Meu mundo caiu
Acordei
no início da manhã, ainda bem cedo.
Apesar
de meu corpo estar meio moído, sentia-me muito feliz, realizada e completa.
Minha primeira vez fora surreal. Ou eu deveria dizer primeiras
vezes? Sim, porque, com a tempestade, tivemos que passar a noite
inteira na Ilha de Catarina.
Portanto,
tivemos tempo de sobra para realizar todas as minhas fantasias — no bom
sentido, pelo amor de Deus — com Joseph.
Valeu
a pena esperar. Eu sempre fora criticada por minhas amigas porque adiara ao máximo
a perda de minha virgindade, enquanto a maioria preferira seguir pelo caminho
do “deixa rolar”, muitas vezes com qualquer um. Ainda na época da escola, vira
muitas meninas de minha sala esconderem cartelas de anticoncepcionais em bolsos
falsos da carteira para não serem flagradas pelos pais. Não porque tivessem um
namorado, mas porque estavam sempre na expectativa de uma aventura nos finais
de semana.
Numa
dessas, uma garota acabou engravidando. Ela só tinha 15 anos. E sabem quem era
o pai? Um universitário que namorava outra menina havia séculos.
Por essas e outras, sempre tive muito medo.
Assim,
optei por me preservar. E não me arrependo. Eu não poderia ter escolhido um homem
mais perfeito para ser meu primeiro, nem um cenário mais ideal que o daquela
noite.
Saí
da cama com cuidado para não acordar Joseph. Devido à chuva, o clima estava bem
frio. Enrolei-me numa manta e fui até a cozinha, pé ante pé. Meu estômago
exigia comida. Também, depois de tanto esforço...
Sorri
ao repassar na mente cada momento, desde a chegada de Joe ao chalé, quando me
dera o maior susto, até o último suspiro da noite, ou melhor, do final da
madrugada. Lembrei-me de termos perdido a razão a ponto de eu não diferenciar
meus gemidos dos dele. Acho que a sincronia foi perfeita.
O
mais impressionante de tudo foi a pergunta que Joe me fez, enquanto ainda
vestíamos parte de nossas roupas. Fiquei completamente desconcertada.
—
Demi, o que fez com aquela sacola enorme de lingeries?
—
O quê? — ofeguei, com o rosto enterrado em um de seus ombros.
—
As lingeries novas. Eu vi a sacola da Victoria’s Secret naquele dia da orgia
consumista.
Meu
rosto quase entrou em combustão espontânea. Ele não podia estar falando sério. Apoiei-me
nos cotovelos e o encarei.
—
Eu não saio por aí com meus conjuntos lindos e novinhos, principalmente se for
para ajudar na faxina de um chalé abandonado.
Joseph
gargalhou e desceu os olhos para as peças desencontradas que eu estava usando.
Seu olhar me queimou.
—
Garanto que elas não foram estreadas do jeito certo. Temos que providenciar
isso. Não vejo a hora de desvendar os segredos de Victoria.
Rimos
juntos. Realmente, minhas belezuras de renda e cetim mereciam uma plateia,
mesmo que fosse de uma pessoa só.
Meu
estômago chiou mais uma vez e enfiei a cara na cesta de piquenique, intocada
desde que fora colocada sobre a mesa. Ataquei logo uns três pãezinhos de mel e
pulei as frutas sem a menor sensação de culpa. Já tinha perdido calorias demais
naquela noite. Mastiguei um pão olhando perdidamente pela janela da cozinha.
Ainda chuviscava, mas o pior da tempestade já havia passado. Ainda bem que
Andrej não estava na Krósvia. Como explicaria a ele o fato de não ter dormido
em casa? Mesmo assim, estremeci. Teria que me explicar de qualquer forma. Todos
notariam a mudança de clima entre mim e Joe.
Num
dos intervalos da madrugada, comentei com Joseph r sobre essa minha aflição.
Ele disse que se encarregaria de conversar com meu pai.
—
Pode deixar comigo, Demi. Eu mesmo quero falar com o Andrej. Como já negamos
uma vez, var ser esquisito admitir o contrário. Mas ele vai entender se eu
explicar.
Não
fiquei muito tranquila, não. Sabia muito bem que minha hora chegaria. Meu pai
não perderia a oportunidade de me fuzilar com perguntas.
