The Fault In Our Stars
Gritei
para acordar meus pais e eles entraram no quarto como dois furacões, mas não
havia nada que pudessem fazer para diminuir a intensidade da supernova que
explodia na minha cabeça, uma cadeia interminável de fogos de artifício
intracranianos que me fizeram pensar que minha hora tinha chegado de vez, e
tentei me convencer — como já tinha feito antes — de que o corpo desliga quando
a dor fica insuportável demais, que a consciência é temporária e que tudo vai
passar. Mas, como sempre, não desmaiei. Fui deixada na areia com as ondas
batendo em mim, sem poder me afogar.
Papai
foi dirigindo enquanto falava com o hospital ao celular, eu deitada no banco de
trás com a cabeça apoiada no colo da minha mãe. Não havia nada a fazer: gritar
só piorava. Para falar a verdade, qualquer estímulo só piorava.
A
única solução seria tentar desmanchar o mundo, torná-lo negro e silencioso e
inabitado de novo, voltar ao momento anterior ao Big Bang, no começo, quando
havia o Verbo, e viver naquele espaço não criado e vazio sozinha com o Verbo.
As pessoas falam da coragem dos pacientes de câncer, e eu não a nego. Por
vários anos fui cutucada, cortada e envenenada, e segui em frente. Mas não se
enganem: naquele momento, eu teria ficado muito, muito feliz em morrer.
* *
*
Acordei
na UTI. Pude perceber que era a UTI porque não estava num quarto particular, e
porque havia vários aparelhos bipando, e porque eu estava sozinha: eles não
deixam a família ficar na UTI do Hospital Pediátrico vinte e quatro horas por
dia, sete dias por semana porque isso representaria risco de infecção. Ouvi um
choro vindo do fim do corredor. O filho de alguém tinha morrido. Eu estava
sozinha. Apertei o botão vermelho para chamar alguém.
Uma
enfermeira apareceu alguns segundos depois.
—
Oi — falei.
—
Oi, Demetria. Sou Alison, sua enfermeira — ela disse.
—
Oi, Alison Minha Enfermeira — falei.
Depois
disso comecei a me sentir muito cansada de novo. Mas fiquei acordada por um
tempo quando meus pais entraram, chorando, e me deram vários beijos. Tentei
erguer o tronco para abraçar os dois, e tudo em mim doeu quando os abracei, e
mamãe e papai me contaram que não havia nenhum tumor no meu cérebro, e que
minha dor de cabeça tinha sido causada por má oxigenação, o que por sua vez foi
provocado pelo fato de meus pulmões estarem nadando em líquido, um litro e meio
(!!!!) que tinha sido drenado com sucesso do meu peito, e era por isso que eu
talvez fosse sentir um leve desconforto ao deitar de lado, onde havia, ei, veja
isso, um tubo que ia do meu peito até um recipiente de plástico com líquido até
a metade, que, juro, parecia a cerveja preferida do meu pai. Mamãe me disse que
eu iria para casa, de verdade, que só teria de fazer essa drenagem de vez em
quando e que precisaria voltar a usar o BiPAP, o equipamento noturno que força
a entrada e a saída de ar dos meus pulmões de araque. Mas eu tinha feito uma
tomografia computadorizada de corpo inteiro na primeira noite no hospital,
segundo eles, e a notícia era boa: nenhum crescimento de tumor. Nada de novos
tumores. A dor no meu ombro tinha sido falta de oxigenação. Dores de um coração
trabalhando mais que o normal.
—
Hoje de manhã a Dra. Maria nos disse que continua otimista — papai falou.
Eu
gostava da Dra. Maria, e ela não era de mentir, por isso adorei ouvir aquilo.
—
Isso é só um detalhe, Demetria — minha mãe disse. — É um detalhe com o qual
conseguiremos conviver.
Assenti
com a cabeça, e então a Minha Enfermeira Alison meio que fez com que eles
saíssem, educadamente. Ela me perguntou se eu queria umas pedrinhas de gelo e
eu disse que sim, e aí ela se sentou na cama comigo e me deu as pedrinhas na
boca, de colher.
