Sou brasileira, com muito orgulho, com muito amor
Sabe quando o professor marca
prova oral e você fica esperando sua vez de ser chamada? As mãos ficam geladas,
o coração bate acelerado, a garganta se fecha. Não é assim?
Pois eu estava me sentindo desse
jeito a caminho de Craiev. Tudo bem que Andrej estava a meu lado — ou melhor,
no banco da frente — e, pela primeira vez desde que cheguei à Krósvia, éramos
só nós dois. Exceto pelo motorista, Jorgensen.
Para não chamar a atenção, Andrej
abrira mão de visitar a irmã num dos carros da família real. Fomos num veículo
alugado por Jorgensen, como dois meros mortais. Aparentemente, a viagem seguia
tranquila. Sem o celular na orelha e o notebook no colo, meu pai e eu estávamos
conseguindo desenvolver uma conversa com mais de cinco frases. Falamos do
tempo, de meus passeios com Joseph, de minha adaptação, da festa de
apresentação da filha do rei para o povo... Assuntos não faltavam.
Andrej é um sujeito interessante.
Ele sabe escutar quando alguém fala com ele e raramente julga as atitudes das
pessoas. Quando revelei que estava com medo de aparecer na frente de todo mundo,
ele concordou com a cabeça e se virou para apertar meu joelho. Em momento
nenhum disse que seria fácil. Não mentiu. Isso, de certa forma, era reconfortante,
pois eu soube que podia confiar nele.
Apesar disso, nada tirava de mim
a aflição por estar indo conhecer meus parentes. Agora a tal da tia Marieva já
sabia sobre mim. Andrej não quisera chegar à casa dela de supetão e dizer: Eis
aqui minha filha Demi. Preferira
prepará-la primeiro. Melhor assim, eu acho.
E até que a reação dela fora bem
tranquila. De acordo com meu pai, minha nova tia recebera a notícia com
euforia. Eu queria só ver.
Mas não era só isso que estava me
atormentando. Desde o dia anterior, eu sentia meu coração perder um ou dois
compassos sempre que pensava em Joe e naquela despedida esquisita. Duas coisas
ficavam martelando minha cabeça: ele ter dito “nossos momentos” e “assuntos complicados”.
Por que, como assim? O pronome nosso é tão íntimo, não é? Eu acho. Nosso
é meu e seu,
é compartilhamento. Se os momentos eram nossos, é porque deviam ser especiais.
Será que eu estava viajando nas ideias?
E se os assuntos eram
complicados, significava que o relacionamento deles não estava bom? Por mais
que eu não fosse “a melhor amiga” de Joseph, era muito esquisito eu nunca ter
sido apresentada a tal Laika. Namorados não vivem sempre juntos? Pelo menos, é
isso que se espera deles, ora.
Eu não deveria me preocupar
tanto. Joseph era apenas um ser humano a mais no mundo e, se eu ficava pensando
nele de vez em quando, era por estar longe de meus amigos e das pessoas que
amo. Enfim, nada de mais. Também havia a questão da aparência e tal. Nós,
garotas, somos muito suscetíveis à beleza. Gostamos de sapatos por serem belos,
cara!
Desculpe se pareço superficial,
mas a beleza externa serve para ser apreciada. Claro que num relacionamento de
verdade isso conta muito pouco. Ou só um pouco.
O que eu precisava mesmo era
deixar aquela maldita frase de lado e esquecer tudo. Estava só de passagem na
Krósvia e, em breve, tudo voltaria ao normal. Ou seja, eu, no Brasil, sendo simplesmente
Demetria Devonne Lovato, sem Markov.
Por falar nisso, Andrej queria
porque queria mexer em minha certidão de nascimento. Ele fazia questão de
preencher o campo PAI em meu documento, vazio desde que nasci. Tudo bem. Eu aceitei
acrescentar o sobrenome Markov a meu já comprido nome. Tá, tá... Fiquei feliz.
Muito. Pronto, falei.
— Olhe ali a casa da sua tia,
Demi.
De repente, a viagem acabou. Meu
pai interrompeu meus pensamentos e meu nervosismo subiu à quinta potência.
Enquanto Jorgensen manobrava o
carro, fiquei olhando para o lugar. Craiev era uma cidade do interior, mas nem
por isso parada no tempo. O bairro de Marieva era bem moderno e cheio de construções
novas — e caras.
— Dê uma olhada para lá.
Ao virar o rosto na direção
apontada por Andrej, dei de cara com três crianças paradas na varanda. Atrás
delas, uma mulher mais velha do que eu acenava para nós com um imenso sorriso nos
lábios. Respirei fundo para adquirir confiança.
Desci do carro com as pernas
bambas. E, antes de dar dois passos, fui atingida por três cabeças loiras e
seis braços branquíssimos. Meus primos.