—
Outra coisa está me incomodando, mas não tem nada a ver com o Andrej — Joe
disse, com a cabeça apoiada numa mão, enquanto a outra fazia carinho em minha
barriga. Quase perdi a concentração. — Essa sua certeza de ir embora. Por que
não fica mais? Um ano, pelo menos. Depois a gente pensa numa outra solução.
—
Não posso ficar eternamente de férias, Joseph. Preciso terminar meu curso,
voltar a trabalhar, dar um jeito na vida.
—
Não dá para fazer tudo isso aqui mesmo?
—
É complicado. Muita coisa me prende ao Brasil.
—
E aqui? Nada?
Dei
um beijo na ponta de seu nariz e suspirei.
—
Não me torture desse jeito. Não é justo me pedir para escolher. Eu estou presa
dos dois lados. Mas, antes de definir minha vida, preciso acabar o que comecei.
Me formar é muito importante pra mim.
—
E a gente?
—
Não quero pensar sobre isso agora. Temos tempo pra achar uma solução.
—
Então, venha aqui e me faça esquecer.
Bebericava
languidamente um suco de caixinha sabor pêssego quando os braços fortes de
Joseph envolveram minha cintura e me puxaram de encontro a seu corpo, coberto
apenas pela calça jeans. Ele não sentia frio?
—
Não gostei de acordar sozinho — reclamou, com a boca torturando minha nuca. — Por
que já está de pé?
Apontei
para a cesta de piquenique.
—
Fome.
Joseph
riu, presunçoso, orgulhoso por ser o motivo de meu apetite voraz. Rodou-me em
seus braços para que pudéssemos ficar frente a frente.
—
Matou a fome?
—
Quase.
Sorrimos
um para o outro. Joguei os braços sobre seus ombros e fiquei na ponta dos pés
para beijá-lo. Nunca fora muito descolada com garotos, mas com Joe eu ficava
muito à vontade. Se bem que ele estava longe de ser apenas um garoto.
—
O que tem debaixo dessa manta? — quis saber, os olhos carregados de segundas
intenções.
—
Simplesmente Demi.
Era
isso mesmo. Perto de Joe, eu não tinha um título real, não me lembrava de ser
filha de um rei e nem morava num castelo de verdade.
Ele
me agarrou e recomeçamos todo o processo de amassos, que não teria sido interrompido
caso uma terceira pessoa, estranha e deslocada no contexto, não tivesse surgido
através da vidraça da cozinha e acionado o botão de uma câmera fotográfica,
flagrando Joe e eu, agora sim, numa posição para lá de comprometedora.
Dei
um pulo para trás, com o coração aos pulos, e puxei a manta até o queixo,
perplexa demais para reagir de outra forma. Joseph se colocou na minha frente,
encobrindo-me com seu corpo. Sua expressão mudou instantaneamente de sedutora
para irada.
Mas
o fotógrafo não se acanhou. Pelo contrário! Ficou ainda mais confiante quando outros
dois apareceram não sei de onde e fizeram o mesmo: nos fotografaram sem parar.
Tive
a impressão de que ia desmaiar. Eu não podia passar por toda aquela especulação
outra vez, principalmente porque agora o fato seria respaldado pelas malditas
fotos! E, pelo amor de Deus, como aquele bando de urubus chegara à ilha, ou,
melhor dizendo, a mim e Joe?
E
então, como se tivesse lido meus pensamentos, um dos paparazzi disse,
caprichando no inglês, de modo que não houve chance de eu não entender:
—
Pronto, Joe. Tarefa cumprida. Fizemos do jeito que você combinou.
Levei
uns dez segundos para processar aquelas três frases. Até que a compreensão me atingiu
em cheio e dilacerou meu coração em milhares de pedaços: eu havia sido enganada
da maneira mais sórdida e repugnante possível. Caíra num joguinho ordinário,
que provavelmente fora orquestrado com bastante antecedência por Joe e a
nojenta da Nome de Cachorro. Meu Deus, quantas noites aqueles dois deviam ter
passado arquitetando minha humilhação e rindo da minha cara! E eu, toda boba e
apaixonada, agora prestes a ser ridicularizada na frente do mundo inteiro.