—
Então você ficou fora do ar alguns dias — a Alison disse. — Humm… O que você
perdeu?… Uma celebridade se drogou. Políticos brigaram. Uma outra celebridade usou
um biquíni que revelou uma imperfeição corporal. Um time venceu um campeonato,
mas outro time perdeu. — Eu sorri.
—
Você não pode continuar se isolando do mundo assim, Demetria. Você perde muita
coisa.
—
Mais? — interroguei, fazendo um gesto com a cabeça na direção do copo branco de
isopor que estava na mão dela.
—
Eu não deveria — ela respondeu —, mas sou rebelde. — E me deu outra colherada
do gelo triturado.
Murmurei
um “obrigada”. Graças a Deus pelas boas enfermeiras.
—
Está ficando cansada? — ela perguntou.
Fiz
que sim.
—
Durma um pouco — ela completou. — Vou tentar mexer uns pauzinhos e lhe dar
algumas horas antes que entre alguém para verificar seus sinais vitais e coisas
do gênero.
Agradeci
mais uma vez. Em hospitais, você agradece o tempo todo. Tentei me ajeitar no
leito.
—
Você não vai perguntar nada sobre seu namorado? — ela me questionou.
—
Eu não tenho namorado — falei.
—
Bem, um garoto mal saiu da sala de espera desde que você chegou aqui — ela
disse.
—
Ele não me viu assim, viu?
—
Não. Só a família.
Assenti
com a cabeça e mergulhei num sono aquoso.
* *
*
Ainda
faltariam seis dias para eu voltar para casa, seis dias perdidos olhando para o
isolamento acústico no teto, vendo televisão, dormindo, sentindo dor e querendo
que o tempo passasse logo. Não vi o Joseph nem ninguém além dos meus pais. Meu
cabelo parecia um ninho de passarinho; meu passo de cágado, o de um paciente
com demência. Mas a cada dia me sentia ligeiramente melhor: cada sono acabava
revelando uma criatura que se parecia um pouco mais comigo. O sono combate o
câncer, disse meu médico, Jim, pela milésima vez quando pairou sobre mim certa
manhã, rodeado por um grupo de estudantes de medicina.
—
Então eu sou uma máquina de combate ao câncer — disse para ele.
—
Isso você é mesmo, Demetria. Continue descansando e, com sorte, poderemos
mandá-la para casa logo.
* *
*
Na
terça-feira, eles me disseram que eu iria para casa na quarta. Na quarta, dois
residentes minimamente supervisionados removeram o dreno do meu tórax. A
sensação foi de estar levando uma facada de dentro para fora, o que, no fim das
contas, não saiu como deveria, por isso eles decidiram que eu teria de ficar
até quinta. Já estava começando a pensar que eu era objeto de algum experimento
existencialista de gratificação postergada em modo contínuo quando, na
sexta-feira de manhã, a Dra. Maria apareceu, me farejou por um minuto e me
disse que eu poderia ir embora.
Aí
a mamãe abriu sua enorme bolsa e mostrou que lá dentro estavam, desde sempre,
minhas Roupas de Ir Para Casa. Uma enfermeira veio e retirou os aparatos da
terapia intravenosa. Eu me senti livre, mesmo ainda tendo de carregar o
cilindro de oxigênio para todo lado. Entrei no banheiro, tomei meu primeiro
banho em uma semana e me vesti. Quando saí, estava tão cansada que tive de
deitar para recuperar o fôlego.
—
Você quer ver o Joseph? — minha mãe perguntou.
—
Pode ser — respondi, após alguns instantes.
Eu
me levantei e me transferi para uma das cadeiras de plástico encostadas na
parede, enfiando o cilindro debaixo dela. Aquilo acabou comigo.
Papai
voltou com o Joseph minutos depois. O cabelo dele estava bagunçado, caindo na
testa. Seu rosto se iluminou com um legítimo Sorriso Bobo à la Joseph Jonas
quando me viu, e também não consegui evitar um sorriso. Joe se sentou na
poltrona reclinável azul de couro falso que estava perto da minha cadeira. Ele
se inclinou para a frente, se aproximando de mim, aparentemente incapaz de
conter o sorriso.
