Meu caminho é você
Imaginei que o tempo seria meu
maior aliado na luta contra a doença chamada Joseph, mas me enganei.
Um mês havia se passado e eu
continuava deprimida, desgostosa, sem ânimo. Pelo menos, algo positivo
aconteceu: as fotos jamais foram publicadas. E quem resolveu esse problema não foi
nem meu pai, nem seus advogados. Soube, dias depois de desembarcar no aeroporto
de Confins, que Joe impediu a divulgação usando seu excelente poder de
persuasão. Irina me contou que ele não só ameaçou os fotógrafos como chegou a quebrar
uma das câmeras assim que eu fui embora às pressas da Ilha de Catarina.
Também ficou provada sua não
participação na emboscada. Isso foi meu pai quem me relatou, com um tom de eu
não disse? Pelo
telefone, Andrej esclareceu como tudo ocorreu:
— O namoro entre o Joe e a Laika
não andava bem há muito tempo, mesmo antes de você chegar. E ele piorou depois,
porque ela morria de ciúmes de vocês dois. Com razão, né?
— Como assim? — questionei. — Eu
não ficava dando em cima do Joseph, como se eu fosse uma piranha.
— Mas ele dava sinais de que
estava interessado em você. Por que outro motivo ficaria passeando para todo
lado com você, Demi? Quando ele deu essa sugestão, eu não refleti, mas a verdade
era clara. E a raiva da maluca da Laika foi só aumentando. A gota d’água foi o
término do namoro. Desesperada, ela contratou os paparazzi e pediu a eles que
ficassem no pé do Joe.
— Até encontrarem a oportunidade
para fazer o que fizeram — completei, totalmente sem chão.
Foi difícil encarar minha
burrice. Tanto tempo louca de amor por Joe, tanta expectativa, para eu
simplesmente estragar tudo. Como eu me odiei naquele momento! Mais horrível
ainda foi escutar meu pai dizer que Joseph ainda estava bastante magoado, a ponto
de não querer conversar comigo. E eu poderia criticá-lo? Eu fora uma megera,
uma insensível sem coração.
Aqui no Brasil, todo mundo tentou
me animar. Passei o mês de dezembro sendo paparicada em excesso por minha mãe e
meus avós. Até Selena entrou na onda deles. Resultado: o dia inteiro tinha alguém
me perguntando: você está bem?
Também tive outros problemas, a
maioria de readaptação. Eu ficara tão habituada a pensar em inglês que passei a
falar tudo misturado, muitas vezes usando palavras da língua inglesa no meio de
frases em português.
E o que posso dizer do clima? O
calor de dezembro quase me matou. Acostumada com o inverno rigoroso da Krósvia,
o verão brasileiro me levava a pensar nas camadas mais profundas da Terra. Mas
pelo menos eu continuava de férias. Portanto, consegui evitar o sol forte ao
máximo — e as pessoas também. Minhas atitudes nada sociáveis deixaram minha família
e meus amigos muito assustados. Até porque eu costumava ser uma garota
extrovertida e animada, o oposto do que havia me tornado.
Claro que a qualquer momento eu
teria que sair daquela fossa. Burra eu não sou, portanto, ou eu fazia um
esforço e me recuperava, ou ficava doente e me enterrava de vez na depressão. Então,
entendi que, para virar esse capítulo nebuloso, eu precisava tomar uma atitude.
E o primeiro passo seria me desculpar com Joseph.
Não pessoalmente, nem por
telefone, pois não possuía tanta coragem assim. Quem sabe se eu escrevesse uma
mensagem bem sincera ele acabasse me perdoando? Não custava tentar. E foi o que
fiz.
No décimo segundo dia após meu
retorno ao Brasil, sentei-me diante do computador e digitei:
De:
Demetria Lovato
Para:
Joseph Jankowski
Assunto:
Desculpa
Joe,
Nem
sei por onde começar esta mensagem. Tenho consciência do tamanho da sua mágoa
e, acredite, dou razão a você. Porque, se fosse o contrário, se você tivesse
duvidado de mim como duvidei da sua palavra, eu também teria preferido me
afastar, pois confiança é a base para qualquer relacionamento.
Estou
com vergonha da minha atitude infantil, principalmente porque minha imaturidade
causou sofrimento para muitas pessoas: meu pai, Irina, Karenina, tia Marieva,
meus primos e as meninas do Lar Irmã Celeste. E, claro, também fiz você sofrer,
depois de tudo o que fez por mim. Mas, por favor, não me queira mal.
