Não temos esse direito
Acho que a rotação da Terra mudou
de direção. Se antes uma vidente tivesse me avisado que mais tarde Joe e eu
estaríamos atracados nos braços um do outro, eu jamais teria acreditado. Mesmo quando
meus lábios foram traçados pelos dedos dele semanas antes, em meu quarto, ou no
momento em que nos conectamos na Caverna do Pirata, apesar de todas as pistas,
eu nunca cogitara essa possibilidade. Joseph sentia
algo por
mim.
Agora eu sabia. Podia não ser
paixão, mas havia uma força que nos atraía. Isso estava claro, especialmente
porque ele não conseguiu esconder o suspiro que soltou ainda com sua boca presa
à minha. Nem sei se foi suspiro mesmo ou um gemido baixo. O que importava o
nome da coisa, afinal? Bastava para mim o fato de ter me deixado louca,
excitada.
Mas, de repente, um fio de
lucidez surgiu dentro de mim. O que eu estava fazendo, deixando acontecer? Joe
não era um cara solteiro. A namorada dele, a maldita Nome de Cachorro e cérebro
de toupeira com diarreia, devia estar bebericando calmamente um martíni sentada
no sofá da cobertura dele. Nem em seus piores pesadelos ela imaginaria que seu
querido Joseph deslizava as mãos fortes e poderosas pela extensão de meu corpo,
embora fizesse questão de saltar as partes mais... comprometedoras.
Essa constatação foi um banho de
água gelada. Sob uma nova ótica — bastante desesperadora, por sinal —, o título
de cachorra da história havia acabado de ser transferido para mim!
Sem aguentar mais a pressão da
realidade, espalmei minhas mãos no peito de Joseph e o empurrei com força. Ele
não se moveu muito, mas se afastou o suficiente para interromper o beijo e me
fazer sentir vazia.
A prova de nosso crime estava
estampada no rosto dele: cabelos revoltos, lábios vermelhos e inchados, além da
respiração acelerada.
Tapei os olhos com os dedos. Que
vergonha de mim!
— Demi... — Joseph disse, com a
voz entrecortada, mas sem saber direito o que dizer.
Havia fogo em seu olhar.
Estendi os braços e balancei-os
em sua direção, gesticulando com ímpeto.
— Não fala nada. Finge que isso
não aconteceu.
Suas mãos tentaram me alcançar
mais uma vez, mas eu me afastei.
— Não me toque, Joe — supliquei.
Talvez tenha sido o pedido mais difícil que fiz na vida, o mais custoso. — Isso
não está certo.
Enquanto Bon Jovi entoava as
últimas palavras da canção que agora havia se tornado o fundo musical de minha
história — curta, eu sei — com Joseph, Joe me encarou com os olhos carregados
de confusão, angústia, culpa e um resquício de desejo. Mas acabou balançando a cabeça,
um gesto mudo de concordância.
— Tem razão — ele suspirou,
bagunçando ainda mais o cabelo com dedos nervosos.
Aquelas duas palavras, tão
simples, tão genéricas, deixaram-me arrasadas. Preferia que Joe tivesse negado
e dito que desejava aquele beijo desde o dia que nos vimos pela primeira vez, que
estava tão apaixonado quanto eu e que romperia com Laika assim que voltasse
para casa. Entretanto, por mais que
doesse, concordar comigo era a atitude correta.
Senti um frio gigantesco. Apesar
de estar com meu sobretudo, era como se eu estivesse despida. Um tremor
percorreu meu corpo e desejei nunca ter batido o pé para assistir ao show de
Bon Jovi.
Melhor passar a vida imaginando
uma situação sonhada do que experimentá-la uma vez e não poder tê-la nunca
mais.
— É melhor eu ir embora — disse.
— Vou pegar um táxi.
— De jeito nenhum — esbravejou
Joe, todo mandão. — Você já correu riscos demais por hoje. Nem precisa ligar
para o Jorgensen. Eu mesmo a levo para casa.
Tive que rir. Mas não foi uma
risada alegre, com humor. Pelo contrário. Soou como uma ode à derrota, um
manifesto à frustração. Fiz um movimento de desdém com a mão e rejeitei a oferta:
— Seu apartamento está cheio de
visitas, que já devem estar estranhando seu sumiço. Vou voltar sozinha.