Mamãe
e papai nos deixaram sozinhos, o que foi meio constrangedor. Eu me esforcei
para olhar nos olhos dele, embora fossem tão lindos que eram quase impossíveis
de encarar.
—
Estava com saudade de você — o Joseph disse.
Minha
voz saiu mais baixa do que eu gostaria.
—
Obrigada por não tentar me ver quando eu parecia ter saído do inferno.
—
Para falar a verdade, sua aparência ainda não está lá essas coisas.
Eu
ri.
—
Senti saudade de você também. Só não quero que você veja… tudo isso. Só quero,
tipo… Não tem importância. Não é sempre que a gente pode ter o que quer.
—
Sério? — ele perguntou. — Sempre pensei que o mundo fosse uma fábrica de
realização de desejos.
—
Acontece que não é esse o caso — falei. Ele era tão belo… Levantou a mão para
pegar a minha, mas eu balancei a cabeça negativamente. — Não — falei baixinho.
— Se vamos ficar juntos, tem de ser, tipo, não assim.
—
Tá — ele disse.
—
Bem, eu tenho boas e más notícias no campo da realização de desejos.
—
Então? — falei.
—
A má notícia é que, obviamente, não vamos poder ir a Amsterdã até você
melhorar. Mas os Gênios vão executar a famosa magia deles quando estiver se
sentindo bem o suficiente.
—
Essa é a boa notícia?
—
Não. A boa notícia é que, enquanto você dormia, Peter Van Houten compartilhou
um pouco mais de sua mente genial conosco. Ele aproximou a mão da minha de
novo, dessa vez para colocar nela uma folha bem dobrada, um papel timbrado sob
o nome de Peter Van Houten, Romancista Emérito.
* *
*
Não
li a carta até entrar em casa e deitar na minha enorme cama vazia, sem qualquer
chance de interrupção médica. Levei horas tentando decifrar a escrita inclinada
e garranchosa de Van Houten.
Caro Sr. Jonas,
Acabei de receber sua correspondência
eletrônica com data de 14 de abril e estou devidamente impressionado com a
complexidade shakespeariana de seu drama. Todos nessa história têm uma harmatia
sólida como uma rocha: a dela, estar tão doente; a sua, estar tão bem. Se ela
estivesse melhor ou o senhor, mais doente, então as estrelas não estariam tão
terrivelmente cruzadas, mas é da natureza das estrelas se cruzar, e nunca
Shakespeare esteve tão equivocado como quando fez Cássio declarar: “A culpa,
meu caro Bruto, não é de nossas estrelas / Mas de nós mesmos.” Fácil falar
quando se é um nobre romano (ou Shakespeare!), mas não há qualquer escassez de
culpa em meio às nossas estrelas.
Permanecendo no assunto das falhas do
bom e velho William, seu texto acerca da jovem Demetria me fez recordar o
soneto cinquenta e cinco do bardo, que, como o senhor deve saber, começa assim:
“Nem o mármore, nem os áureos mausoléus / De reis hão de durar mais que meu
verso ardente; / Mas nele brilhareis mais refulgentemente / Do que a pedra
largada aos ultrajes do tempo.” (Fugindo um pouco do assunto, mas: que meretriz
é o tempo. Nos fode a todos.) É um lindo poema, porém, enganoso: com certeza,
nos lembramos dos versos ardentes de Shakespeare, mas o que temos em mente
sobre a pessoa que ele homenageia? Nada. Temos quase certeza de que se trata de
um homem; tudo mais é suposição. Shakespeare nos revelou muito pouco sobre o
homem que sepultou em seu sarcófago linguístico. (Perceba também que, quando
falamos de literatura, o fazemos no tempo presente. Quando falamos dos mortos,
não somos tão generosos.) Não se imortaliza a perda escrevendo sobre eles. A
escrita enterra, mas não ressuscita. (Declaração total e irrestrita: não sou o
primeiro a fazer esta observação. Cf. o poema de MacLeish ‚Nem o mármore, nem
os áureos mausoléus‚, que contém o verso heroico: “Direi que morrerás e não se
lembrarão de teu passado.”)