Retesei
o corpo e me agarrei à borda da pia para não cair. Joe tentou me amparar, mas
me afastei bruscamente. Até quando continuaria fingindo?
Enquanto
isso, os flashes não paravam de pipocar. Meu estômago deu uma cambalhota, anunciando
um enjoo horroroso.
—
Sumam daqui! — Joe gritou. Pura encenação. — Desapareçam, senão vou processar vocês!
—
Processar? Mas por que, se foi você que nos contratou?
Corri
para o banheiro, desesperada, e me agarrei ao vaso sanitário. Vomitei os três
pães de mel e o suco de pêssego. E mesmo quando não tinha mais nada no
estômago, continuei tendo espasmos. Senti minha energia indo embora.
Joe
disparou atrás de mim e se agachou a meu lado. Suas mãos seguraram meus cabelos
para que não se sujassem, mas, tão logo recobrei a consciência, rejeitei-as com
tapas histéricos.
—
Não me toque! Não ouse colocar essas mãos imundas sobre mim! — berrei. Lágrimas
desciam feito cachoeiras por meu rosto, nublando minha visão.
Chorei
convulsivamente. Mais uma vez, Joe tentou me segurar, mas eu o impedi. Ele
tinha estraçalhado meus sentimentos, minha confiança.
—
Demi, para com isso. Me escuta. Eu não sei quem são esses caras. Não tenho nada
a ver com essa loucura. Por favor, olha para mim!
—
Se você falar que é coincidência eles estarem aqui, eu não respondo por meus
atos. — Levantei com vontade de sumir do mapa. Mas antes precisava vestir
minhas roupas e dar um jeito de escapar dali. — Você jogou sujo, Joe, e agora eu
vejo há quanto tempo você e a safada da Laika andam armando para mim! — gritei.
—
Não viaja, Demi! Eu não fiz nada disso. Pelo amor de Deus, depois de tudo, da
noite maravilhosa que tivemos, você não pode estar falando sério!
Fulminei-o
com o olhar. As lágrimas ainda caíam e não davam sinal de que iam cessar tão cedo.
—
Não acredito que confiei em você! Não acredito que tive coragem de confessar o
meu...
Cobri
o rosto com as mãos e desabei. Não conseguia nem falar, nem olhar para ele. Joe
agarrou meus ombros, sem me dar chance de escapar, e suplicou:
—
Demi, não faça isso. Por favor, não entre nessa paranoia. Tem alguma coisa
errada nessa história. Você precisa acreditar em mim. Eu te amo!
Não.
Essa foi demais. Apelar para uma declaração de amor a essa altura? Eu não
merecia aquilo. A que ponto chegamos?
Usando
uma força sobre-humana, soltei-me dos braços de Joe e passei por ele, tendo o cuidado
de manter a manta que me cobria ainda mais fechada.
—
Joe, eu vou sair daqui. Sozinha. Não me siga, não me procure, nem me peça para
ouvir sua versão, porque não vou cair na besteira de acreditar em você
novamente. Porque eu acreditei totalmente. Confiei cegamente nos seus sentimentos,
a ponto de me entregar a você.
—
Demi... — Ele engasgou. Seus olhos verdes, antes tão lindos e sedutores, agora
me eram estranhos. Estavam encharcados de lágrimas, assim como os meus.
—
Não fala nada. Eu não mereço ouvir suas desculpas. Me poupe disso. Não acredito
no seu amor. Pode voltar para a Nome de Cachorro e comemorar o sucesso do
planinho sórdido de vocês. E prepare-se para se explicar ao Andrej. Ele, sim,
vai querer entender cada detalhe.
Enxuguei
o rosto e saí na direção do quarto. Só parei para completar, soltei:
—
Difícil vai ser revelar o que nós dois ficamos fazendo aqui na ilha a noite
inteira. Não quero estar no seu lugar.
Então,
entrei no quarto de minha bisavó Catarina, tranquei a porta com chave e caí na cama,
ainda impregnada do cheiro de Joe e com marcas dos momentos que tivéramos ali.
Queria extravasar minha dor, mas não tinha tempo para isso. Precisava sair da
ilha o mais rápido possível e resolver o que faria de minha vida. Uma coisa era
certa: minha imagem estava acabada. Para sempre eu seria lembrada como a
princesa que dormiu com o quase-irmão comprometido. A princesa apaixonada que
se prestou ao papel de ser a outra.
