é que nem criança. Não sabe receber um não como resposta. Fiquei sem saída. Ou ia com ela àquela maldita festa ou aguentava sua ladainha descontrolada pelo resto da vida. Nem sei o que poderia ser pior. Mas pensei melhor e concluí que deixá-la insistir até a morte não era a opção mais adequada.
Tomei um banho rápido de chuveiro — que saudade da banheira de meu quarto no castelo! — e coloquei um vestido curto, simples e branco, para não fugir à tradição do réveillon. Liguei para minha mãe e avisei que tinha resolvido sair, o que muito a agradou.
Selena e eu pegamos um táxi. Por mais que a corrida ficasse cara, seria mais seguro. Pois quem garantiria que não beberíamos todas? Chegamos à festa por volta das 23h. Nunca vi tanta gente debaixo do mesmo teto. Parecia um mar de pessoas ensandecidas, sendo guiadas pela batida da música.
— Ai, que maravilha! — gritou Selena ao se deparar com as possibilidades. Ela sempre defendia a seguinte teoria: quanto mais pessoas estivessem num lugar, maiores eram suas chances de conseguir um bom amasso durante a noite. — Acho que deve ter uns 20 gatos por metro quadrado. Uau! Deu até calor.
— Amiga, está fazendo calor, independente da quantidade de gatos que você esteja enxergando.
— Deixa de ser rabugenta, Demi! Se joga na noite. E vê se esquece os problemas. Hoje é dia de curtir, de largar o passado para trás. Vamos beber!
A festa era do tipo open bar. Então, poderíamos beber à vontade, pois as bebidas estavam incluídas no preço da entrada. Mas, no nosso caso, sairiam de graça, já que tínhamos ganhado os ingressos.
— Hoje eu quero só Absolut. — anunciou Selena aos berros, para fazer-se ouvir. E olhe que eu estava a dois passos dela.
— Vodca? Não sei, não... — respondi, temerosa.
Uma vez eu tomara um porre de vodca, quando tinha acabado de completar 18 anos, e ficara mal, mas muito mal mesmo, a ponto de ter amnésia alcoólica. A última cena que ficara registrada em meu cérebro fora um poste e eu agarrada a ele para não cair de cara no chão. Quando recobrei a lucidez, já estava em casa, com a maior dor de cabeça e um balde ao lado de minha cama. Nem preciso explicar por quê, né?
— Ah, só um pouquinho não vai fazer mal.
— O problema é a gente ficar no “só um pouquinho”.
— Vamos tentar, ok?
E lá fomos nós! Começamos timidamente mas nem bem chegamos aos últimos minutos do ano e já estávamos meio tontas. Ou melhor, eu estava. Porque, num determinado momento, acho que Selena parou de beber. Pelo menos, não vi mais nenhum copo na mão dela.
E aí houve a contagem regressiva para o término do ano, seguida de uma chuva de papel prateado picado e muito champanhe estourando sobre a multidão. De repente, fui abraçada por pessoas que nunca tinha visto na vida, mas àquela altura não me importava muito com isso. Até que o calor humano estava agradável. Ou seria a Absolut?
— Selena, já falei que você é uma amiga maravilhosa? — Quem pensa que a frase saiu bonitinha assim está enganado. Levei uns 15 segundos para pronunciar aquelas nove palavras. — E que eu tenho muita sorte?
— É claro que tem — concordou ela, mais sóbria, mas nem tanto. — Além de ser minha amiga, é também uma princesa. De verdade.
— É... E meu pai é um rei e ele mora num castelo. E eu deixei todas as minhas roupas bonitas lá!
Alguém esbarrou em mim, quase levando-me ao chão. Eu me segurei a tempo no braço de Selena e soltei uma gargalhada de hiena, horrorosa. Mas logo a gargalhada se transformou em choro e um guincho agudo escapou de minha garganta.
— Larguei tudo para trás, Selena. Meus Manolos, meu Dior Couture, minhas lingeries da Victoria’s Secret. Eu quero tudo de volta. Estou com saudade até do Bruce, aquele labrador pateta.
— Por que você não liga para o seu pai e diz isso para ele? — sugeriu minha amiga, tentando se equilibrar em cima de seus sapatos meia pata de verniz rosa-choque.
— Porque eu bebi muito e ele vai brigar comigo e eu não lembro o número do celular dele! — Minhas lágrimas desciam copiosamente.
— Então, liga para o Joe. Isso! Liga para ele, Demi. Diz que tá aqui totalmente bêbada e que a culpa é dele.
Dei outra gargalhada medonha. Que vexame!
— Você tá louca! Não posso fazer isso. Ele não quer mais saber de mim. — Mais choradeira.
— Porque você é uma tonta. Como conseguiu dormir com ele e dizer tanta asneira no dia seguinte?
— Psiu! Fala baixo! Quer que todo mundo saiba desse detalhe?
— Ah, e daí? De que importa para esse povo se você não é mais virgem?