Estou a divagar, mas eis a falha: os
mortos são visíveis apenas através do terrível olho vigilante da memória. Os
vivos, graças aos céus, mantêm a capacidade de surpreender e de decepcionar.
Sua Demetria está viva, Jonas, e o senhor não deve impor sua vontade sobre a
decisão de outrem, em particular uma decisão que foi tomada após muita
ponderação. Ela deseja salvaguardá-lo da dor, e o senhor deve deixar que ela
assim o faça. É possível que não ache a lógica da jovem Demetria persuasiva,
mas tenho atravessado esse vale de lágrimas há mais tempo que o senhor e, do
meu ponto de vista, não é ela a lunática.
Atenciosamente,
Peter Van Houten
Tinha
sido mesmo escrita por ele. Lambi o dedo, umedeci o papel e a tinta borrou um
pouco, e foi assim que soube que era verdadeiramente verdadeira.
—
Mãe — disse.
Não
falei muito alto, mas não precisava mesmo. Ela estava sempre à espera. Sua cabeça
apareceu por trás da porta.
—
Está tudo bem, querida?
—
Podemos ligar para a Dra. Maria e perguntar se uma viagem internacional me
mataria?
Capítulo VIII
Nós
tivemos uma grande Reunião da Equipe do Câncer alguns dias depois. De vez em
quando, médicos, assistentes sociais, fisioterapeutas e várias outras pessoas
se reuniam em volta de uma mesa enorme numa sala de reunião e debatiam a minha
situação. (Não a situação do Joseph Jonas, nem a situação de Amsterdã. A
situação do câncer.)
Eu
me sentia um pouco melhor, acho. Dormir com o BiPAP a noite toda fazia meus
pulmões parecerem quase normais, embora, pensando bem, eu não me lembrasse
direito de como era a normalidade pulmonar.
Todos
chegaram lá e fizeram uma grande demonstração de como aquela reunião seria
totalmente focada em mim ao desligarem seus pagers e tudo mais, e então a Dra.
Maria disse:
—
Bem, a boa notícia é que o Falanxifor continua a controlar a evolução do tumor,
mas obviamente ainda estamos vendo sérios problemas com a acumulação de
líquido. Então, a questão é: como devemos proceder?
E
aí ela simplesmente olhou para mim, como se esperasse uma resposta.
—
Humm — falei. — Acho que não sou a pessoa mais qualificada nesta sala para
responder a essa pergunta.
Ela
sorriu.
—
Certo. Eu estava esperando a resposta do Dr. Simons. Dr. Simons?
Ele
era outro médico de câncer de algum tipo.
—
Bem, nós sabemos, pela experiência com outros pacientes, que a maioria dos
tumores acaba achando um jeito de evoluir apesar do Falanxifor, mas se fosse
esse o caso, veríamos o crescimento do tumor nos exames de imagem, e não foi o
que vimos. Portanto, ainda não se trata disso.
Ainda,
pensei.
O
Dr. Simons batia na mesa com o indicador.
—
O consenso aqui é que é possível que o Falanxifor esteja piorando o edema, mas
nós depararíamos com problemas muito mais sérios se descontinuássemos seu uso.
A
Dra. Maria acrescentou:
—
Não conhecemos os efeitos reais do Falanxifor após muitos anos de uso.
Pouquíssimas pessoas vêm se tratando com ele a mesma quantidade de tempo que
você.
—
Então não vamos fazer nada?
—
Vamos continuar com esse procedimento — a Dra. Maria disse —, mas precisaremos
nos esforçar mais para evitar a piora do edema.
Fiquei
meio enjoada por algum motivo que não sei qual, como se fosse vomitar. Eu
odiava as Reuniões da Equipe do Câncer, em geral, mas odiei essa especialmente.
—
Seu câncer não vai sumir daí, Demetria. Mas já vimos pessoas viverem com o
mesmo nível de penetração tumoral por muito tempo.
(Eu
não perguntei o que constituía o “muito tempo”. Já havia cometido este erro
antes.)