Vesti
rapidamente minhas roupas, calcei minhas botas e respirei fundo antes de correr
rumo à porta e escapar para a areia da praia, molhada demais por causa da
chuva.
Joe
não tentou me deter. Apenas olhou para mim com uma expressão derrotada,
recostado na mureta da varanda.
Não
vi os fotógrafos. Ainda bem. Senão, teria sido capaz de agredi-los fisicamente,
o que só pioraria minha situação.
Havia
duas lanchas no cais: a que levara Joe até a ilha e a dos paparazzi. Mesmo sem nunca
ter pilotado uma antes, dei partida no motor. Só queria sair dali e me esconder
do mundo. Fazer sozinha o trajeto de volta foi complicado. Só sei que girei a
chave na ignição e guiei a lancha meio que no piloto automático. Por sorte, a distância
entre a ilha e a praia do castelo era curta e bastava dirigir em linha reta.
Ao
chegar ao cais, larguei a lancha aos cuidados do piloto que havia me
transportado no dia anterior. Ele me olhou com espanto, talvez assombrado por
minha expressão nada amistosa ou pelo fato de ter voltado sozinha. Não sei.
Também não dei chance a ele de me perguntar nada.
Atravessei
a areia sem olhar para os lados e irrompi castelo adentro, preocupada apenas em
chegar a meu quarto e me fechar para o mundo. Sabia o que teria que enfrentar
mais tarde, mas precisava me concentrar antes de receber a chuva de críticas e
reprovações.
Arranquei
depressa as roupas de meu corpo e deixei o chuveiro lavar os vestígios de minha
vergonha. Só lamentava não poder voltar no tempo e apagar outras coisas, como
as lembranças dos lábios de Joseph percorrendo minhas costas e suas mãos
apertando-me contra ele.
Encostei
a testa no azulejo e chorei de novo.
Como
resolveria esse problema? Se ao menos pudesse evitar a publicação daquelas
fotos ordinárias... Por que não exigi que os fotógrafos me entregassem as
câmeras, ameaçando mandar meu pai atrás deles ou, sei lá, assassinos de aluguel
para liquidar de vez com a raça dos filhos da mãe? O que eu faria agora?
Resolvi
telefonar para minha mãe. Alguém tinha que me apresentar uma solução, e quem poderia
ser melhor do que ela?
O
celular dela chamou até cair na caixa postal. Só então me dei conta de que, no
Brasil, ainda era o final da madrugada. Deixei uma mensagem de voz que revelava
exatamente o tamanho de meu desespero:
—
Mãe, por favor, atende o telefone. Preciso falar com você. Me meti numa
encrenca enorme.
Tive
a sensação de que demorou uma eternidade para ela me retornar. Mas foram só alguns
minutos — um milagre, considerando o fuso horário de cinco horas a menos lá em
Belo Horizonte.
—
Filha, o que aconteceu? — mamãe quis saber, bastante preocupada.
Caí
no choro. Outra vez. E fiquei assim, quase afogada em lágrimas, enquanto minha
mãe me metralhava com perguntas. Só quando me acalmei um pouco fui capaz de
responder:
—
Cometi o maior erro da minha vida, tanto de julgamento quanto de atitude. Estou
muito encrencada, mãe.
Então,
contei tudo, desde o princípio. Falei de minha paixão por Joe, da química que tínhamos,
de meu sofrimento silencioso. Depois, respirei fundo e admiti o restante, desde
o momento elétrico na Caverna do Pirata até o fatídico fim da noite anterior.
Não escondi nada.
—
Mas, Demi, como é que você tem certeza de que o Joe está envolvido com os
paparazzi? Porque eu o conheci e não acredito que ele tenha um caráter tão
doentio.
—
Os fotógrafos deixaram isso bem claro. E, mesmo que eu estivesse na dúvida, só
o fato de eles terem aparecido na ilha já é um comprovante da culpa dele. Quem
mais sabia que estávamos sozinhos lá? Ninguém, a não ser a Karenina e as outras
empregadas, e elas não teriam motivos para armar essa palhaçada para mim!
—
E por que o Joe teria? — minha mãe questionou, tentando me fazer raciocinar com
imparcialidade. Só ela mesmo para me ajudar a entender o ocorrido, em vez de me
crucificar por ter dormido com Joe.
