Divulgação: Sedução e Vingança
Feijoada com farinha
Por alguns dias, a
imprensa o meu suposto affair com Joseph. Os
jornalistas, principalmente os especializados em fofoca — mas não apenas estes
—, perderam horas e horas com suposições e conjecturas, afirmando categoricamente
que tudo indicava que Joe e eu éramos um casal.
Chegaram a publicar
reportagens completas com fontes autenticando a versão sensacionalista de um
relacionamento fictício. E, pelo jeito a notícia era quente, uma vez que a
mídia custou a largar o osso, inclusive a brasileira. Fui procurada até pela
produção do Fantástico, o único programa no
qual meu pai permitiu minha participação.
Então, as portas do
Palácio Sorvinski foram abertas para receber a reportagem do Fantástico.
Foi interessante
contar como minha vida havia virado do avesso da noite para o dia e a repórter
se divertiu quando contei que tanto Ana Maria Braga quanto o Facebook foram os
maiores responsáveis pela reviravolta. Ela quis que eu explicasse melhor, então
eu disse:
— Minha mãe estava no
Mais Você preparando uma das
receitas maravilhosas dela e, sem querer, meu pai assistiu ao programa e soube que
ela tinha uma filha. Ele ligou os pontos e recorreu ao Facebook para chegar a
mim.
A pergunta que gerara
o verdadeiro interesse do programa finalmente acabou sendo feita e não me
importei quando o assunto foi abordado, pois não suportava mais ouvir todos os
boatos e invenções de boca fechada.
— E então, Demi, o
que há entre você e o Joseph Jankowski?
Antes de responder,
acabei suspirando inconscientemente.
— Absolutamente nada
— afirmei com toda convicção. Porque era a verdade, gostasse eu ou não.
Desde o fatídico —
mas excitante — dia na Caverna do Pirata, não tivera mais nenhuma notícia de
Joseph. Ou seja, ele ignorara a ressalva de Andrej sobre estarmos livres para passar
nosso tempo juntos desde que dentro dos limites do castelo. Portanto, o que
mais eu poderia dizer? A única resposta possível era que não tínhamos um
relacionamento. Ele não queria nada comigo e uma pessoa sozinha não formava um casal.
Simples assim.
Soube que Nome de
Cachorro havia armado a maior tempestade quando tivera acesso às fotos do paparazzo
— que, aliás, estava lucrando horrores às minhas custas. Irina comentou que
fora um barraco daqueles, com direito a quebra-quebra no apartamento de Joseph.
Como ela soubera disso? Não me perguntem, mas tenho um palpite: Andrej Markov.
Laika ameaçara
terminar o namoro, mas Joe acabara dominando a situação. Conclusão: gostava mesmo
da garota, pois a deixa não poderia ter sido melhor.
Depois dessa, caí num
processo meio depressivo. Não havia solução para meu amor platônico. No castelo,
ninguém entendia meu abatimento, embora quase todo mundo apostasse que a causa
fosse a privação de liberdade à qual fui submetida.
As meninas do Lar
Irmã Celeste mantiveram suas visitas e só não me deixei embalar totalmente pela
melancolia por causa delas, que se tornaram pessoas muito especiais em minha
vida. Elas iam até o castelo pela leitura, mas sempre escapávamos para um
passeio pelos arredores, às vezes acompanhadas por Bruce, de vez em quando por
Irina e até por tia Marieva e suas crianças.
Esse meu novo lado
altruísta também foi explorado na entrevista ao Fantástico. Consequentemente, passei a ser comparada a Lady Di, a princesa
do povo, dos pobres. Para dizer a verdade, detestei a comparação. Não por
Diana, é claro. Só achei uma baita forçada de barra, uma vontade louca de me
rotular de uma forma ou de outra.
Mais uma injeção de
desânimo.
E o tempo, senhor
soberano de nossos destinos, foi passando, empurrando-me para a segunda metade
de minha estadia na Krósvia, fato que me consolava, mas também alimentava minha
angústia. A situação passou a ser a seguinte: num dia, eu desejava voltar para
casa; no outro, chorava só de pensar nisso.
No final de novembro,
consegui pagar a promessa de preparar e oferecer uma feijoada a tia Marieva e
sua família. O clima contribuiu, pois estava frio, ou melhor, gelado. Escrevi
uma listinha de ingredientes e pedi a Jorgensen que fosse ao mercado de
importados. Lá, ele achou tudo, inclusive farinha de mandioca torrada na Bahia.
Eu estava disposta a caprichar, a fazer com que meus convidados krosvianos
jamais se esquecessem do famoso prato brasileiro.