— Crianças, deem espaço para a
Demi. — Marieva também se aproximou. — Ela deve estar cansada. — Então ela me
viu de perto. E abriu a boca num “o” chocado. — É a sua cara, Andrej!
A constatação foi imediata, assim
como o abraço que recebi em seguida. Afinal, a tia Marieva parecia ser tão
simpática quanto o irmão.
— Oi — respondi, meio sem graça.
As crianças continuaram me
rodeando, como se eu fosse um duende do Papai Noel. E eram tão fofas! Duas
meninas e um menino, o menorzinho de todos. A euforia deles era tanta que me
abaixei para igualar nossos tamanhos. Falei:
— Oi! Eu sou a Demi. Tudo bem?
A garotinha do meio, desde já
mostrando-se a mais articulada, respondeu em inglês, que é definitivamente a
segunda língua do país:
— Sim! Eu sou a Giovana, minha
irmã é a Luce e o pequeno aqui é o Luka. É verdade que somos primos?
Uns fofos mesmo. Aquele pedacinho
de gente não poderia ter mais do que 6 anos.
— Sim — disse Marieva, puxando-me
pela mão e mais uma vez me encarando. — Estávamos ansiosos para conhecer você,
Demi. Quando seu pai contou a história sobre vocês, fiquei muito contente. Só
achei um absurdo ele ter demorado tanto para me contar. Eu teria ido a Perla
para recebê-la.
Sorri. E completei:
— Também estava ansiosa. Até com
medo — confessei. — Não sabia como seria recebida.
— Que bobagem! — Ela passou o
braço sobre meus ombros, um gesto tão casual, mas ao mesmo tempo carinhoso. —
Andrej merecia esse prazer na vida.
Vi meu pai revirar os olhos.
Estava constrangido, sim, mas também orgulhoso, como pude constatar pelo brilho
no olhar.
Fomos caminhando em direção à
casa, tão chique como as que vemos nas revistas de decoração. Meus três
priminhos saltitavam atrás de nós e volta e meia tentavam chamar minha atenção.
Tão lindos! Todos loirinhos. Mas, enquanto as meninas tinham cabelos lisinhos e
cortados à altura das costas, Luka parecia um anjo. Era cheio de cachinhos que
desciam pela testa, orelhas e nuca. Os olhos dos três eram tão azuis que
lembravam o mar num dia bem ensolarado.
Marieva também era assim: muito
loira, muito branca, de olhos muito azuis. Somente o formato do rosto lembrava
um pouco o de Andrej. Mas ela também era bem bonita e jovem. Calculei que devia
estar na casa dos 37 anos.
— O Marcus está lá nos fundos —
anunciou minha nova tia. — Insistiu em preparar um churrasco, porque leu não
sei onde que os brasileiros adoram. Verdade, Demi?
— Sim. Adoramos. Nós,
brasileiros, amamos comer e eu, particularmente, sou fã de uma boa carne.
Andrej deu uma gargalhada forte e
comentou:
— É verdade, Mari. A Demi é uma
comilona e também sabe cozinhar muito bem. Outro dia ela ensinou a Karenina a
fazer pão de queijo. Você acredita nisso?
Agora foi a vez de Marieva
gargalhar.
— Como foi que conseguiu essa
mágica?
Aquela lá não deixa ninguém
entrar na cozinha dela.
Dei de ombros. Não era nada de
mais, de qualquer forma.
Fui conduzida pelo andar de baixo
da casa, sempre escoltada pelos três irmãos. Não pude reparar em muita coisa,
pois poderia parecer bisbilhotice, mas notei a decoração de excelente bom gosto
e o estilo moderno do lugar. Bem diferente do Palácio Sorvinski, com certeza.
Andrej me contou que minha tia
era uma mulher muito engajada em causas sociais, embora tivesse dinheiro para
comprar uma ilha. Era formada em antropologia, trabalhava como pesquisadora
numa universidade de renome na Krósvia e ainda era voluntária numa entidade assistencial
que cuidava de crianças órfãs. Além de ser mãe e esposa. Que jornada, hein!
Já o marido dela, o tal Marcus,
era empresário. Nascera na Itália e se mudara para a Krósvia para expandir os
negócios do pai, que consistiam em nada mais, nada menos do que uma vinícola
superfamosa. Com a mudança, ele levara a marca para o país vizinho e
simplesmente multiplicara o faturamento da empresa. Andrej disse que Marcus
exportava vinho para o mundo inteiro, inclusive para o Brasil. E passava mais tempo
na fazenda — em Craiev mesmo — do que em casa. Agora, não me pergunte quando é
que esses dois pais atarefados tinham tempo para aquelas três crianças. Vai
saber.