—
Você não viu como ele me olhou quando me conheceu, mãe. Cheio de desconfiança,
de acusações veladas. Depois, começou a se aproximar, todo legal, mas agora
percebo as verdadeiras intenções dele. Ele me usou para provar para meu pai que
eu não valho nada.
—
Não fale assim, Demi — ela me repreendeu. — O que você fez não foi pecado. Você
estava apaixonada e acreditava que era correspondida. O Andrej vai entender.
Quanto aos paparazzi, deve haver uma forma de impedi-los de publicar as fotos.
Seu pai tem poder para isso. Mas você vai ter que se abrir com ele.
—
Eu sei. O problema é que ele não está na Krósvia e eu não quero ter essa
conversa por telefone. Vai ser difícil esfregar na cara do meu pai o mau
caráter que o enteado querido dele tem. Nem imagino como começar...
—
Do mesmo jeito que fez comigo. Seja sincera.
Outra
onda de lágrimas ameaçou cair, mas dessa vez eu a segurei. Não queria ficar desidratada.
—
Eu quero voltar para o Brasil, mãe. Quero voltar para casa. Acho que não
consigo mais viver aqui.
—
Faça isso, filha. Volte depressa. Não vou deixar você sofrendo longe de casa.
Converse com seu pai e venha. Chega de deixar sua vida à mercê desses
fofoqueiros krosvianos sem noção. Acha que consegue partir ainda hoje?
—
Vou tentar. Quero acabar logo com isso.
—
Ótimo. Dê notícias. Estamos te esperando.
Funguei.
Uma caixa de lenços de papel não seria nada má agora.
—
E, mãe... Desculpa. Não planejei te decepcionar.
—
Não fale assim. Não estou decepcionada, Demi. Estou agradecida por ter confiado
em mim. Sei que não é moleza admitir para sua mãe que deixou de ser uma menina.
Também passei por isso, esqueceu?
É
mesmo. Que grande ironia do destino!
—
Agora, vá procurar seu pai. Ele também vai apoiar você. Não tenha medo.
—
Te amo, mãe. E obrigada.
Não
foi fácil localizar meu pai. Tive que pedir ajuda a Irina e ser muito
persuasiva. Disse que o caso era sério, mas não abri o jogo. Queria falar o mínimo
possível sobre a enrascada em que tinha me metido.
Andrej
participava de um congresso na França. Eu sentia muito por ter que incomodá-lo,
mas não sossegaria enquanto não conseguisse me explicar para ele. Como eu tinha
a intenção de sair da Krósvia quanto antes, contentei-me em conversar com meu
pai via Skype. Eu precisava olhá-lo nos olhos de modo que ele visse o tamanho
de minha culpa e, assim, quem sabe, conseguisse me perdoar.
Estava
decidida a fazer isso até que Andrej apareceu diante de mim, através da tela do
computador. Ao vê-lo, minhas mãos ficaram suadas e senti o sangue sumir. Tive
vontade de desistir e sair correndo, largando as explicações por conta de
qualquer outra pessoa que não fosse eu.
Meu
pai, um sujeito quase sempre ponderado e tranquilo, não demonstrava estar
melhor do que eu, emocionalmente falando. Claro que ele previa algo ruim. Se
não fosse má notícia, ele não teria sido chamado com tanta urgência.
Depois
de quase sugar todo o ar do ambiente de tanto inspirar, soltei a bomba toda de
uma vez. Devo ter gastado uns dez minutos ininterruptos para resumir a história
inteira e falei até sobre a última conversa que tivera com minha mãe. Enquanto
relatava os fatos, não tirei os dedos de meu colar de diamante.
Inconscientemente, elegi o pingente de rosa como meu apoio.
Durante
a confissão, não consegui segurar as lágrimas. Havia chegado a meu limite e,
àquela altura, eu estava prestes a desabar de vez. Andrej ouviu o relato. Ficou
calado o tempo todo. Parecia uma estátua de pedra, sem demonstrar uma mísera
expressão. Mas podia muito bem estar pensando: O
que fui arrumar para minha vida? Por que não deixei essa filha pirada para
trás?
Quando
terminei, um longo silêncio pairou entre nós. Andrej abaixou a cabeça e deixou
o tempo passar. Pensei que não quisesse mais falar comigo e usasse esse gesto
para me dispensar.