Perdoe-me
por ter sido burra, ridícula e paranoica. Estou muito arrependida, com vontade
de voltar no tempo e fazer tudo de novo, só que da maneira certa.
Liga
para mim para a gente conversar, por favor. E, se não fizer isso, vou aceitar
sua decisão, mesmo que contrariada. Não quero perder você, Joe. Agora eu sei. Porque
eu amo você.
Simplesmente
Demi <3
Meu dedo indicador ficou
passeando pelo ícone Enviar do gerenciador de e-mails antes de finalmente clicar e mandar a
mensagem para a caixa de entrada de Joseph. Depois disso, passei algumas horas
checando meu Outlook para ver se a resposta estava lá.
Mas as horas viraram dias, que se
transformaram em semanas. E Joe nunca respondeu. Sim. Eu era cabeça-dura. Mas
igual a ele nunca conheci ninguém!
Dias mais tarde, soube por meu
pai que Joseph havia tirado umas férias e saído pelo mundo, numa dessas viagens
de mochila cheia nas costas e preocupação zero na cabeça. Então, era assim que
nossa história terminava? Cada um seguindo seu próprio caminho, em sentidos
inteiramente opostos?
O Natal chegou e passou depressa
e eu pude voltar a experimentar uma reunião de família normal. Foi legal,
porque ninguém tocou no assunto proibido. Não mencionaram sequer o nome Krósvia.
Só tive notícias de lá quando meu pai ligou à noite, mas me recusei a perguntar
sobre mais Joe e a ouvir informações sobre ele. Se era para esquecer, o
tratamento tinha que ser de choque.
Por falar em normalidade,
agradecia a Deus todos os dias por ter voltado a ser uma pessoa comum.
Felizmente, a imprensa brasileira não estava mais interessada na atrapalhada
filha do rei da Krósvia e, tirando algumas poucas ocorrências, deixaram-me em
paz. Afinal, os tabloides vivem de novidades e tinham gente famosa de verdade para
perseguir.
— Eu proíbo
você de
ficar em casa hoje. — Selena apontou o dedo para minha cara e esbravejou: — Já
lhe demos seu período de luto, mas agora chega! Não vou deixar você sofrer eternamente.
Faça-me o favor!
Era 31 de dezembro. Eu tinha
passado o dia deitada em minha cama, lendo um romance água com açúcar e
enchendo minha barriga de porcaria, tipo brigadeiro e doce de leite em barra.
Até Selena chegar e começar a metralhar meus ouvidos com sua ladainha sem fim.
Será que o ser humano não tem o direito de escolher passar sua virada de ano da
maneira que bem entender? Por acaso é algum tipo de crime escolher ficar em
casa?
Minha mãe insistira para que eu
fosse com ela a uma festa que seu buffet havia organizado. Dissera que só ia
dar gente bonita e jovem e que a banda seria uma dessas que tocam em festas de formatura.
Traduzindo: bem animada. Eu negara com veemência, mesmo ela tendo quase me arrastado
para fora da cama. Ela saíra contrariada. Eu, por outro lado, suspirara de
alívio. Seríamos apenas eu e meu livrinho.
Mas as pessoas têm a mania de
pensar que querer ficar sozinho é sinônimo de suicídio. Como se eu fosse pular
da varanda do quarto sobre o trânsito caótico da Avenida Amazonas ou enfiar a cabeça
dentro do forno com o gás ligado. Até parece. Prova disso é que nem bem curti
uma hora de solidão e Selena apareceu toda saltitante, exalando felicidade e
otimismo pelos poros. A personificação de Poliana, aquela menina ultrapositiva,
personagem de um livro que li na infância.
— Daqui a pouco é reveillon
e você aqui,
toda largada e malvestida.
Olhei para minhas roupas. Qual
mal havia em usar um short de corrida velho e a camisa do terceiro ano do
Ensino Médio se não pretendia ir a lugar nenhum?
— Selena, eu estou em casa.
Sozinha. Não sabia que precisava estar de longo.
— Ai, que engraçado! Você sabe o
que eu quis dizer, Demi. Não seja carrancuda.
Suspirei. Selena é um amor de
pessoa, mas também sabe ser uma chata quando quer.
