Capítulo 1
A
Filha do Rei
Diga o que você faria se, ao
abrir seu perfil no Facebook, desse de cara com esta mensagem, em inglês:
“Desculpe, mas acho que sou seu pai.”
Acho que fiquei uns cinco minutos
em estado de choque, imóvel em frente do computador, lendo e relendo essa única
frase que não revelava nada, mas, ao mesmo tempo, queria dizer tudo. Isso
porque eu nunca soube quem era meu pai. A história que minha mãe me conta desde
sempre é a seguinte:
Assim que fez 18 anos, ela foi
para a Inglaterra, onde ficaria estudando inglês por um ano. Lá, conheceu meu
pai, um estudante de Oxford, estrangeiro como ela, de um pequeno país da Europa
chamado Krósvia. Minha mãe conta que meu pai era um cara bem bonito e
simpático, de conversa agradável, e ficou a fim dela logo de cara. No
princípio, foram só amigos e saíram juntos para ir ao cinema, almoçar, visitar
pontos turísticos. Mas não demorou muito e começaram a namorar.
Segundo minha mãe, eles não se
desgrudavam, e era tão bom ficar com ele que ela chegou a cogitar a
possibilidade de estender sua estadia em Londres. Ele pareceu adorar a ideia. E
tudo ia muito bem, até que meu pai passou a ficar distante e viajar constantemente,
sem revelar o motivo.
Nesse meio-tempo, minha mãe
descobriu que estava grávida e se apavorou. Com razão; afinal, ela só tinha 18
anos. E então, quando contou a novidade para meu pai, ele pulou fora. Simplesmente
deu as costas para ela e se mandou de volta para o país dele.
Meus avós buscaram minha mãe na
Inglaterra e a apoiaram, para o bem dela, que tinha ficado totalmente
desnorteada com a situação. Ela nunca mais teve notícias de meu pai. Eu cresci
imaginando as piores coisas sobre ele e sem a menor vontade de conhecê-lo.
Adulta, eu já nem pensava mais
nessa história toda e provavelmente jamais voltaria a pensar se essa mensagem
não tivesse aparecido na minha frente, assim, do nada, com direito a uma foto
do homem que dizia ser meu pai ao lado da mensagem.
Sem raciocinar, resolvi
responder. Eu sei, eu sei, não sou uma boba que cai na conversa de qualquer um
que esteja conectado à Internet. É claro que aquele cara poderia ser um maluco qualquer.
Mas não foi nem a foto nem o texto que me induziram a responder. Foi seu nome:
Andrej Markov. Só alguém nascido lá pelos lados da Rússia ou do Leste Europeu
mesmo poderia ter um nome desses! E bendito seja o Google, que esclarece todas
as nossas dúvidas, porque só precisei copiar e colar aquele nome no espaço de busca
para descobrir de quem se tratava.
*
— Por que só agora você resolveu
me procurar?
Sentada no terraço da suíte
presidencial do Hotel Ouro Minas, de frente para um homem que até poucos
minutos antes não existia para mim, mas era absurdamente parecido comigo — o
olhar, a cor dos cabelos —, só uma coisa passava por minha cabeça: Por
que agora?. De acordo
com a versão de minha mãe, ele não quisera saber de mim. Se ficara 20 anos sem
dar notícias, devia ser porque continuava sem interesse nenhum na filha. E, do
nada, ele resolvera aparecer...
Eu não deveria ter ido lá. Mas a
curiosidade foi maior do que a indignação, principalmente por ser ele quem era.
Portanto, enquanto Andrej Markov não explicasse o motivo de seu súbito aparecimento,
eu não sairia dali.
— Eu não sabia sobre você. — A
voz de meu suposto pai soou firme, mas deu para sentir o nervosismo
transparecendo bem lá no fundo.
Por falta de palavras, dei um
sorriso irônico. Dizer que não tivera conhecimento da gravidez de minha mãe era
demais!
— É verdade — insistiu ele, em
inglês. Óbvio que ele não entendia minha língua. Sorte minha que sou fluente em
inglês, embora nunca tenha morado fora do país. — Sua mãe terminou comigo e
desapareceu. Disse que não queria manter o namoro e voltaria para o Brasil.
— Humpf.
— Esqueci
como se diz “ah, que beleza”.
— Acredite, Demetria...
— Demi. Só Demi.
— Ok. Demi. Eu preciso que
acredite em mim, porque jamais soube de você, jamais soube que seria pai e
nunca mais procurei sua mãe porque ela desmanchou o namoro e nós éramos muito
jovens. É claro que eu namorei outras garotas depois dela e, sim, ela ficou no
passado. Não pensei mais na Dianna até esta semana, quando cheguei ao Brasil.