Expulsei todo mundo
da cozinha e implorei a Karenina que não aparecesse para bisbilhotar. E fiz
mais: convoquei-a para o almoço, não como cozinheira, mas como convidada de
honra. Ela debulhou um monte de desculpas, mas eu não quis nem saber. O dia era
meu, assim como o fogão.
Por estar concentrada
no preparo da feijoada, não vi o momento exato em que tia Marieva entrou no
palácio, mas logo soube da chegada, pois consegui escutar os gritinhos de meus
primos. Ninguém foi me cumprimentar, já que deixara ordens expressas para
nenhum ser humano aparecer na cozinha.
Distraí-me
completamente temperando e cortando as carnes, fritando as costelas, os paios, os
pedaços de lombos, as fatias de bacon. Cozinhei o feijão preto, descasquei as
cebolas e os alhos e piquei a couve com uma precisão cirúrgica. O ambiente foi
sendo impregnado pelos odores da culinária brasileira. Se o sabor da feijoada
estivesse tão bom quanto o cheiro, calorias subiriam naquele dia.
Em outra panela,
refoguei o arroz do jeito que aprendera com minha mãe. Primeiro, coloquei um filete
de óleo de canola e fritei os grãos. Só depois temperei com uma colher de sal
com alho, mexendo bem para espalhar o tempero. O segredo para deixá-lo soltinho
era colocar água previamente fervida sobre o arroz frito e cozinha-lo em fogo
baixo.
Descasquei e fatiei
laranjas frescas, refoguei a couve e, antes de servir meus convidados, separei
um vidro de pimenta malagueta, um tesouro que Jorgensen trouxera para mim do mercado.
Pronto: a hora da verdade havia chegado.
Uma empregada surgiu
para me ajudar a levar a comida para a mesa, que já estava divinamente posta.
Por um instante, vacilei. Meu cheiro não estava adequado para a ocasião, muito
menos minha aparência. Uma manhã inteira dando uma de Tia Anastácia acabava com
o charme de qualquer um. Mas tomar um banho era um luxo que eu não poderia me
dar naquele momento. Estavam todos me esperando.
Eu só não esperava
que entre todos Joe estivesse no meio. Semanas
sem vê-lo não foram suficientes para que eu o esquecesse, nem para que minha
paixão diminuísse. Pelo contrário. Quando nossos olhos se encontraram — ele,
sentado em frente à grande mesa da sala de jantar, e eu, carregando um caldeirão
de feijoada —, senti meus músculos se contraírem dentro do peito e uma vontade
louca de pular no pescoço dele e beijá-lo quase me dominou.
Ainda bem que Nome de
Cachorro não fazia parte do grupo. Caso contrário, acho que seria capaz de
entornar o caldo de feijão na cabeça loira dela.
Só desviei meu olhar
de Joseph porque palmas entusiasmadas chamaram minha atenção. Com certeza elas
não tinham nada a ver com minha beleza — ou com a falta dela naquele momento. Aposto
que a comoção foi motivada pelas barrigas roncando.
Karenina me olhou com
timidez, pois acredito que nunca na vida já estivera sentada naquela cadeira,
desfrutando da posição de servida e não de servidora. Irina era só sorrisos e
aprovação. Marcus, o marido de tia Marieva, parecia um cachorro raivoso, pois
quase pude ver uma baba escorrendo nos cantos de sua boca. Eca!
— Servidos? —
perguntei, de repente muito inibida e insegura.
Meu pai, com cara de
esfomeado, suspirou:
— Já era tempo!
E como se fôssemos
uma família comum, daquelas que a maioria das pessoas tem, atacamos a feijoada,
falando e gesticulando, atropelando uns aos outros, fazendo brincadeiras,
enfim, deixando-nos levar por uma sensação de bem-estar até então inédita para
mim desde que chegara à Krósvia.
Nada de criados
fazendo as honras de servir um a um, nada de formalidades desnecessárias.
Éramos apenas nós, uma família muito barulhenta e animada, empolgadíssima com o
prato de domingo.
— Menina, suas mãos
são mágicas. — O elogio foi feito por Marcus. — Esta feijoada está divina!
Agradeci polidamente.
— É verdade, querida.
Até as crianças comeram — completou tia Marieva, admirada com o apetite dos
filhos, normalmente chatos para comer.
— Você vai ter que
aprender a fazer isso, Karenina — avisou meu pai, já no terceiro prato. Notei
que ele havia não só aprovado a farinha de mandioca, mas consumido boa parte
dela.