— E o que você pretende fazer
mais tarde? — perguntei por perguntar.
— Eu, não. Nós. Nós vamos a uma
festa, uma festa super-restrita que o noivo da minha prima ajudou a organizar.
Vai ser lá no Minas Náutico Alphaville, com ninguém menos que o Fat Boy Slim.
— Ah não, Selena. Não estou no
clima de balada. O Fat Boy Slim até que é legal, mas hoje, não. Minha cabeça é
capaz de estourar num lugar desses.
— Demi, o Fat Boy Slim até que é
legal? Só legal? Você pirou, minha filha? Ele é um dos DJs mais badalados do
mundo. Fala besteira, não! E você não tem como se recusar a ir, porque para nós
a festa saiu ao estilo 0800. De graça.
Engoli em seco. A coisa estava
começando a ficar feia para meu lado. A Selena sempre tinha uma carta na manga.
— Eu tenho mesmo que ir? —
choraminguei. — Estou tão desanimada!
— Vai tomar um banho e botar uma
roupa bonita. Garanto que não vai conseguir ficar parada quando chegar lá. De
mais a mais, é hora de enterrar aquela história que estou proibida de mencionar.
Quem sabe apareça um gato novo no pedaço e tire você de uma vez por todas dessa
fossa.
— Não estou na fossa — discordei,
ainda sem me levantar da cama.
— Claro que não. — Selena revirou
os olhos e me puxou pelas mãos. — Mesmo assim, vale a pena dar uma saída.
Fiquei sabendo que o Tiago, aquele pedaço de mau caminho da Engenharia Mecatrônica,
vai estar lá. Hum... Não ligaria nem um pouco de dar uns beijos nele. Nem você,
espero.
— Pode parar. Se for para me
obrigar a ficar com qualquer um hoje, eu me recuso a ir. Não quero beijar
ninguém.
— Mas não é qualquer um, não,
minha filha, é o Tiago.
É desse jeito. Selena é que nem
criança. Não sabe receber um não como resposta. Fiquei sem saída. Ou ia com ela
àquela maldita festa ou aguentava sua ladainha descontrolada pelo resto da
vida. Nem sei o que poderia ser pior. Mas pensei melhor e concluí que deixá-la
insistir até a morte não era a opção mais adequada.
Tomei um banho rápido de chuveiro
— que saudade da banheira de meu quarto no castelo! — e coloquei um vestido
curto, simples e branco, para não fugir à tradição do réveillon. Liguei para minha mãe e avisei
que tinha resolvido sair, o que muito a agradou.
Selena e eu pegamos um táxi. Por
mais que a corrida ficasse cara, seria mais seguro. Pois quem garantiria que não
beberíamos todas? Chegamos à festa por volta das 23h. Nunca vi tanta gente
debaixo do mesmo teto. Parecia um mar de pessoas ensandecidas, sendo guiadas
pela batida da música.
— Ai, que maravilha! — gritou
Selena ao se deparar com as possibilidades. Ela sempre defendia a seguinte
teoria: quanto mais pessoas estivessem num lugar, maiores eram suas chances de
conseguir um bom amasso durante a noite. — Acho que deve ter uns 20 gatos por
metro quadrado. Uau! Deu até calor.
— Amiga, está
fazendo
calor, independente da quantidade de gatos que você esteja enxergando.
— Deixa de ser rabugenta, Demi!
Se joga na noite. E vê se esquece os problemas. Hoje é dia de curtir, de largar
o passado para trás. Vamos beber!
A festa era do tipo open
bar. Então, poderíamos
beber à vontade, pois as bebidas estavam incluídas no preço da entrada. Mas, no
nosso caso, sairiam de graça, já que tínhamos ganhado os ingressos.
— Hoje eu quero só Absolut. —
anunciou Selena aos berros, para fazer-se ouvir. E olhe que eu estava a dois
passos dela.
— Vodca? Não sei, não... —
respondi, temerosa.
Uma vez eu tomara um porre de
vodca, quando tinha acabado de completar 18 anos, e ficara mal, mas muito
mal mesmo, a
ponto de ter amnésia alcoólica. A última cena que ficara registrada em meu
cérebro fora um poste e eu agarrada a ele para não cair de cara no chão. Quando
recobrei a lucidez, já estava em casa, com a maior dor de cabeça e um balde ao
lado de minha cama. Nem preciso explicar por quê, né?