Mas
aí, assim que eu desisti de esperar, ele falou, num tom até bem calmo para quem
havia acabado de receber uma batata quente nas mãos:
—
Eu não acredito que o Joe esteja envolvido nessa confusão.
Um
“o” redondinho se formou em minha boca. Eu esperava ouvir de tudo — que eu não merecia
ser sua filha, que podia pegar minha trouxa e dar no pé —, menos aquilo, uma
defesa tão convicta da inocência do enteado.
—
Aquele menino sempre teve um caráter impecável. Nunca deu trabalho para
ninguém, mesmo na adolescência. Demi, eu ponho minha mão no fogo por ele. O Joe
não contratou os fotógrafos.
—
Se não foi ele, então quem foi? Porque, apesar de você avalizar a conduta do
seu enteado, eu não consigo enxergar outra hipótese. Eu sei o que ouvi, pai.
Não é viagem da minha cabeça, pode acreditar.
—
Para mim, foi uma armação. Ou não. Também pode ter sido uma desculpa de última hora
que os fotógrafos deram para justificar a presença deles na ilha. Não adianta,
Demi. Não vou crucificar o Joe.
—
Ok — murmurei, arrasada. Quem dera eu pudesse acreditar na inocência dele assim
como meu pai estava fazendo!
—
Filha, por mais que eu esteja com vontade de torcer o pescoço dele por ter te
colocado nessa posição vulnerável, para não dizer coisa pior, estou do lado do
Joe.
—
E contra mim? — gritei, mal acreditando no que meus ouvidos tinham escutado.
Típico pensamento machista.
—
Não estou contra você, Demi, embora não tenha engolido essa história de você e
o Joe terem dormido juntos assim tão depressa. Nesse ponto, os dois são
culpados.
—
Pai! — exclamei, chocada. — Só falta você me acusar de ter pedido para ser
fotografada pelos paparazzi só porque... por isso. Aconteceu, não consegui
evitar.
—
Bom, o que eu posso dizer, então? Você já é adulta e sabe o que faz. Mas agora
o mais importante é tentar impedir que as fotos sejam publicadas. Vou entrar em
contato com meus advogados. Se pelo menos soubéssemos para qual veículo de
comunicação esses caras trabalham...
—
É — concordei, desanimada. — Mas isso é fácil de resolver. Pergunte para o Joe.
Andrej
incorporou uma postura tensa e me chamou a atenção:
—
Demi, eu sei que está encucada e que os fatos te levaram a pensar mal dele. Mas
eu acho que está se precipitando. Vou descobrir o que aconteceu e então teremos
a prova da inocência do Joe. Aí, sim, vocês poderão namorar e aproveitar essa
paixão toda.
—
Acontece, pai, que decidi voltar para o Brasil — disse de uma vez, para não
perder a coragem. — Não consigo mais ficar aqui depois disso tudo. Desculpe.
Ele
só ficou me olhando, confuso, como se não acreditasse no que havia acabado de
escutar. Fiquei com pena — não apenas de meu pai, mas de mim mesma também. Se
eu tivesse sido uma boa menina, comportada e menos passional, ainda poderia
desfrutar de mais uns meses na Krósvia, no maior mordomia, sem me preocupar com
absolutamente nada. Mas não, eu tinha que estragar tudo e jogar para o alto
toda a confiança e as regalias que Andrej Markov, o impressionante rei de uma
feliz nação europeia, havia dado de bandeja para mim.
—
Quero voltar, se possível, hoje mesmo. Já conversei com mamãe e ela concorda
que essa é a atitude mais certa agora. Sinto muito se te decepcionei. Você não
merece passar por isso.
Emocionado,
além de bastante contrariado, Andrej tentou argumentar:
—
Que absurdo, filha! Isso não é motivo para sair correndo do país, como uma persona
non grata. Também não estou decepcionado. Você não vai embora assim,
de jeito nenhum.
—
Eu preciso, pai. Preciso dar um tempo, deixar a poeira baixar. É uma questão de
autopreservação. No momento, é o melhor a ser feito. Não fique chateado comigo.
Eu vou voltar. Um dia, eu sei que vou.