Sabe esses momentos peculiares da existência do ser humano nos quais o universo inteiro parece conspirar contra você? Pois é. Ultimamente, o universo resolveu me fazer de Cristo. A música fez uma pausa justamente no instante em que Selena berrou aos quatro ventos aquela maldita frase. E todo ser vivo num raio de 20 metros escutou com nitidez a indagação infeliz de minha amiga.
Olhei para ela com ódio, quase curada da embriaguez, e saí marchando — quero dizer, cambaleando — até a porta de saída, ouvindo risinhos ordinários enquanto eu passava.
Selena me seguiu.
— Demi, volta aqui! Que culpa eu tenho se a música parou bem na hora?
— Táxi! — Balancei a mão no ar, igual a uma donzela de filme de época, mas muito mais desajeitada. — Eu vou embora. Já chega.
— Para com isso, amiga. Relaxa. Ninguém ali dentro te conhece. Quero dizer, não se a gente não contar para eles que você é a Demi Markov.
— Lovato Markov — corrigi.
— Você tá completamente bêbada, Demi. Não pode ir para casa assim. E se o taxista for um tarado?
— Que tarado o quê, Selena! Nunca ouvi nenhuma história de taxista estuprador. Agora, me deixa ir. É verdade. Eu tô bêbada. Prefiro passar mal em casa.
Com uma sincronia perfeita, um táxi brecou bem a meu lado e eu entrei pela porta de trás, enquanto tentava lembrar meu endereço para passar ao motorista. Maldita vodca!
— Então eu vou com você. — Selena me empurrou para o meio do banco e se sentou, bufando de contrariedade.
Pelo retrovisor, o taxista nos olhou com impaciência, talvez desejando ter passado a madrugada comemorando a virada de ano em vez de transportar passageiras com alto teor alcoólico no sangue e zero juízo na cabeça.
— Para onde, senhoritas?
— Para a Krósvia! — gritei, iniciando mais uma sessão de lágrimas.
— Hein?
— Desculpa, moço. Minha amiga aqui não tá passando bem e se confundiu — Selena disse com a voz mais doce do mundo e uma fúria assassina no olhar. Depois explicou o endereço certo.
— Perto da Praça da Assembleia? — quis saber o motorista, um pouco mais amistoso.
— Issssssso — confirmei, tanto com a boca quanto com o dedo indicador, que mexia para baixo e para cima, como o Chaves da televisão.
— Tsc, tsc. Essa meninada de hoje só sabe beber — resmungou o taxista para si mesmo.
— Moço, hoje é reveillon — Selena argumentou. — Normalmente não fazemos isso, não, sabia?
Ele só balançou a cabeça, nem um pouquinho convencido.
— Ah... Queria que ele fosse o Jorgensen... — solucei. — Por que, hein, moço? Por que você não pode ser o Jorgensen?
— Demi, pelo amor de Deus!
— O Jorgensen era bonzinho comigo e me levava para onde eu queria. E você — quase enfiei o dedo na cara pálida do motorista — está me magoando.
— Demi! Quer calar essa boca? — Selena esbravejou e depois disse baixinho, em meu ouvido: — E se ele resolver deixar a gente na BR ou no meio da Raja Gabaglia?
— Então, põe uma música! Pelo menos tem música neste carro? — indaguei, com uma mão em cada encosto de cabeça dos bancos da frente, prestes a meter o indicador no botão “ligar” do aparelho de som.
— Só tenho música sertaneja — respondeu o motorista, meio que se justificando. — Vocês gostam?
— Sim — disse Selena, resignada.
— Serve — respondi, desanimada.
— Humpf — fez ele.
De repente, a voz anasalada de Luan Santana dominou o interior do veículo. Num dia normal, eu não prestaria muita atenção, pois não sou fã desse gênero musical. Mas naquela hora soltei a voz — num volume bem alto — e cantei junto com ele. Gritei mesmo. Selena até tapou os ouvidos e fez careta. O taxista devia estar se perguntando se merecia aquele castigo.
— Eu quero o Joe! — desatei a chorarnovamente. Dali para a frente eu só chorei, que nem criança contrariada.
Até o pobre coitado do motorista se sensibilizou e me passou uma caixa de lenços de papel, gentileza que eu aceitei prontamente.
— Por que ela está tão triste? — escutei-o perguntar para Selena.
— Desilusão amorosa.
— Entendo — concordou o taxista, cheio de piedade no olhar. — Escuta, filha. Não fique triste. Já passei por isso. Fique tranquila que o tempo cura tudo, viu?
Funguei. Olhei para Selena e a vi encolhida de vergonha. Não entendi o motivo. Eu só estavabotando para fora todo o meu desespero. Que mal havia nisso?
Só sei que em poucos minutos paramos em frente do meu prédio. Mal consegui alcançar o elevador sem quase cair umas três vezes. Selena melhor do que uma fossa bem curtida na companhia da completa solidão.