— Ah, só um pouquinho não vai
fazer mal.
— O problema é a gente ficar no
“só um pouquinho”.
— Vamos tentar, ok?
E lá fomos nós! Começamos
timidamente mas nem bem chegamos aos últimos minutos do ano e já estávamos meio
tontas. Ou melhor, eu estava. Porque, num determinado momento, acho que Selena
parou de beber. Pelo menos, não vi mais nenhum copo na mão dela.
E aí houve a contagem regressiva
para o término do ano, seguida de uma chuva de papel prateado picado e muito
champanhe estourando sobre a multidão. De repente, fui abraçada por pessoas que
nunca tinha visto na vida, mas àquela altura não me importava muito com isso.
Até que o calor humano estava agradável. Ou seria a Absolut?
— Selena, já falei que você é uma
amiga maravilhosa? — Quem pensa que a frase saiu bonitinha assim está enganado.
Levei uns 15 segundos para pronunciar aquelas nove palavras. — E que eu tenho
muita sorte?
— É claro que tem — concordou
ela, mais sóbria, mas nem tanto. — Além de ser minha amiga, é também uma
princesa. De verdade.
— É... E meu pai é um rei e ele
mora num castelo. E eu deixei todas as minhas roupas bonitas lá!
Alguém esbarrou em mim, quase
levando-me ao chão. Eu me segurei a tempo no braço de Selena e soltei uma
gargalhada de hiena, horrorosa. Mas logo a gargalhada se transformou em choro e
um guincho agudo escapou de minha garganta.
— Larguei tudo para trás, Selena.
Meus Manolos, meu Dior Couture, minhas lingeries da Victoria’s Secret. Eu quero
tudo de volta. Estou com saudade até do Bruce, aquele labrador pateta.
— Por que você não liga para o
seu pai e diz isso para ele? — sugeriu minha amiga, tentando se equilibrar em
cima de seus sapatos meia pata de verniz rosa-choque.
— Porque eu bebi muito e ele vai
brigar comigo e eu não lembro o número do celular dele! — Minhas lágrimas
desciam copiosamente.
— Então, liga para o Joe. Isso!
Liga para ele, Demi. Diz que tá aqui totalmente bêbada e que a culpa é dele.
Dei outra gargalhada medonha. Que
vexame!
— Você tá louca! Não posso fazer
isso. Ele não quer mais saber de mim. — Mais choradeira.
— Porque você é uma tonta. Como
conseguiu dormir com ele e dizer tanta asneira no dia seguinte?
— Psiu! Fala baixo! Quer que todo
mundo saiba desse detalhe?
— Ah, e daí? De que importa para
esse povo se você não é mais virgem?
Sabe esses momentos peculiares da
existência do ser humano nos quais o universo inteiro parece conspirar contra
você? Pois é. Ultimamente, o universo resolveu me fazer de Cristo. A música fez
uma pausa justamente no instante em que Selena berrou aos quatro ventos aquela
maldita frase. E todo ser vivo num raio de 20 metros escutou com nitidez a
indagação infeliz de minha amiga.
Olhei para ela com ódio, quase
curada da embriaguez, e saí marchando — quero dizer, cambaleando — até a porta
de saída, ouvindo risinhos ordinários enquanto eu passava.
Selena me seguiu.
— Demi, volta aqui! Que culpa eu
tenho se a música parou bem na hora?
— Táxi! — Balancei a mão no ar,
igual a uma donzela de filme de época, mas muito mais desajeitada. — Eu vou
embora. Já chega.
— Para com isso, amiga. Relaxa.
Ninguém ali dentro te conhece. Quero dizer, não se a gente não contar para eles
que você é a Demi Markov.
— Lovato Markov — corrigi.
— Você tá completamente bêbada,
Demi. Não pode ir para casa assim. E se o taxista for um tarado?
— Que tarado o quê, Selena! Nunca
ouvi nenhuma história de taxista estuprador. Agora, me deixa ir. É verdade. Eu
tô bêbada. Prefiro passar mal em casa.
Com uma sincronia perfeita, um
táxi brecou bem a meu lado e eu entrei pela porta de trás, enquanto tentava
lembrar meu endereço para passar ao motorista. Maldita vodca!
— Então eu vou com você. — Selena
me empurrou para o meio do banco e se sentou, bufando de contrariedade.