Depois de percorrer uma sala
ampla e clara e atravessar uma cozinha cheia de aço inoxidável, chegamos ao que
só podia ser o jardim de tia Marieva. Ou terreiro, sei lá. Na verdade, era uma área
enorme, toda gramada, com uma piscina no centro, contornada por um caramanchão ornamentado
por trepadeiras floridas, muito parecidas com as nossas conhecidas buganvílias.
Para um dia frio como aquele,
nadar era uma opção descartada. Mas as crianças estavam mais interessadas em
mim do que em diversão. Ou será que eu era a diversão do dia?
Marcus largou a churrasqueira
para vir nos receber. Ele tinha o porte de um homem bem sucedido, sem sombra de
dúvida. Caminhou até nós com altivez e elegância, sem deixar de sorrir por um
segundo sequer. Mas não um sorriso simplesmente simpático ou amistoso. Isso
também, mas muito mais de sondagem misturada com poder, se é que eu tenho o dom para perceber esses detalhes.
Feitas as apresentações,
iniciamos nossa jornada em busca do clima perfeito, ou seja, todo mundo
tentando me deixar relaxada, apesar de quererem me encher de perguntas. Mas
ficaram nas amenidades, tipo:
— Está gostando da Krósvia?
— Já se acostumou com o clima?
— Tem tido tempo de passear?
E por aí vai.
Claro que eu respondia tudo na
maior boa vontade, até porque preferia falar sobre essas coisas a entrar num
terreno mais constrangedor. Por exemplo, não seria nada confortável contar a história
de como Andrej e eu nos conhecemos. Ou por que minha mãe nunca dissera nada
sobre mim a meu pai. Mas captei toda a curiosidade saindo pelos poros de
Marcus, que estava se segurando para não ultrapassar a barreira do constrangimento.
Mais em respeito a meu pai, óbvio. Não sei, não, mas o cara ficava me olhando
de um jeito desconfiado, mais até do que Joseph nos primeiros dias. Ah, não!
Mais um para achar que sou biscateira. Fala sério.
— É verdade que as brasileiras
usam biquíni fio-dental?
De repente, passamos a escutar o
canto dos pássaros. E o zunir dos mosquitos. Dá para acreditar que a pequena
Luce tinha acabado de me fazer essa pergunta? Parecia brincadeira.
Tia Marieva, vermelha feito um
tomate, tossiu, mas logo recuperou o ar e disparou:
— O que é isso, menina? De onde
tirou essa ideia?
— Ué, meu p...
— Ninguém disse nada, não é, meu
bem? — Luce foi interrompida por um Marcus encabulado.
— Ela deve ter ouvido isso na
televisão.
— Mas como é um biquíni
fio-dental? — insistiu ela, com a carinha mais inocente do mundo.
Não sei por que, mas é incrível
como brasileiro tem fama ruim. Vira e mexe alguém dá a entender que somos todos
depravados, liberais e sem censura. Em parte eu sei o porquê. Basta assistir a
um desfile de escola de samba no carnaval e ao festival de nudez promovido principalmente
por artistas — ou aspirantes a artistas — desesperados por atenção. Mas, poxa! Nós
nem fazemos topless com tanta frequência quanto as europeias, que são bem mais
liberais do que nós em muitos aspectos. Dá tanta raiva!
Uma vez, uma amiga de minha mãe
viajou para Dubai e foi conhecer o tal Dubai Mall, o maior shopping center do
mundo, aquele que abriga um gigantesco aquário com mais de 33 mil espécies de
animais marinhos! Pois bem. Chegando lá, ela se deparou com uma loja que se chamava
Brazilian Lingeries. Para sua surpresa — e indignação — todos os manequins
usavam calcinhas fio-dental. Como se usássemos roupas íntimas sensuais 24 horas
por dia. No dia a dia, gostamos mesmo é daquelas peças confortáveis, de preferência
as sem costura.
— Filhinha — começou tia Marieva.
— Você não quer mostrar seu caderno de desenhos para a Demi? Aposto que ela vai
achar tudo lindo.
Bela saída. No mesmo instante, a
pequena Luce disparou para dentro de casa para pegar o tal caderno. Os outros
dois, Giovana e Luka, mantiveram-se por perto, tentando entrar na conversa,
cada um querendo se exibir mais que o outro para mim. Hilário.
Depois do incidente do
fio-dental, os ânimos deram uma acalmada. As crianças me puxaram para um
passeio pelo jardim da casa, mas só fui após analisar cada desenho feito pela
espontânea Luce.
— Você é nossa prima? — indagou
Luka.
— Sim. Filha do tio Andrej —
respondi, igual a uma professora do maternal. Deu certo, já que eles continuaram.
— Quem é sua mãe? — agora foi
Giovana.
— Ela se chama Dianna e mora no
Brasil.