— Você quer que eu acredite que
minha mãe mentiu para mim esse tempo todo? — Acho que o início de um sentimento
de raiva acabou me fazendo reencontrar as palavras, que saíram de minha boca
num tom mais elevado do que eu gostaria.
— E para mim também — suspirou
ele, pegando em minhas mãos, e eu deixei que ele as segurasse. — Achar você foi
a maior coincidência da minha vida.
Assenti sem falar nada.
Meu suposto pai me contou que,
enquanto se arrumava para uma reunião com a presidente brasileira (Olha o nível
do cara! Eu não consigo ser recebida nem pelo reitor da universidade em que
estudo), deixou a televisão do quarto ligada como distração, mesmo não
compreendendo o idioma. Estava passando um programa de culinária, desses
matinais, com apresentadoras loiras e simpáticas, e ele não deu muita atenção. Até
que surgiu no cenário uma mulher bonita, charmosa, na casa dos 40 anos, que por
algum motivo o fez fixar o olhar na tela.
— Percebi que havia algo familiar
nela — disse ele, com um olhar distante. — Então, a apresentadora chamou-a pelo
nome e eu tive certeza.
Fiquei quieta, esperando que ele
continuasse. Aquilo tudo era muito improvável, mas eu tinha que admitir: estava
realmente acontecendo e, pior, fazia muito sentido.
O rei (sim, rei!) Andrej
(pronuncia-se Andrei, com i) revelou que ficou assistindo ao programa, meio que
enfeitiçado pela visão de minha mãe, até que a apresentadora começou a fazer
algumas perguntas mais pessoais. Como não compreendia as falas, ele pediu ao
intérprete que o acompanhava que traduzisse.
— Sua mãe se esquivou de algumas perguntas,
mas, quando a mulher falou sobre família, Dianna não hesitou e contou muitas
coisas sobre você.
Ele me encarou. Não dava para
ignorar a emoção que transbordava dos olhos dele e eu fiquei sufocada. Cara,
minha mãe mentiu para mim a vida inteira!
— Ela disse que você estudava
Direito e que era muito inteligente, além de linda.
Senti minhas bochechas
esquentarem. Não acredito que minha mãe disse essas coisas no ar, para milhões
de telespectadores. E que meu suposto pai estava repetindo toda essa baboseira bem
na minha cara. Que vergonha...
Andrej apertou minhas mãos nas
suas e me encarou.
— O resto foi fácil. Achar você,
quero dizer.
Assenti. Nem se eu vivesse mais
mil anos imaginaria que um dia poderia ficar sentada diante de um rei de
verdade e que a atenção dele estaria toda voltada para mim.
Eu
tenho um pai, pensei. E
ele é um rei.
— Então, eu sou uma princesa?
Ele riu.
— Sim, Demi. Você é uma princesa,
herdeira de tudo o que eu tenho. Não tive outros filhos, embora tenha me
casado, e vai ser a maior alegria da minha vida compartilhar tudo com você,
minha filha.
Quando Andrej fez menção de me
abraçar, desvencilhei-me rapidamente. Calma aí! Já pulamos para esse nível? Já
estamos falando de vida em família?
— Olha só, Andrej — comecei,
devagar, tentando demonstrar maturidade e controle, o contrário do que sentia.
— Eu nem conheço você. Mesmo que eu seja sua filha de verdade, e isso ainda não
foi confirmado, acho que é meio tarde para começarmos uma relação de pai e
filha agora.
— Nada disso. Não concordo —
retrucou ele, cheio de convicção. — E tenho certeza de que você é minha filha.
Por acaso não percebeu como somos parecidos?
É. Eu tinha percebido, sim. Minha
visão funciona muito bem.
— Preciso falar com minha mãe —
disse, por fim.
— É claro. Eu também gostaria de
falar com ela.
Concordei. Era hora de ouvir o
outro lado da história.
*
Minha mãe é uma mulher branca,
com um leve tom dourado na pele, adquirido nas horas trabalhando a céu aberto,
quando está realizando eventos ao ar livre. Por isso é que fiquei tão chocada
ao vê-la empalidecer, como se tivesse visto um fantasma. Tudo bem, foi como se
ela tivesse realmente visto um fantasma, só que no sentido metafórico.
A cor de Andrej Markov também não
estava das melhores. Os dois ficaram encarando um ao outro com tanta surpresa
no olhar que chegava a ser palpável. Naquele momento, tive certeza: estava
diante de meus pais e nenhuma palavra que minha mãe dissesse conseguiria negar
isso.