Taxistas estão acostumados a carregar celebridades — disse, com ironia.
— Demi, não seja criança. Pense
no seu pai, pelo menos, antes de se enfiar num carro qualquer.
Como se eu estivesse louca para
sair pelas ruas de Perla a bordo de um táxi. Mas que outra opção eu tinha? O
contexto anunciava em letras garrafais que era bem mais seguro voltar para o castelo
com um desconhecido ao volante do que ficar na companhia de Joe.
Devo ter deixado esse pensamento
transparecer, pois Joseph avançou novamente em minha direção, cheio de fúria, e
me segurou pelos ombros, obrigando-me a encará-lo.
— Não vamos discutir isso, Demi.
Eu vou levar você de volta para o Palácio Sorvinski com ou sem seu
consentimento. E não me fale sobre meus amigos e que já devem ter dado pela
minha falta, porque eu não me importo!
Depois de expressar seu argumento
de modo tão delicado e tranquilo quanto um general, Joe averiguou se eu ainda
corria risco, observando a multidão completamente alheia ao que se passara conosco
entre as caixas de som. Selena acharia a situação excitante e daria pulinhos de
alegria se ficasse sabendo. Isso se eu contasse a ela, o que estava
fora de cogitação. Os beijos e todos os outros detalhes que compuseram meu
momento único com Joseph, inclusive Bon Jovi cantando ao fundo, ficariam
guardados só comigo, a vida inteira. Bom, contanto que nenhum paparazzo cretino
tivesse assistido à cena de camarote, mais uma vez.
— Pegue suas sandálias e venha
comigo — ordenou.
— Eu as perdi — sussurrei, agora
chateada com o sumiço delas. Na hora da correria, eu não avaliara a ocorrência
racionalmente.
Joe desviou os olhos para meus
pés e balançou a cabeça. Nossa! Se eu soubesse que me beijar o deixaria tão
irritadiço, jamais teria correspondido! Será que meu beijo era ruim? Jesus,
será? Ai... Eu não estava pronta para conviver com essa constatação.
— Demi, definitivamente você
enlouqueceu — ele me repreendeu. — Primeiro, foge do meu apartamento, depois,
sai descalça nesse frio. Vai acabar adoecendo.
Sem me dar chance de justificar,
Joseph saiu me puxando pela mão. Caminhamos de cabeça baixa, evitando as
pessoas, e num instante entramos no prédio dele e descemos para a garagem.
Quando nos viu, o porteiro optou por não fazer comentários, apenas disse uma
frase em krosvi, um cumprimento qualquer. Eu acho.
Quanto a mim, não tinha coragem
de pronunciar uma palavra. A vergonha pelo que acontecera me calou
completamente. Pior foi suportar a consciência de que seria impraticável
conviver com Joseph daquele momento em diante. Como olharia para ele outra vez
sem visualizar a nós dois naquele amasso fenomenal?
Meu rosto ainda ardia por causa
dos arranhões conquistados pela barba por fazer de Joe quando entrei em seu
Audi, que estava aberto, com a chave na ignição. Se fosse no Brasil...
Sentei o mais perto possível da
porta, de modo que nossos corpos não se tocassem nem por acidente. Fiquei com
pena de sujar o tapete do carro com meus pés cheios de areia, mas o que eu podia
fazer?
Um clima pesado nos envolveu.
Recostei minha cabeça no vidro da janela do carro e fechei os olhos. Não que eu
fosse dormir. Apenas criei uma barreira contra uma possível conversa esclarecedora.
Joe ligou o som e uma música
suave dominou o ambiente. Mas nem isso conseguiu me acalmar. Ao longe, um novo
som deu o ar da graça. Era o celular de Joseph tocando de dentro do bolso de
sua calça jeans. Quis olhar para ele e dizer: “Não vai atender?”. Mas fiquei na
minha, calada, fingindo-me de morta.