— Por que não é a tia Elena? —
perguntou Luce.
— Bom, porque... — engasguei.
Como contar para uma menina de 8 anos que as pessoas não precisam ser casadas
para terem filhos?
— Ela morreu. — Luka, no auge de
seus 5 anos, livrou-me da saia-justa. — A mamãe ficou triste. E o tio Andrej
também. Eu vi ele chorar.
— É normal as pessoas chorarem
quando alguém de quem gostam muito morre. Até os adultos. Eu mesma choro o
tempo todo. Sou a maior chorona.
— A Giovana também chora à toa.
Parece um bebezinho — acusou Luka.
— Não choro nada! — protestou a
garotinha, franzindo a testa para o irmão. Depois, olhou para mim e confessou:
— Só às vezes, quando me machuco e quando o Luka corta os cabelos das minhas
bonecas.
Juro que quis ficar séria para
mostrar àquele garoto que não se deve fazer essas coisas com as pobres coitadas
das bonecas. Mas acabei deixando um sorriso escapar de meus lábios e isso foi suficiente
para ele enganchar sua mão na minha.
De repente, tínhamos criado um
vínculo.
— O Joe também chora. — A
declaração de Luce me desconcertou. — Eu já vi.
— É mesmo? — perguntei, devagar.
— Hum-hum. Mas faz um tempão. Eu
ainda era pequena.
Fiquei olhando para Luce,
tentando imaginar o que ser pequena significa para ela. Porque ter 8 anos devia
significar muita coisa mesmo.
Queria saber mais, mas tia
Marieva nos chamou para almoçar. Ela foi simpática o tempo todo. E natural
também. Não ficou tentando me agradar em excesso nem agiu com formalidade.
— Você precisa mostrar seus dotes
culinários para nós, Demi. Fiquei curiosa — pediu ela.
— Prometo cozinhar para vocês
quando forem ao castelo. Mas meu repertório não é muito grande, não — avisei. —
Se quiserem experimentar uma comida típica do Brasil, sugiro feijoada.
— Ah, eu conheço! — exclamou
Marcus. — Já estive no Brasil, na Bahia, e tive o prazer de experimentar a mais
que famosa feijoada.
— Pois é. Todo mundo adora e
vocês também vão gostar — disse, olhando para Andrej e Marieva. — Mas preciso
de um tempo para planejar, encontrar os ingredientes...
— Prometemos lhe dar um tempinho.
Mas você não vai escapar dessa — Marcus disse, brincando. Todo mundo riu. Menos
eu.
Um pouco mais tarde, Andrej
recebeu um telefonema da Irina para avisar que Joseph e sua digníssima namorada
— vulgo Nome de Cachorro — jantariam no castelo conosco naquela noite mesmo.
Posso até ter ficado um pouco irritada com a notícia, mas a curiosidade de conhecer
a tal Laika superou meu mau humor.
Estava torcendo para ela ser um
dragão de dentes tortos e cabelo embaraçado. Como eu
não queria
parecer um dragão, passei mais tempo me arrumando para o encontro do que
normalmente ficaria. Fiz faxina completa: tomei um banho de banheira e depois
lavei os cabelos no chuveiro. Sequei--os com secador na temperatura morna —
para ressaltar o brilho — e me enfiei num dos vestidos novos que comprara com a
Irina no shopping. Por dispensar a impressão de brasileira assanhada, optei por
um pretinho básico, de um ombro só. Discreto, mas lindo. Calcei saltos e me
maquiei — só um pouquinho. Como toque final, espalhei um pouquinho de perfume
nos pulsos e atrás das orelhas, um verdadeiro Dolce & Gabbana que ganhara
de minha mãe no último Natal. Nos lábios, gloss.
Mal tinha terminado de esfregar
um lábio no outro para espalhar o brilho quando ouvi um barulho de porta sendo
aberta e fechada. Levando em consideração que a acústica do castelo é perfeita,
esse barulho só poderia ser da minha porta. Saí do banheiro apressada, pensando
que encontraria Irina. Estava prestes a fazer uma piada qualquer no momento em
que dei de cara com Joseph, parado de braços cruzados bem no meio de meu
quarto. De novo.
De calça jeans de cintura baixa e
camisa xadrez perigosamente justa, ele era a personificação do diabo. Passeou
os olhos demoradamente por meu corpo, fazendo uma avaliação mental do que via
diante de si. O processo todo demorou uns três segundos, mas eu posso garantir
que durou até demais, o suficiente para eu perder o fôlego.
— Decididamente, você não sabe
bater — acusei, com medo de que minha voz tivesse saído pouco natural e ele
percebesse meu nervosismo.
— E se eu não estivesse vestida?
Desejei não ter dito isso.
— Então eu teria muita sorte —
respondeu, erguendo levemente a sobrancelha esquerda.