— É. Quando a Demi
for embora... — Irina começou a falar, mas deixou a frase morrer. De repente,
ninguém sorria mais.
— Demi, você vai
embora? — indagou minha priminha Giovana, com uma carinha que só as crianças
sabem fazer quando se decepcionam.
Senti meu coração
partir.
Todos me encararam,
na expectativa de minha resposta. E eu preferia ter que comer milho cru a discutir
aquele assunto à mesa do almoço.
— Daqui a uns meses,
lindinha. Ainda vai demorar um pouquinho. — Quis parecer despreocupada e sorri
para autenticar a fachada tranquila.
— Por que você não
pode ficar para sempre? — Foi a vez de Luce questionar.
Lá se foi a alegria
do almoço. Por que Irina tivera que abrir a boca?
— É complicado, Luce
— murmurei, apoiando o garfo no prato. — Gostaria de poder ficar mais, mas
deixei minha mãe para trás, meus avós, minha faculdade...
— E quando você se
for, vai deixar o tio Andrej, minha mãe, a gente — ela apontou para si e para
os irmãos —, o Joe. Não dá no mesmo?
Aquele, sim, era um
argumento e tanto. Senti-me encurralada.
Ouvi meu pai fazer um
barulho com a boca, como se dissesse: “explica essa agora, Demi”. Relanceei o
olhar para Joseph, cuja expressão me desafiava a prosseguir.
— Sim, vai ser muito
triste partir — admiti. — Quando eu voltar para o Brasil, vou sentir muita saudade de
todos vocês. Muita, muita, muita saudade.
Como já era costume
entre nós, conversámos em inglês. Mas a palavra saudade eu fiz questão de pronunciar
em minha língua-mãe, para expressar com exatidão o que sentiria ao deixá-los
para trás.
— Saudade?
— tia Marieva repetiu, com uma pronúncia engraçada. — Como assim?
— Sempre ouvi dizer
que saudade é uma palavra exclusiva da língua portuguesa. Quando dizemos que
estamos com saudade, significa que sentimos uma falta tão imensa de alguém que
a dor queima no peito. É como se a alma ficasse meio perdida sem a proximidade
das pessoas de quem temos saudade.
Todos me escutaram
com atenção, até as crianças. Acredito que estavam processando a explicação que
dei e procuravam entender a dimensão do tal sentimento. Joe me olhava de um jeito
novo. Parecia melancolia misturada com alguma outra coisa, algo intenso e meio
irracional. Mas não consegui identificar o que era.
— Saudade é ruim —
Giovana concluiu.
— Dependendo do ponto
de vista, sim. Ela só é boa quando sabemos que podemos matá-la, ou seja, quando
reencontramos quem não está por perto.
— Então, por que você
não fica na Krósvia, Demi? E vai ao Brasil só para... matar a saudade? —
sugeriu Luka, com toda a sua inocência infantil.
— Bom, acho que daqui
para a frente vou viver sentindo e matando saudade, de uma forma ou de outra.
Tia Marieva assentiu.
Seus olhos brilhavam, acho que de emoção.
— Crianças, não
deixem a Demi triste. Claro que ela vai estar sempre conosco, sempre que puder
vir, não é, querida?
Balancei a cabeça,
concordando. Mas não queria falar mais. Se fizesse isso, correria o risco de
engasgar, levando em consideração quanto meu peito doía. Falar de saudade era
tão ruim quanto sentir. Mas pior ainda era sentir saudade de alguém que
provavelmente não retribuiria esse sentimento. Portanto, quando a falta de
Joseph apertasse de meu lado do Atlântico, seria a saudade mais solitária do
planeta.
Tivemos aquele
momento deprê durante o almoço, mas ele passou. O assunto feijoada voltou ao
topo das conversas e nós nos deixamos levar pela letargia provocada pela
barriga cheia. Acabamos todos esparramados nas espreguiçadeiras do terraço, com
clima frio e tudo, enquanto saboreávamos um cafezinho, indispensável depois de
uma comilança daquelas.
O final da tarde
chegava lentamente, colorindo o céu de rosa, um indicador incontestável da
noite gelada que se aproximava. Já com o repertório de assuntos meio esgotado, passamos
a falar de música. Ao afirmar que era fã de Bon Jovi, Joe abriu um sorriso
cheio de intenções obscuras e soltou essa:
— Já vi que não sabe
que os caras vão dar um show aqui em Perla na próxima sexta-feira. — Ele
balançou a cabeça. — Está desinformada, hein?