Depois de um milhão de tentativas
do outro lado da linha, Joe resolveu acabar com o desespero e atendeu à
chamada, falando em krosvi. Mesmo não entendendo nada, saquei que se tratava de
Laika, até porque foi fácil concluir isso, uma vez que ela mais gritava do que
conversava. Joseph também se exaltou e os dois pareceram entrar no modo
“ofensas gratuitas”. Ainda de olhos fechados, percebi quando Joe lançou o
celular no painel do carro, com força, acho que sem se despedir da namorada. Cheguei
a sentir medo. E se ele resolvesse jogar o Audi de encontro a um poste? Sei
lá... Na hora da fúria, o ser humano é capaz de tudo.
Por fingir estar dormindo, não vi
quando o cenário urbano de Perla se transformou na paisagem bucólica dos
arredores do castelo. Fiquei com pena, porque era uma oportunidade de visualizar
tudo no período noturno. Desde minha chegada à Krósvia, eu havia me
transformado numa pessoa totalmente diurna. Realmente não vi, mas soube quando
entramos no território do Palácio Sorvinski pela mudança de clima. O ar marinho
invadiu meus pulmões, anunciando a chegada a meu destino.
Os portões do castelo foram
abertos pelos guardas de plantão e eu nem bem esperei Joe terminar de
estacionar e já fui saltando do carro, em cima do salto — no sentido figurado,
pois meus saltos de verdade já eram. Não consegui ir muito longe. Joe foi mais
rápido do que eu e me alcançou antes de eu conseguir dar três passos. Segurando
meu pulso — de novo —, disse, ou melhor, ordenou:
— Não vá embora ainda. Precisamos
conversar.
Meu coração entrou num ritmo
alucinado, bombeando sangue por todas as partes de meu ser. Respirei fundo a
fim de me acalmar e encontrar a resposta certa. Então, havia chegado a hora da verdade,
ou seja, de Joseph cair fora de minha vida.
— Acho que não — forcei-me a
dizer. — O que fizemos foi uma loucura, mas podemos fingir que nada aconteceu.
Não tem problema.
— Não? — Joe parecia incrédulo. —
Pois, para mim, tem. Demi, será que você não percebe que foi inevitável, que
chegaríamos a esse ponto de qualquer jeito?
Ele procurava meus olhos, que fiz
questão de manter desfocados dos dele.
— Que ponto? A que ponto
chegamos, me explica? Porque só o que sei é que nossa atitude impensada fez
você trair sua namorada. — Não que eu me importe com ela. Isso eu não disse em voz alta,
mas bem que queria deixar claro de uma vez por todas.
— Demi, não faz assim. Não pense
que não significou nada para mim.
— Mesmo que tenha significado,
Joe. Não vai voltar a acontecer. — Sério, não sei de onde tirei tanta
segurança. — Foi errado e eu não vou me sujeitar mais a isso.
Soltei meus pulsos e passei por
Joseph, decidida a esquecê-lo de uma vez por todas. Taí. Se ele tinha um
defeito, era esse: estar com uma pessoa e pensar em outra.
— Eu não quero que você se afaste
— ele gritou, chamando a atenção dos guardas.
— Impossível. Não temos esse
direito — suspirei. — Estou decepcionada, Joe. Pensei que você fosse diferente.
Mas no momento você está bem perto de se parecer com o imbecil do Nick, que
aproveitou minha ausência para dar em cima da Selena. Acho a Laika uma das
pessoas mais insuportáveis do mundo — confessei, muito magoada. — Mas ainda
assim o que fizemos não foi certo.
Dessa vez eu o choquei. Sua
expressão mudou de agonia para apatia. Ele baixou o olhar, derrotado.
— Você tem razão — disse, por
fim, num fio de voz fria, sem emoção. — Não é justo mesmo. Mas quero que
saiba...
— Não diga nada. Paramos por
aqui. — Cortei sua fala e disparei para dentro do castelo. Não queria ouvi-lo
dizer que tinha um enorme carinho por mim ou coisa parecida.
Nem sei quando ele se foi. Não
parei de correr enquanto não alcancei meu quarto e me joguei sobre a cama, de
vestido de noite e casaco. Com a cabeça enterrada nos travesseiros, chorei como
nunca. Deixei as lágrimas levarem embora toda a dor e a decepção que se
acumularam em meu peito. Acabei adormecendo daquele jeito: suja, vestida e
arrasada. Nem a lembrança do beijo maravilhoso conseguiu me consolar naquela
noite.
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