— Posso saber o que você quer? —
questionei. — Já estou pronta e no horário combinado. Não precisava ter se dado
ao trabalho de vir me buscar.
— Não foi um trabalho — ele
disse. — E eu não vim te buscar.
Joseph se jogou em minha cama, esticando-se
todo, como se fosse o gesto mais natural do mundo. Colocou os braços atrás da cabeça
e fingiu estar avaliando a qualidade do colchão. Pode?
Tudo o que eu fiz foi ficar
encarando a cena, incapaz de mover um músculo para impedir aquilo. Afinal, era
Joe na minha cama. Santo Deus!
— Você é muito folgado! — soltei.
— E sem noção. Por sua culpa, vou ter que começar a trancar minha porta.
— Ei, eu só vim ver como você
estava. Por causa da visita de hoje, lembra? Como foi?
Suspirei. Não. Aquilo não estava acontecendo.
— Não dava para perguntar na hora
do jantar? — continuei, relutante. — Precisava invadir meu quarto? Eu poderia
estar...
— Sem roupa — completou. — Eu
sei. Você já disse isso.
Bufei, furiosa. Claro que eu
poderia ter deixado Joseph sozinho e saído do quarto, magnânima, altiva, por
cima. Mas não sei o que dava em mim sempre que ficava perto dele.
— E então? Não vai contar como
foi com os tios?
— Tudo bem — respondi secamente.
— Tudo bem que vai contar, ou lá
foi tudo bem? — Dá para alguém ser mais chato que esse sujeito, meu Deus? — Não
precisa ficar economizando palavras. Temos um tempinho.
Revirei os olhos com o máximo de
desdém que consegui demonstrar e mandei um comentário muito criativo — e
maduro, diga-se de passagem:
— Você é ridículo, Joseph.
Nesse instante, Joe se levantou
de um pulo só e parou a centímetros de distância de mim. Dava até para eu
sentir o cheiro maravilhoso do perfume que usava, algo seco e selvagem.
— Repita o que disse — ordenou
ele, com os olhos faiscando.
— O quê? — eu disse, como se meus
nervos estivessem no melhor dos estados. — Que você é ridículo?
Joseph se aproximou ainda mais, a
ponto de nossa respiração se misturar. Ele exalava creme dental de menta. E eu?
Será que meu hálito estava pelo menos agradável?
— Não. Joseph.
Hein?
Fiquei
olhando para ele com a maior cara de boba, porque eu realmente não tinha
entendido nada. Então, Joe esclareceu:
— Diga meu nome de novo.
Então era isso. Mas o que isso
representava,
afinal? Um caso esquisito de narcisismo, ou seja, um amor enorme pelo próprio
nome que o fazia querer ouvi-lo pronunciado pelas pessoas?
— Co-como? — gaguejei.
Joseph tocou uma mecha de meu
cabelo tão lentamente que fiquei em estado de choque, sentindo o trajeto dos
dedos dele desde a altura da orelha até as pontas dos cabelos.
— Gosto da maneira como você
pronuncia meu nome — justificou-se, concentrado no ato de sentir a textura de
meu cabelo. — Aliás, é a primeira vez que você me chama de Joseph. Para todo
mundo eu sou só Joe.
— Hum-hum. — fiz. Mas, se ele
tivesse me dito que a Terra é quadrada, eu teria concordado da mesma forma.
— Soa diferente na sua voz —
continuou. — Deve ser porque você não fala krosvi.
— Pode ser — respondi, meio que
no piloto automático.
— Ou é só por causa dessa sua
boca mesmo. — Dito isso, Joe traçou o contorno de meus lábios com o polegar e
eu fechei os olhos para sentir melhor o toque.
O que estava acontecendo ali? Joe
estava me paquerando? Mas não podia! A namorada dele deveria estar a caminho do
castelo, se é que já não havia chegado e esperava por ele na sala de jantar!
Apesar disso, pensei que ele
fosse me beijar.
A forma como encarava minha boca
não deixava margem para dúvidas. Os olhos dele ainda faiscavam, mas não era de
raiva nem de impaciência. Era algo muito mais poderoso e forte, que o puxava para
perto de mim como se fosse uma espécie de hipnose.
No entanto, como isso era
possível? Nós nem gostávamos um do outro. Vivíamos implicando e jogando
indiretas, mal nos tolerávamos. Eu não suportava aquele homem, mesmo quando ele
fazia meu coração dar piruetas só de vê-lo ou me levava para conhecer os
lugares mais lindos.
Ele também não morria de amores
por mim. Sempre que podia, deixava claro o que pensava a meu respeito e não
titubeava em me tirar do sério.
Então, por que agora tudo me
levava a crer que Joseph estava prestes a colar seus lábios nos meus? E pior:
por que eu ansiava desesperadamente por isso?