***

— Ai, minha cabeça — choraminguei, enquanto tentava me levantar da cama para tomar um comprimido de Neosaldina.
— Que bonito, né, Demetria? Bebendo sem moderação!
Seriam meus tímpanos ou a voz de minha mãe havia subido para uns 200 decibéis?
— Não me diga que agora vai começar a compensar suas mágoas com bebida?
Joguei o travesseiro sobre o rosto e abafei um grito. Tinha uma caixa de abelha zunindo dentro de meu cérebro e minha mãe ficava armando sermão.
— Mãe — gemi —, pode acreditar. A bebedeira de ontem foi um fato isolado. Não vou virar alcoólatra por isso, né? Agora, me deixa dormir. Ainda é muito cedo.
— Realmente — disse ela, escancarando as cortinas para que eu visse o céu. — Cedo demais, afinal são “só” cinco horas da tarde.
Como era horário de verão, o sol ainda reluzia sobre a cidade.
— Você está dormindo há mais de 12 horas. E deve ter tido um sono agitado, pois gemeu e falou o tempo inteiro, principalmente o nome do Joe.
Encolhi. Por que o amor nos transforma em seres tão ridículos?
— Não me diga que continua tendo aquele sonho recorrente. Pensei que já tivesse passado.
Olhei para minha mãe, não querendo exatamente enxergá-la, mas fiquei pensando sobre o que ela disse, sobre os dois assuntos que mamãe, sem querer, abordou na mesma conversa. Ela afirmou que eu havia dito o nome de Joe enquanto dormia e perguntou se meu sonho recorrente ainda existia.
De repente, algo se acendeu dentro de mim.
Foi como se uma luz tivesse entrado em minha cabeça para iluminar meu raciocínio. Por que eu nunca tinha feito as conexões corretas? Por que ficara cega por tanto tempo? O tempo todo, a resposta estivera bem na minha frente.
— Está escutando, Demi?
— O quê? — Minha cabeça estava longe.
— Eu mandei você levantar dessa cama e tomar um banho para ver se esse corpo melhora. Depois, vê se come alguma coisa. Fiz uma lasanha. Vou ter que sair agora, pois tenho um evento mais tarde.
Concordei. Mas, depois de minha brilhante constatação, concordaria com tudo para me livrar logo de minha mãe. Assim que ela saiu, fui para o chuveiro. Prestes a tomar uma decisão importante, eu precisava estar cem por cento segura a respeito do que faria. Minha boca continuava seca, sintoma da bebedeira da noite anterior, mas meu corpo não exalava mais nenhum cheiro da noitada.
Respirando fundo para acalmar meus ânimos, liguei o computador, acessei o gerenciador de e-mails e me pus a escrever o texto mais difícil — e também o mais libertador — de minha vida.