Então
ele balançou a cabeça, meio que resignado, e se calou. Assim que se despediu, pediu
que eu ao menos o esperasse voltar da França, pois queria estar comigo
pessoalmente antes de minha viagem.
Saí
do Skype e fiquei encarando o computador em estado catatônico. Meu celular não tocou
nem uma vez, o que indicava que Joseph não havia entrado em contato. Melhor
assim. Chequei meus e-mails só para constatar a mesma coisa: nada de mensagens.
Dele, quero dizer. Porque havia outras. Inclusive a resposta de Selena para
minha declaração aflita no dia anterior. Meu Deus! Só havia passado um dia mesmo?
Desavisada,
minha amiga escrevera um texto cheio de hipérboles e interjeições,
provavelmente pensando que sua animação me contaminaria.
Pobre
Selena! Estava um dia atrasada.
De: Selena Gomez
Para: Demetria Lovato
Assunto: Uhuuuuu!!!
Demi, minha amiga!
Que notícia maravilhosa (embora não
seja nenhuma novidade para mim)!
Mas finalmente admitir que está apaixonada
por um gato daqueles é um
primeiro passo muito importante. E parece
que você não está sozinha nessa, não. Porque, como assim? Então o gostosão do
Joe anda retribuindo seu interesse por ele? Não sei, não, hein!
Isso vai dar namoro, dos quentes.
Já posso prever você e ele, o casal mais
badalado do Leste Europeu — se a Krósvia estiver no leste mesmo. Está?
Bom, preciso consultar um atlas. Mas, amiga,
estou muito contente e confiante que agora vai! Porque vai, não vai? Pelo amor
de Deus, já está mais do que na hora. Vê se dá seu jeito.
Quanto à Nome de Cachorro, escreve o
que estou dizendo: já é carta fora do baralho. Só de olhar para os dois consegui
pressentir isso. E você sabe como sou sensitiva e tal.
Aninha do meu coração, pelo menos dessa
vez siga meu conselho: ouça seu coração e não se deixe abater pelo pessimismo.
Sei que deve estar torcendo o nariz para as minhas palavras filosóficas, mas é
isso mesmo. Tente não ser tão precavida, tão preocupada. O Joe é um deus — e um
amor também. Não o deixe escapar.
Ah! Sobre o Nick. Última atualização do
status: virou um chiclete, dos mais grudentos. Cismou comigo mesmo. Não sei
mais o que fazer. Será que devo denunciá-lo para a polícia? Sim, porque está
beirando a assédio. Ai, ai...
Responde logo, viu? Estou louca para
saber as novidades.
Beijos!
Selena.
Como
eu conseguiria contar que o “deus”, o “amor” do Joe era um farsante, um filho
da mãe, que fizera comigo uma das piores coisas que um ser humano pode fazer
com o outro?
Não
tive vontade de responder. De qualquer forma, assim que eu aterrissasse em Belo
Horizonte, ela seria uma das primeiras pessoas a descobrir a novidade. Bom,
isso se os tabloides de plantão não fossem mais rápidos do que eu — e provavelmente
seriam, não?
Deixei
o computador de lado e puxei minha velha mala pink de uma das prateleiras do
closet. Joguei-a sobre a cama e tratei de organizar minha bagagem. Pelo menos,
ocupava a cabeça com algo produtivo.
Enchi-a
com as roupas que trouxera do Brasil, mas resolvi deixar tudo o que comprara na
Krósvia para trás. Não fora uma garota exemplar, a filhinha com a qual todo pai
sonha. Portanto, não tinha o direito de ir embora com tudo o que Andrej me dera
enquanto acreditava que eu era um doce, um anjo de candura.
Larguei
os jeans caros, os vestidos de alta costura, os sapatos italianos, tudo
impecavelmente guardado dentro do armário. Mas o mais difícil foi abrir mão das
lingeries da Victoria’s Secret, as tão sonhadas, fantasiadas e almejadas
coleções que povoaram meus pensamentos por meses e que acabaram esquecidas numa
gaveta qualquer, sem uso. Quem cuidaria delas? Quem as admiraria com tanto
ardor? Talvez fosse melhor dá-las a Irina ou Karenina. Se bem que, com elas,
aqueles rendas todas também virariam peças de museu, de qualquer forma.