Porém, no momento em que meus
ombros relaxaram e eu pensei que as coisas iam progredir entre nós, Joseph se
afastou. E o encanto se desfez. Só aí escutei o toque de um telefone. Meu celular!
Corri para pegá-lo na mesa de
cabeceira e chequei o visor. Nick! Se isso não fosse um sinal, não sei o que
mais poderia ser.
Tentei o máximo que pude
controlar minha respiração. Mas, se eu pensava que Joseph estava prestes a
deixar meu quarto, me enganei redondamente. Tudo o que ele fez foi esperar que eu
atendesse à chamada. Será que agora ele adivinhava as coisas?
No entanto, eu tinha um grande
trunfo para o caso de Joe querer ouvir minha conversa. Falaria em português.
Bem feito!
— Oi, princesa! — saudou Nick,
todo animado. — Saudades...
— Hã... Oi, Nick — disse. — Que
surpresa!
Joseph usou sua marca registrada
ao me encarar: levantou uma das sobrancelhas. Demonstrou estar indignado com
minha recusa em deixá-lo entender o diálogo. Curti demais esse momento,
soberana.
— Pois é — Nick respondeu. —
Andei meio sumido. Sabe como é, muito trabalho, muitas matérias para estudar.
Mas estou sentindo sua falta. Demais. Já está pensando em voltar?
— Voltar? Não, ainda não. Preciso
ficar mais um pouco. Ainda nem fui apresentada à população da Krósvia.
Meu coração batia forte no peito.
Minha dúvida era se isso acontecia pelo fato de estar falando com Nick ou
porque ainda podia sentir os vestígios do quase-beijo entre mim e Joe.
— Puxa, como vou fazer para
controlar essa saudade louca que ando sentindo? — quis saber Nick, cheio de
graça.
Não sei, mas um mês longe dele me
fizera perceber que nossa paixão não era tão grande assim. Afinal, fazia dias
que eu nem pensava nele direito. Também havia outros motivos, tipo ele quase
nunca fazer contato ou ser evasivo nas poucas conversas que tínhamos. Mas nada
a ver com Joe, que isso fique bem claro.
— Bom, a gente já tinha combinado
que deixaria para resolver a situação quando eu voltasse ao Brasil —
contemporizei. — É difícil falar sobre isso pelo telefone.
— Falar sobre o quê? — questionou
Nick. — Sobre saudade? Não vejo problema nenhum.
Fiquei impaciente. De repente,
queria desligar logo a praga daquele aparelho e descer para jantar com meu pai.
— Beleza, Nick. Gostei da sua
ligação. Mas agora eu preciso ir. Meu pai está esperando...
— Certo — cortou ele. — Já
entendi. Você está me dispensando.
Oh,
Senhor!
— Eu não faria isso. — Não pelo
celular, há quase 10 mil quilômetros de distância. Mas isso eu não disse em voz
alta.
— Bom, princesa. Vamos deixar as
coisas como estão. Prevalece então o que combinamos aqui no Brasil, certo?
Eu não queria dizer sim. Não
estava preparada para reforçar nosso combinado. Já não sentia o mesmo por Nick,
não conseguia me imaginar apaixonada por ele, namorando ou, pior, usand o com
ele minhas
lindas lingeries da Victoria’s Secret.
— A gente se fala depois —
prometi. Era o mínimo que eu podia fazer.
Desliguei o telefone, sabendo que
Joseph estava prestes a fazer uma observação. Levantei os olhos para ele, que
apenas comentou, em inglês, claro:
— Essa língua portuguesa é muito
confusa.
Sorri. Ele completou:
— Vem. Vamos jantar.
Dizer que a tal da Laika era
bonita é ser econômica. A filha da mãe era maravilhosa, aquele tipo de mulher
que faz com que qualquer outra se sinta um lixo.
Na hora que bati o olho nela, me
lembrei logo da Amber Heard. Se eu tivera a ridícula sensação de que Joseph
vinha flertando comigo, acabei de constatar que tudo não passava de invenção de
minha cabeça. Eu devia ter interpretado aquele lance do quase-beijo de forma
totalmente errada.
De cima de um salto agulha de uns
dez centímetros, Laika me analisou minuciosamente assim que pus os pés na sala
de jantar. Instantaneamente, fiquei constrangida, sentindo-me pequena e... bem,
básica. Ao contrário de mim, Laika não se importou em parecer extravagante. Vestia
um short curto, branco, meio solto, e uma camiseta de seda coral, cujo decote
deixava muito pouco para a imaginação alheia. As já mencionadas sandálias
tinham um tom neutro e faziam a dona delas ainda mais alta. Os cabelos batiam
nos ombros e foram cortados de um jeito despojado, num estilo que só as
mulheres muito confiantes têm coragem de assumir.