De: Demetria Lovato
Para: Joseph Jankowski
Assunto: Meu lugar

Querido Joseph,
Esta é a última vez que procuro você. Prometo que não o incomodarei mais depois que terminar de escrever esta mensagem. Aliás, já estava determinada a te esquecer desde aquele meu e-mail que ficou sem resposta. Sou boa em interpretação e entendi seu recado silencioso. Sei que pareço insistente e pegajosa, mas não posso deixar de compartilhar com você a revelação que tive hoje mais cedo, depois de quase ter morrido de tanto beber vodca na virada do ano. Pelo menos, a bebedeira serviu para clarear minha mente. Contraditório, não?
Bom, estou enrolando. É melhor eu ir direto ao assunto antes que você decida deletar a mensagem. Espero conseguir me expressar com clareza, de modo que, depois de ler este texto, você pelo menos entenda minhas atitudes durante o tempo que fiquei na Krósvia.
Joe, nunca comentei isso com você, mas desde pequena uma história se apodera de meus sonhos. Sempre a mesma história. Não que eu tenha o mesmo sonho todas as noites, mas ele é frequente, a ponto de eu conhecer intimamente cada detalhe. Começou quando eu tinha uns 7 anos e entendi que era diferente das outras crianças porque, ao contrário delas, o nome do meu pai não estava registrado na minha certidão de nascimento.
A história falsa que minha mãe me contou foi compreensível, mas deixou um buraco no meu peito, pois não é fácil para uma menininha ficar sabendo que o pai abandonou a mãe quando soube da gravidez. Claro que, na época, ela amenizou o fato, mas eu me via como a garota com o registro de nascimento incompleto.
De certa forma, acredito que o conhecimento desse episódio tenha provocado o sonho. Sei lá! O surgimento dele foi tão imediato! E olha que eu tentei entendê-lo recorrendo a tudo quanto é tipo de profissional, desde psicólogos até sensitivos. Mas ninguém me deu uma explicação satisfatória. Até que o Andrej apareceu. Ao mesmo tempo em que foi maravilhoso descobrir que eu tinha, sim, um pai e que ele também estava feliz por me conhecer, fiquei apavorada ao saber que ele era um rei e queria que eu me tornasse a princesa do país dele.
Foi aí que conectei meu sonho com a descoberta da outra metade de minha vida. Ambos pareciam tão semelhantes!
Para que você mesmo tire suas conclusões, vou resumir a história: nesse sonho, eu sempre apareço sozinha, num campo muito verde, com flores numa espécie de canteiro nas laterais. Uso um vestido amarelo-ouro, longo, tomara que caia e bem rodado a partir da cintura.
Para meu espanto, ele é idêntico a um que encontrei no armário de minha bisavó Catarina, na ilha. Pensando nisso, agora vejo claramente como tudo faz sentido. Meus cabelos estão presos num coque perfeito. Atrás de mim existe uma escadaria sem fim. Não sei para onde ela vai. Fico olhando para o alto, primeiro com uma expressão confusa, mas sorrio depois. Então, de repente, começa a ventar, e venta tanto que meus cabelos se soltam e rodopiam em volta de minha cabeça. Olho para cima outra vez e fico transtornada. Não sei o que vejo, mas não deve ser coisa boa. Em seguida, algo chama minha atenção do outro lado do campo e eu me viro. Alguma coisa me deixa contente e então estendo a mão. Mas não chego a tocar em nada, pois, quando estou prestes a fazer isso, acordo.
Não me considero uma garota espiritualista, com dons mediúnicos nem nada. Mas desde que “encontrei” o vestido amarelo do sonho, tenho me perguntado sobre a possibilidade de estar recebendo algum sinal do céu, dos deuses, sei lá! Então, concluí que o sonho foi uma premonição, um aviso para que eu me preparasse para encarar a nova vida que caiu de surpresa sobre mim.
Também deduzi que estar entre dois lados no meio da ventania simbolizava minha dificuldade de conviver com minhas duas nacionalidades: a brasileira e a krosviana. Como eu estava enganada! De certa forma. Porque o problema verdadeiro é outro. Eu só me permiti ser dividida em duas — uma Demi do Brasil e uma Demi da Krósvia — porque não enxerguei antes que só posso ser uma pessoa plena se me aceitar como a união de minhas partes.
Não posso ser só Demetria Lovato, nem só Demi Markov, pois o que define minha identidade é a soma de todos esses nomes, ou seja, sou Demetria Devonne Lovato Markov. Independentemente do país onde esteja, da língua que fale, sou uma. Portanto, não preciso optar entre o Brasil e a Krósvia. Pertenço aos dois. E, se naquele dia não acreditei em sua palavra, hoje sei que foi por medo. Inconscientemente, associei a escolha de ficar com você com a extinção de minha personalidade brasileira. Como fui burra!
A ventania de meu sonho é a paranoia que me consumiu nos últimos meses. O susto em meu olhar simboliza o tal receio de me perder. A escadaria sem fim, minha indecisão. Mas a mão que estendo para algo ou alguém que não vejo é para você, porque você é que está lá do outro lado, que é o cara que me deixou à vontade para ser eu mesma. E o vestido? Apenas um recado da Catarina. Ela queria que eu escolhesse o caminho certo e me conduziu até ele.
Pena que eu não soube reconhecê-lo no momento certo. Mas agora tudo está claro. Meu caminho é você.
Joe, se tiver lido até aqui, peço, mais uma vez, que me perdoe. Entretanto, se nossa história não tiver mais jeito, saiba que vou seguir minha vida. Já sofri e me condenei demais. Agora, chega. Também não vou desaparecer da Krósvia só para evitar esbarrar em você. Lá é meu lugar também.
Eu realmente te amo demais, mas não posso viver afundada no que perdi. Sinto sua falta. Chega a doer. Mas, se tiver que ser assim, vou superar.

Um grande beijo!
Demi

Nem sei quantas vezes reli a mensagem. Também não tinha certeza se fizera bem de escrevê-la. Mas o que mais poderia fazer? Eu devia explicações para Joseph e pelo menos pude contar a verdade, já que finalmente eu a tinha descoberto.
Fechei os olhos e enviei. Meu coração batia acelerado de tanto imaginar as repercussões daquele e-mail, se é que teria alguma. No entanto, eu não queria me iludir. Vai saber o que Joe faria quando lesse meu nome em sua caixa de entrada.

Talvez nem chegasse a abrir a mensagem. Porém, eu encerrava por ali. Não me manifestaria mais. Meu orgulho me impedia de prosseguir.