Pelo retrovisor, o taxista nos
olhou com impaciência, talvez desejando ter passado a madrugada comemorando a
virada de ano em vez de transportar passageiras com alto teor alcoólico no
sangue e zero juízo na cabeça.
— Para onde, senhoritas?
— Para a Krósvia! — gritei,
iniciando mais uma sessão de lágrimas.
— Hein?
— Desculpa, moço. Minha amiga
aqui não tá passando bem e se confundiu — Selena disse com a voz mais doce do
mundo e uma fúria assassina no olhar. Depois explicou o endereço certo.
— Perto da Praça da Assembleia? —
quis saber o motorista, um pouco mais amistoso.
— Issssssso — confirmei, tanto
com a boca quanto com o dedo indicador, que mexia para baixo e para cima, como
o Chaves da televisão.
— Tsc, tsc. Essa meninada de hoje
só sabe beber — resmungou o taxista para si mesmo.
— Moço, hoje é reveillon
— Selena argumentou.
— Normalmente não fazemos isso, não, sabia?
Ele só balançou a cabeça, nem um
pouquinho convencido.
— Ah... Queria que ele fosse o
Jorgensen... — solucei. — Por que, hein, moço? Por que você não pode ser o
Jorgensen?
— Demi, pelo amor de Deus!
— O Jorgensen era bonzinho comigo
e me levava para onde eu queria. E você — quase enfiei o dedo na cara pálida do
motorista — está me magoando.
— Demi! Quer calar essa boca? —
Selena esbravejou e depois disse baixinho, em meu ouvido: — E se ele resolver
deixar a gente na BR ou no meio da Raja Gabaglia?
— Então, põe uma música! Pelo
menos tem música neste carro? — indaguei, com uma mão em cada encosto de cabeça
dos bancos da frente, prestes a meter o indicador no botão “ligar” do aparelho
de som.
— Só tenho música sertaneja —
respondeu o motorista, meio que se justificando. — Vocês gostam?
— Sim — disse Selena, resignada.
— Serve — respondi, desanimada.
— Humpf — fez ele.
De repente, a voz anasalada de
Luan Santana dominou o interior do veículo. Num dia normal, eu não prestaria
muita atenção, pois não sou fã desse gênero musical. Mas naquela hora soltei a
voz — num volume bem alto — e cantei junto com ele. Gritei mesmo. Selena até
tapou os ouvidos e fez careta. O taxista devia estar se perguntando se merecia
aquele castigo.
— Eu quero o Joe! — desatei a
chorarnovamente. Dali para a frente eu só chorei, que nem criança contrariada.
Até o pobre coitado do motorista
se sensibilizou e me passou uma caixa de lenços de papel, gentileza que eu
aceitei prontamente.
— Por que ela está tão triste? —
escutei-o perguntar para Selena.
— Desilusão amorosa.
— Entendo — concordou o taxista,
cheio de piedade no olhar. — Escuta, filha. Não fique triste. Já passei por
isso. Fique tranquila que o tempo cura tudo, viu?
Funguei. Olhei para Selena e a vi
encolhida de vergonha. Não entendi o motivo. Eu só estavabotando para fora todo
o meu desespero. Que mal havia nisso?
Só sei que em poucos minutos
paramos em frente do meu prédio. Mal consegui alcançar o elevador sem quase
cair umas três vezes. Selena melhor do que uma fossa bem curtida na companhia
da completa solidão.
***
— Ai, minha cabeça —
choraminguei, enquanto tentava me levantar da cama para tomar um comprimido de
Neosaldina.
— Que bonito, né, Demetria? Bebendo
sem moderação!
Seriam meus tímpanos ou a voz de
minha mãe havia subido para uns 200 decibéis?
— Não me diga que agora vai
começar a compensar suas mágoas com bebida?
Joguei o travesseiro sobre o
rosto e abafei um grito. Tinha uma caixa de abelha zunindo dentro de meu
cérebro e minha mãe ficava armando sermão.
— Mãe — gemi —, pode acreditar. A
bebedeira de ontem foi um fato isolado. Não vou virar alcoólatra por isso, né?
Agora, me deixa dormir. Ainda é muito cedo.
— Realmente — disse ela,
escancarando as cortinas para que eu visse o céu. — Cedo demais, afinal são
“só” cinco horas da tarde.
Como era horário de verão, o sol
ainda reluzia sobre a cidade.