Mas resolvi manter o apelido
secreto Nome de Cachorro. De que outra forma eu poderia desdenhar daquela que
em poucos minutos se tornara alvo de minha inveja? Bonita, bem-vestida,
e ainda
namorada de Joseph. Dava para ser pior?
Joseph se adiantou a mim assim
que viu a namorada. Por alguma razão, eles não chegaram juntos e o fato de nós
dois termos aparecido no mesmo momento não passou despercebido a Laika.
Antes de mais nada, ela o beijou.
Na boca. Na frente de todos nós, ou seja, Andrej, Irina e eu. Nem consigo
descrever a fincada que senti quando presenciei aquela cena, bem no meio do
peito. Ainda bem que a cara de Irina também não era das melhores. Já meu pai
parecia indiferente a qualquer tipo de animosidade.
Depois, Nome de Cachorro resolveu
me dar atenção e esticou uma mão branca, fina e cheia de anéis para me
cumprimentar. O aperto que trocamos foi mole, fraco, como se ambas tivéssemos
medo de tocar na mão uma da outra.
— Kosov — ela disse.
Quê?
Não acredito
que ela usou krosvi para falar comigo. Se me cumprimentou ou me chamou de vaca,
eu não tinha como saber.
Meu pai sorriu e explicou:
— Não, Laika, a Demi não fala
nossa língua. Todos nós nos comunicamos com ela em inglês. — Então, ele se
dirigiu a mim. — E a Laika disse “muito prazer”, Demi.
Juro por Deus que tentei ser
simpática e tal, mas, só de olhar para a cara daquela garota, mal conseguia
disfarçar minha antipatia. Tive que me segurar para não fazer uma piadinha com
o nome ridículo dela ou chamá-la de patricinha afetada na frente de todo mundo.
O que estava acontecendo comigo,
afinal de contas?
— Finalmente, Demi! Demoramos a
nos conhecer, mas só outro dia fiquei sabendo sobre você. Engraçado o Joe nunca
ter mencionado nada. Ou melhor, ele falou, sim, mas só muito recentemente.
Com certeza essa foi uma
tentativa de deixar bem claro que Joseph não dava a mínima para mim. Lancei os
olhos na direção dele e, pela primeira vez na vida, Joe pareceu desconcertado.
Decidi entrar no jogo.
— Ainda bem. Estamos procurando
manter segredo por enquanto, sabe? Manter as coisas só entre a família mesmo. —
Em seguida, dirigi-me a meu pai. — Viu, Andrej? O Joe é um cara de palavra.
Sabe aqueles personagens de
desenhos infantis que soltam fumacinha pela cabeça quando estão com raiva? Pois
é. Se a Laika fosse um desses, estaríamos presenciando uma cena assim.
Andrej indicou o lugar para cada
um de nós à mesa de jantar, mas foi o último a se sentar. Antes, puxou a
cadeira para Irina e para mim. Claro que Joseph fez o mesmo para a namorada,
que lutava para parecer descontraída. Mas o que a postura dela demonstrava era
justamente o contrário. Não sei por que diabos a bela filha de senador/executiva/namorada
de Joe estava muito incomodada com minha presença.
Então, o sentimento era
recíproco.
— Que bom estarmos todos aqui
hoje! — exclamou Andrej, enquanto Karenina e uma outra moça, Petra, serviam o
jantar. — Temos muitas novidades, não é mesmo, Irina?
Com o peito estufado de prazer,
Irina assumiu a responsabilidade pela atualização das últimas notícias.
— Bom, já temos uma data para a apresentação
da Demi — anunciou, olhando diretamente para mim. Limitei-me a sorrir para não
interrompê-la. — Será no dia 10 de outubro.
— Puxa, que notícia maravilhosa!
— Minha adrenalina ficou a mil. — É uma data ótima para o pessoal do Brasil,
porque o dia 12 é feriado lá. Ai, Irina, que maravilha! Talvez fique mais fácil
para eles agora.
— Você ainda não os convidou? —
perguntou Andrej, tocando de leve em minha mão.
— Comentei por alto com a Selena,
minha melhor amiga, mas ainda não combinei nada, nem com minha mãe. — De
repente, uma sombra nublou minha euforia. — Peraí! Eu não vou ter que usar
nenhum vestido repolhudo, né?
Todos ficaram me olhando com uma expressão
de dúvida, como se não tivessem entendido meu questionamento. Apenas Laika escondeu
um sorrisinho malicioso atrás de uma das mãos.
— Vestido repolhudo? — indagou
Andrej.
— É, tipo cheio de babados e todo
rodado, ou, pior, cem por cento rosa-bebê. Porque eu não uso rosa-bebê. De
jeito nenhum.