Passei
a tarde inteira nessa função de fazer as malas. Na hora do almoço, pedi na
cozinha que fizessem o favor de levar minha comida até o quarto. Não estava
disposta a interagir com ninguém. Sendo assim, evitei as pessoas deliberadamente,
inclusive Irina e Karenina.
Devolvi
livros à biblioteca e caí no choro quando encontrei uma boneca de pano esquecida
entre as almofadas da sala de leitura. Logo pensei nas meninas do Lar Irmã
Celeste e isso me deprimiu. Não poderia me despedir delas e sabia que meu
retorno repentino para o Brasil as deixaria tristes, talvez até mesmo magoadas.
Coloquei
a boneca na mala. Que mal teria levar comigo uma recordação de momentos de tanta
brincadeira e felicidade? Daria um jeito de substituir o brinquedo por outro,
comprado especialmente numa loja brasileira para a dona da bonequinha. E, se
minha memória estivesse bem calibrada, ela pertencia a Karol.
Da
mesma forma, não tive coragem de ligar para tia Marieva. Ela exigiria saber o
que acontecera para me fazer voltar tão cedo para casa e eu não estava com
disposição para narrar a história mais uma vez. Ficaria em débito com ela e meus
lindos primos também.
Felizmente,
as fotos feitas pelos paparazzi na manhã daquele dia ainda não haviam sido publicadas.
À noite, quando meu pai chegou, ele informou que seus advogados trabalharam
duro e acabaram conseguindo uma liminar na justiça que impedia a divulgação das
imagens até a próxima quinta-feira, ou seja, dois dias depois. Fiquei mais tranquila.
Então
ele quis saber se eu realmente estava decidida a ir embora, se não tinha
desistido da viagem.
—
Infelizmente, não, pai. Está mais do que na hora de eu ir. Preciso respirar um
pouco.
—
Vamos sentir muito a sua falta. Você trouxe alegria e cor para este castelo,
qualidades que há muito tempo estavam perdidas. Vai ser difícil me acostumar
com a sua ausência — declarou, todo emotivo. — Eu sei que não fui um pai muito
presente, que deixei você meio de lado, aos cuidados de outras pessoas, mas
você é tudo para mim, Demi. Não nos conhecemos desde sempre, mas eu te amo como
se tivéssemos vivido juntos desde o começo.
Abracei-o
com força, enterrando meu rosto manchado de lágrimas em sua camisa de linho.
—
Também vou sentir sua falta, papai. Muita. Ou melhor, vou sentir saudades.
Gostaria de ter sido uma filha melhor, menos exigente, menos reclamona, mais
amorosa.
—
E quem disse que não foi? Que não é? Filha, você pode não gostar de ser chamada
de Demetria Devonne, mas seu segundo nome resume bem o que é.
Olhei
para ele, com as sobrancelhas arqueadas, curiosa. É sério, eu nunca tinha pesquisado
o significado de meu nome.
—
Devonne — continuou — é de origem inglesa que significa Divina.
E, onde quer que esteja, sempre será minha encantadora e divina filha.
Enxuguei
as lágrimas com as costas das mãos.
Minha
garganta estava apertada demais para que eu pudesse falar.
—
O nome Demetria, que é de origem grega, também indica uma pessoa forte,
determinada, pé no chão, amável e expressiva, muito criativa e um tanto
curiosa, como você — completou. Eu fiquei encantada. E pensar que eu nunca
tinha gostado do meu nome. — Portanto, não há a menor possibilidade de você ter
sido uma filha ruim, porque isso não combina nem com seus atos, nem com quem
você é.
Andrej
pediu que eu dormisse mais uma noite na Krósvia e deixasse para viajar na manhã
seguinte. Atendi a esse último pedido e fui me deitar.
Com
a cabeça no travesseiro, fiz um balanço de minha vida pós-garota comum. Em
poucos meses, deixara minha pacata existência de universitária para morar num
castelo, ser apresentada para o mundo inteiro como a única princesa da Krósvia,
ser perseguida por paparazzi e ter fotos comprometedoras divulgadas na imprensa.
Ah! Também fora entrevistada pelo Fantástico.
Mas
nada disso, nem uma mísera pontinha, fora mais difícil do que meu último ato no
país de meu pai: dormir com o homem de meus sonhos e acordar com um ogro em vez
de um príncipe.