Eu poderia até pirar
por conta
dessa reviravolta em minha vida! Não ter um pai já era ruim, mas descobrir que
minha mãe e talvez até meus avós mentiram descaradamente sobre isso por anos
era pior. Bem pior.
— O que você está fazendo aqui? —
minha mãe perguntou num inglês perfeito, mas com a voz carregada de sentimentos
não definidos.
Andrej sorriu de um jeito meio constrangido,
meio emocionado, e disse:
— Acho que você ficou com uma
coisa minha quando me deixou.
Uau!
Que resposta!
Estávamos os três no escritório
da empresa de minha mãe (ela é dona de um buffet), todos de pé, mas eu fiquei
mais afastada, assistindo ao diálogo dos dois como se fosse só uma espectadora
de um drama mexicano. Ninguém pareceu sentir falta de minha participação na discussão,
que transcorreu mais ou menos assim:
MÃE: — Como foi que nos
encontrou?
PAI: — Você acha que isso é o
mais importante agora? Depois desse tempo todo, nem uma maldita palavra! Como
você teve coragem de esconder nossa filha de mim?
Meu coração perdeu uns dois
batimentos. Era estranho escutar um homem se referir a mim como filha.
MÃE: — Quem disse que a Demi é
sua filha? Você está deduzindo isso baseado no fato de ela ter 20 anos?
PAI: — Não, estou simplesmente
seguindo o princípio de que a Demi é a minha cara.
Ei,
caso eles não tenham percebido, a Demi está aqui, bem na frente deles.
Minha mãe bufou de um jeito nem
um pouco bonito.
MÃE: — Até parece! A Demi, a sua
cara?
PAI: — Você sabe que sim. Mas não
é só por isso. Dianna, você fugiu da Inglaterra de uma hora para outra e
terminou comigo sem explicar direito o motivo. Eu não imaginei naquela época
que fosse por causa de uma gravidez. Mas agora tudo faz sentido. Você ficou com
medo.
Minha mãe abaixou a cabeça e
pôs-se a encarar as pontas finas de seus sapatos de salto altíssimo. Ela ainda
é muito bonita e se veste muito bem. Nós não somos parecidas. Enquanto ela tem
os cabelos escuros e meio ondulados, olhos quase negros e uma elegância nata,
eu nasci para ser comum. Meus cabelos são lisos e são castanho-claros,
acobreados. Meus olhos são acinzentados e não sou nem um pouco elegante. Estou
mais para básica. Resumindo: minha mãe gosta de saltos; eu, de sapatilhas.
MÃE: — Eu tive razão para ter
medo, você não acha?
Embora a voz dela tenha saído bem
baixinho, acho que minha mãe acabara de assumir que Andrej era mesmo meu pai...
MÃE: — Você é um rei. Eu deveria
ter ficado longe de você desde que soube desse “detalhe”. Não temos nada a ver
um com o outro. E uma filha ilegítima certamente não se encaixaria nos planos
dos seus pais para você.
Andrej suspirou, enquanto eu
prendi a respiração. Ele passou as mãos repetidas vezes pelos cabelos, acho que
tentando articular o que pretendia dizer. E então falou:
PAI: — Dianna, que pena que você
acredite demais em contos de fadas.
MÃE: — C-como a-assim?
PAI: — A família real de Krósvia
leva outro tipo de vida. Somos tão humanos como qualquer pessoa. Sua gravidez
teria sido recebida com um susto, sim, porque éramos muito jovens, mas jamais
com desprezo. Já passou pela sua cabeça que nós poderíamos ter nos casado?
MÃE: — Rá! Você diz isso agora.
Queria ver se fosse naquela época.
PAI: — Não, você não queria. Por
isso fugiu.
Andrej estava certo. Minha mãe
fora covarde. Por outro lado, até entendo o lado dela. Afinal, ele era um rei,
e o que sabemos das famílias reais que existem por aí? Basta procurar Lady Di
no Google.
O celular de meu pai tocou antes
que ele recebesse uma nova réplica de minha mãe e ele se virou para atender.
Só então ela notou minha
presença. Olhou para mim com olhos suplicantes, aguardando minha reação. É
claro que não fugi, nem gritei com ela, nem disse que não queria vê-la nunca
mais. Pelo amor de Deus, já sou bem grandinha, dá para pular a parte da
revolta. Cheguei perto e segurei as mãos dela, que estavam frias e trêmulas. E
disse:
— Você poderia ter me contado,
mãe. Eu entenderia.
Então ela chorou, em silêncio
mesmo. E eu soube naquele momento que não importava ter ficado sem um pai por
20 anos. Porque eu pude ter minha mãe comigo nesses anos todos.
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