Meu pai riu, enquanto Irina
parecia processar o que eu havia acabado de dizer, anotando mentalmente minhas
recusas.
— Não vai precisar — assegurou-me
ele, respirando com prazer em cima de seu prato recém-servido.
— Ah, majes... digo, Andrej, mas
é claro que a Demi vai ter que vestir um traje bonito, condizente com a posição
de princesa da Krósvia — Irina replicou. — Não dá para aparecer na frente do mundo
inteiro vestindo calça jeans e camiseta.
— E como seria um traje
condizente, Irina? — eu quis saber.
— Sugiro um longo, claro —
interveio Laika. — Mas nada de azul ou nude. Não combinam com sua pele.
Ui!
Magoei. Eu
amo azul!
— Demi, vamos ter que sair para
escolher o vestido ideal para a ocasião. E deve ser o mais rápido possível. —
Às vezes, a eficiência de Irina beirava o fanatismo.
— Outra orgia consumista?! — Joe
se manifestou. — Cuidado, Andrej. Essas duas soltas pelos shoppings são um
perigo para sua conta bancária.
Fuzilei-o com os olhos. Era a
primeira vez que o olhava abertamente desde que nos reunimos para o jantar. Mas
não encontrei crítica nem desprezo naqueles olhos verdes que vinham assombrando
meus pensamentos há dias. O que eu vi foi diferente, porém, reconfortante.
Quase sorri para ele, mas tive medo do outro par de olhos que também me
encarava.
— Não faz mal — replicou meu pai.
— Já deixei claro para a Demi que ela tem carta branca para gastar quanto
quiser. E ela é bem consciente, não é, filha?
— Se você está dizendo —
respondi. — Minha mãe não acharia o mesmo.
O cheiro da sopa servida como
entrada fez minha boca se encher de água. Mergulhei uma fatia de pão no caldo e
suspirei enquanto degustava toda aquela delícia.
Irina me olhou, perplexa.
— Não vai querer saber o que vai
acontecer nesse dia, Demi? Como vai ser a cerimônia?
Com a boca cheia, tive que
responder balançando a cabeça. A verdade é que eu nem tinha pensado nisso.
Acreditava que era só aparecer em público, de preferência através da TV, e dar
um oi para a galera.
— Bom — continuou ela. — Primeiro,
seu pai vai reunir a imprensa e fazer o comunicado oficial. Em seguida, ele vai
chamar você. Nessa hora, a população vai estar reunida em frente ao Palácio de
Perla. Você vai surgir na sacada principal.
— Quê?! — engasguei. O pedaço de
pão ficou entalado em minha garganta e foi preciso um generoso gole de água
para soltá-lo de lá. — Vou ter de aparecer em público?
Olhei para Andrej, suplicando por
apoio, mas ele apenas devolveu uma expressão condescendente.
— Ora, Demi — disse Laika, nada
simpática. — Você queria o quê? Um tchauzinho diante das telas e pronto? O povo
merece sua consideração.
Por quê? Eu não significava nada
para aquele país e ninguém nem ao menos sabia de minha existência. E, por mais
que eu estivesse curtindo de verdade meus dias na Krósvia, ainda não me sentia
pertencente àquele lugar.
De repente, perdi a fome.
— E depois? — murmurei.
Irina se animou novamente:
— Bom, daí você e seu pai saem
numa volta em carro aberto pelas ruas de Perla. O Joe também vai, claro.
— Quê?! — repeti, mas agora em
coro com Joseph.
— Gente, eu não sou a Kate
Middleton — argumentei.
— Andrej, não acho que minha
presença seja necessária — disse Joe.
Irina olhou de mim para ele,
desaprovando nossa postura com um gesto de cabeça. Pela primeira vez na vida, vi
meu pai falar de um modo que não permitia questionamentos:
— Você, Demi, precisa entender
que as coisas por aqui são assim.
Envergonhada, murchei na cadeira.
— E você, Joe, é tão parte desta
família como a Demi. Portanto, não estamos lhe fazendo um convite. Entendido?
Joseph e eu nos entreolhamos. Se
a situação não fosse dramática, seria cômica. E Joe parece ter pensado a mesma
coisa. Dissimulamos um sorrisinho antes de concordamos em uníssono:
— Sim.
Quem não gostou nada dessa
cumplicidade foi Laika, que cruzou os braços, emburrada. Se dependesse de mim,
ela não teria a menor participação nesse circo chamado Cerimônia de
Apresentação da Princesa Demi.
~*~
Pra quem quiser saber alguns dos nomes originais das histórias que eu adaptei aqui no blog, eu irei colocá-los na página de "fanfics" depois, okay?! Agora não, porque estou cansada e tenho aula o dia todo na faculdade amanhã. Beijos, comentem.