— Como é? O Bon Jovi,
aquele Bon Jovi incrível e maravilhoso, vai fazer um show aqui?
Joseph franziu as
sobrancelhas, com cara de nojo.
— Incrível e
maravilhoso, tudo isso é por sua conta — desdenhou ele. — Mas o show vai
acontecer mesmo. Estão montando um palco na praia, em frente ao meu prédio.
Abri a boca e me
esqueci de fechar. Nunca tinha ido a um show de Bon Jovi. Na última apresentação
da banda no Brasil, minha mãe não me deixara ir, pois eles não se apresentaram
em Belo Horizonte e viajar para o Rio de Janeiro ou São Paulo no meio da semana
não era uma boa ideia. Pelo menos para ela. E agora lá estavam eles, ou melhor,
ele, Jon Bon Jovi, em Perla.
Encarei meu pai na
esperança vã de que ele permitisse minha ida ao show. Mas nem cheguei a pronunciar
um pedido. Andrej foi mais esperto:
— Nem me peça para
ir. Imagine você, em público? Não faz o menor sentido.
— Paaaiii... — Fiz
beicinho, não para comover, mas porque estava mesmo disposta a implorar. — Por
favor. Eu me disfarço, coloco um boné, pinto o cabelo de roxo, visto uma burca.
Mas não me impeça de ir. Eu amo o Bon Jovi!
Meu apelo só serviu
para provocar uma gargalhada grupal. Acho que mencionar a burca foi meio
demais.
— Não vamos negociar
isso, Demi. Fim de papo.
Droga, droga, droga, droga! Quero a minha vida de volta!
Saí da
espreguiçadeira num pulo, preparada para fazer uma retirada teatral, puxando a
capa num gesto dramático (se eu estivesse de capa, digo).
— Andrej, é claro que
a Demi não pode assistir ao show no meio do público. — Nem acredito que Joe
teve a coragem de concordar com meu pai na minha cara. Que cretino! — Mas da
minha varanda tudo bem, concorda?
Da varanda dele? Como
assim?
— Da sua varanda...
— É. Vou ter uma
visão privilegiada. O palco está na frente do meu prédio. Pensei em reunir uns
amigos lá em casa e assistir ao show da varanda ou da cobertura. E, se você
deixar, levo a Demi comigo.
Aquele homem existia,
gente? Ele era de verdade? Porque não parecia. Agora, mais essa. Ir para a casa
dele. Ficar com ele na casa... dele.
Ouvir Bon Jovi gritar
Always da casa dele. Céus, vocês estão me enviando um sinal? Era o que parecia.
Depois, lembrei que
Joe dissera algo sobre reunir os amigos. Isto é, não estaríamos sozinhos. Melhor
admitir que a oferta era por caridade. Mesmo assim, eu não recusaria. Ah, não!
Em que outra vida eu teria a oportunidade de ver Jon Bom Jovi de perto — ou
quase — e escutar suas músicas ao vivo? Talvez nunca mais.
Fiz cara de
desesperada para Andrej. Tive medo de falar e comprometer o efeito da expressão
desolada.
— Joe, que amigos vão
estar lá? — meu pai quis saber.
Apertei a mão de tia
Marieva com força. Uma súplica velada.
— Alguns, só os mais
chegados e confiáveis, Andrej. Ninguém vai tirar pedaço da Demi. Prometo.
Bom, se ele quisesse
tirar não só um, mas vários pedaços, eu não me oporia.
— E a Laika? Depois
daquele episódio...
Meu pai tinha que se
lembrar de Nome de Cachorro?
— Ela já está mais
calma — assegurou Joe. — Pode ficar sossegado, Andrej, eu tomo conta dela, ok?
Ninguém vai se aproximar da nossa Demi, nem sequer encostar um dedo nela.
Homens são uns
insensíveis mesmo. Nenhum dos dois se preocupou em pedir minha opinião! E aquela
coisa de nossa Demi? De onde Joseph tirou
essa? Se ele quisesse mesmo ter algum direito sobre minha pessoa, era só pedir.
Não deveria ficar fazendo insinuações levianas. Afinal, eu não tinha sangue de
barata.
Entretanto, Andrej
disse sim. Não sem antes desfiar um terço de recomendações na cabeça de Joe e
listar uma infinidade de poréns relacionados a meu bem-estar. Eu era muito
sortuda mesmo. Vivera minha vida inteira fazendo quase tudo que queria e agora,
com quase 21 anos, eu dependia do consentimento de meu pai para tudo.
~*~
Respostas dos comentários do Cap anterior: Capítulo 13
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