— Você está dormindo há mais de
12 horas. E deve ter tido um sono agitado, pois gemeu e falou o tempo inteiro,
principalmente o nome do Joe.
Encolhi. Por que o amor nos
transforma em seres tão ridículos?
— Não me diga que continua tendo
aquele sonho recorrente. Pensei que já tivesse passado.
Olhei para minha mãe, não
querendo exatamente enxergá-la, mas fiquei pensando sobre o que ela disse,
sobre os dois assuntos que mamãe, sem querer, abordou na mesma conversa. Ela afirmou
que eu havia dito o nome de Joe enquanto dormia e perguntou se meu sonho recorrente
ainda existia.
De repente, algo se acendeu
dentro de mim.
Foi como se uma luz tivesse
entrado em minha cabeça para iluminar meu raciocínio. Por que eu nunca tinha
feito as conexões corretas? Por que ficara cega por tanto tempo? O tempo todo,
a resposta estivera bem na minha frente.
— Está escutando, Demi?
— O quê? — Minha cabeça estava
longe.
— Eu mandei você levantar dessa
cama e tomar um banho para ver se esse corpo melhora. Depois, vê se come alguma
coisa. Fiz uma lasanha. Vou ter que sair agora, pois tenho um evento mais tarde.
Concordei. Mas, depois de minha
brilhante constatação, concordaria com tudo para me livrar logo de minha mãe.
Assim que ela saiu, fui para o chuveiro. Prestes a tomar uma decisão
importante, eu precisava estar cem por cento segura a respeito do que faria. Minha
boca continuava seca, sintoma da bebedeira da noite anterior, mas meu corpo não
exalava mais nenhum cheiro da noitada.
Respirando fundo para acalmar
meus ânimos, liguei o computador, acessei o gerenciador de e-mails e me pus a
escrever o texto mais difícil — e também o mais libertador — de minha vida.
De:
Demetria Lovato
Para:
Joseph Jankowski
Assunto:
Meu lugar
Querido
Joseph,
Esta
é a última vez que procuro você. Prometo que não o incomodarei mais depois que
terminar de escrever esta mensagem. Aliás, já estava determinada a te esquecer
desde aquele meu e-mail que ficou sem resposta. Sou boa em interpretação e
entendi seu recado silencioso. Sei que pareço insistente e pegajosa, mas não
posso deixar de compartilhar com você a revelação que tive hoje mais cedo,
depois de quase ter morrido de tanto beber vodca na virada do ano. Pelo menos,
a bebedeira serviu para clarear minha mente. Contraditório, não?
Bom,
estou enrolando. É melhor eu ir direto ao assunto antes que você decida deletar
a mensagem. Espero conseguir me expressar com clareza, de modo que, depois de
ler este texto, você pelo menos entenda minhas atitudes durante o tempo que
fiquei na Krósvia.
Joe,
nunca comentei isso com você, mas desde pequena uma história se apodera de meus
sonhos. Sempre a mesma história. Não que eu tenha o mesmo sonho todas as
noites, mas ele é frequente, a ponto de eu conhecer intimamente cada detalhe.
Começou quando eu tinha uns 7 anos e entendi que era diferente das outras
crianças porque, ao contrário delas, o nome do meu pai não estava registrado na
minha certidão de nascimento.
A
história falsa que minha mãe me contou foi compreensível, mas deixou um buraco
no meu peito, pois não é fácil para uma menininha ficar sabendo que o pai
abandonou a mãe quando soube da gravidez. Claro que, na época, ela amenizou o
fato, mas eu me via como a garota com o registro de nascimento incompleto.
De
certa forma, acredito que o conhecimento desse episódio tenha provocado o
sonho. Sei lá! O surgimento dele foi tão imediato! E olha que eu tentei
entendê-lo recorrendo a tudo quanto é tipo de profissional, desde psicólogos
até sensitivos. Mas ninguém me deu uma explicação satisfatória. Até que o
Andrej apareceu. Ao mesmo tempo em que foi maravilhoso descobrir que eu tinha,
sim, um pai e que ele também estava feliz por me conhecer, fiquei apavorada ao
saber que ele era um rei e queria que eu me tornasse a princesa do país dele.
Foi
aí que conectei meu sonho com a descoberta da outra metade de minha vida. Ambos
pareciam tão semelhantes!
Para
que você mesmo tire suas conclusões, vou resumir a história: nesse sonho, eu
sempre apareço sozinha, num campo muito verde, com flores numa espécie de
canteiro nas laterais. Uso um vestido amarelo-ouro, longo, tomara que caia e
bem rodado a partir da cintura.
Para
meu espanto, ele é idêntico a um que encontrei no armário de minha bisavó
Catarina, na ilha. Pensando nisso, agora vejo claramente como tudo faz sentido.
Meus cabelos estão presos num coque perfeito. Atrás de mim existe uma escadaria
sem fim. Não sei para onde ela vai. Fico olhando para o alto, primeiro com uma
expressão confusa, mas sorrio depois. Então, de repente, começa a ventar, e
venta tanto que meus cabelos se soltam e rodopiam em volta de minha cabeça.
Olho para cima outra vez e fico transtornada. Não sei o que vejo, mas não deve
ser coisa boa. Em seguida, algo chama minha atenção do outro lado do campo e eu
me viro. Alguma coisa me deixa contente e então estendo a mão. Mas não chego a
tocar em nada, pois, quando estou prestes a fazer isso, acordo.
Não
me considero uma garota espiritualista, com dons mediúnicos nem nada. Mas desde
que “encontrei” o vestido amarelo do sonho, tenho me perguntado sobre a
possibilidade de estar recebendo algum sinal do céu, dos deuses, sei lá! Então,
concluí que o sonho foi uma premonição, um aviso para que eu me preparasse para
encarar a nova vida que caiu de surpresa sobre mim.
Também
deduzi que estar entre dois lados no meio da ventania simbolizava minha
dificuldade de conviver com minhas duas nacionalidades: a brasileira e a
krosviana. Como eu estava enganada! De certa forma. Porque o problema
verdadeiro é outro. Eu só me permiti ser dividida em duas — uma Demi do Brasil
e uma Demi da Krósvia — porque não enxerguei antes que só posso ser uma pessoa
plena se me aceitar como a união de minhas partes.
Não
posso ser só Demetria Lovato, nem só Demi Markov, pois o que define minha identidade
é a soma de todos esses nomes, ou seja, sou Demetria Devonne Lovato Markov.
Independentemente do país onde esteja, da língua que fale, sou uma. Portanto,
não preciso optar entre o Brasil e a Krósvia. Pertenço aos dois. E, se naquele
dia não acreditei em sua palavra, hoje sei que foi por medo. Inconscientemente,
associei a escolha de ficar com você com a extinção de minha personalidade
brasileira. Como fui burra!
A
ventania de meu sonho é a paranoia que me consumiu nos últimos meses. O susto em
meu olhar simboliza o tal receio de me perder. A escadaria sem fim, minha indecisão.
Mas a mão que estendo para algo ou alguém que não vejo é para você, porque você
é que está lá do outro lado, que é o cara que me deixou à vontade para ser eu
mesma. E o vestido? Apenas um recado da Catarina. Ela queria que eu escolhesse
o caminho certo e me conduziu até ele.
Pena
que eu não soube reconhecê-lo no momento certo. Mas agora tudo está claro. Meu
caminho é você.
Joe,
se tiver lido até aqui, peço, mais uma vez, que me perdoe. Entretanto, se nossa
história não tiver mais jeito, saiba que vou seguir minha vida. Já sofri e me
condenei demais. Agora, chega. Também não vou desaparecer da Krósvia só para
evitar esbarrar em você. Lá é meu lugar também.
Eu
realmente te amo demais, mas não posso viver afundada no que perdi. Sinto sua
falta. Chega a doer. Mas, se tiver que ser assim, vou superar.
Um
grande beijo!
Demi
Nem sei quantas vezes reli a
mensagem. Também não tinha certeza se fizera bem de escrevê-la. Mas o que mais
poderia fazer? Eu devia explicações para Joseph e pelo menos pude contar a
verdade, já que finalmente eu a tinha descoberto.
Fechei os olhos e enviei. Meu
coração batia acelerado de tanto imaginar as repercussões daquele e-mail, se é
que teria alguma. No entanto, eu não queria me iludir. Vai saber o que Joe
faria quando lesse meu nome em sua caixa de entrada.
Talvez nem chegasse a abrir a
mensagem. Porém, eu encerrava por ali. Não me manifestaria mais. Meu orgulho me
impedia de prosseguir.