—
Sei que, por ter acabado de sair da UTI, a sensação é outra, mas esse líquido
é, pelo menos por enquanto, administrável — ela concluiu.
—
Não dá para simplesmente eu fazer tipo um transplante ou algo assim? —
perguntei.
Os
lábios da Dra. Maria sumiram para dentro da boca.
—
Infelizmente, você não seria considerada uma forte candidata para um
transplante — ela disse.
E
eu entendi: não fazia sentido desperdiçar pulmões bons em um caso perdido.
Assenti com a cabeça, tentando não deixar transparecer que aquele comentário
havia me magoado. Meu pai começou a chorar baixinho. Não olhei para ele, mas
ninguém disse nada por um bom tempo, e então o choro dele era o único ruído
sendo emitido naquela sala. Eu odiava fazê-lo sofrer. A maior parte do tempo,
conseguia não me lembrar disso, mas a verdade inexorável era: eles podiam estar
felizes por me ter por perto, mas eu era o alfa e o ômega no sofrimento dos
meus pais.
* *
*
Logo
antes do Milagre, quando eu estava na UTI e parecia que ia morrer, e a mamãe
ficava me dizendo que estava tudo bem, que eu poderia descansar em paz — e eu
bem que tentava descansar em paz, mas meus pulmões continuavam procurando pelo
ar —, a mamãe soluçou algo no peito do papai que eu preferiria não ter ouvido,
e esperava que ela nunca descobrisse que eu ouvi. Ela falou: “Eu vou deixar de
ser mãe.” Isso arrasou comigo.
Não
consegui parar de pensar nesse episódio durante toda a Reunião da Equipe do
Câncer. Não conseguia tirá-lo da cabeça, o som da voz dela quando disse a
frase, como se nunca mais fosse ficar bem de novo, o que provavelmente
aconteceria.
* *
*
Enfim,
acabamos resolvendo manter as coisas do jeito que estavam, a única diferença
sendo as drenagens mais frequentes do líquido. Ao término da reunião, perguntei
se poderia viajar para Amsterdã, e o Dr. Simons riu, literalmente, mas a Dra.
Maria perguntou:
—
Por que não?
O
Simons questionou, meio hesitante:
—
Por que não?!
E
a Dra. Maria completou:
—
É. Eu não vejo por que não. Eles têm oxigênio nos aviões, no fim das contas.
O
Dr. Simons disse:
—
Quer dizer que eles vão despachar um BiPAP?
E
a Maria respondeu:
—
Sim. Ou vão ter um lá esperando por ela.
—
Colocar uma paciente, nada menos que um dos sobreviventes mais promissores do
Falanxifor, a oito horas de voo da única médica intimamente familiarizada com o
caso dela? É a receita para um desastre.
A
Dra. Maria deu de ombros:
—
Aumentaria alguns riscos — ela reconheceu, e depois virou para mim e completou:
—
Mas é a vida dela.
* *
*
Só
que, nem tanto. No carro, na volta para casa, meus pais decidiram: eu não iria
a Amsterdã a menos, e até, que houvesse um consenso entre os médicos de que
seria seguro para mim.
* *
*
O
Joseph me ligou naquela noite depois do jantar. Eu já estava na cama — meu
toque de recolher havia mudado provisoriamente para logo depois do jantar —,
apoiada num zilhão de travesseiros, o Azulzinho do lado, computador no colo.
Atendi falando logo:
—
Má notícia.
E
ele disse:
—
Merda. O que aconteceu?
—
Não posso ir a Amsterdã. Um dos meus médicos não acha que seja uma boa ideia.
Ele
ficou calado por um instante.
—
Cara — disse, por fim. — Eu deveria ter pago a viagem com o meu dinheiro.
Deveria ter levado você direto dos Ossos Maneiros para Amsterdã.
—
Mas aí eu provavelmente teria tido um episódio fatal de desoxigenação em
Amsterdã, e meu corpo teria sido despachado de volta no compartimento de carga
do avião — falei.
—
É, pode ser — ele disse. — Mas, antes disso, meu gesto extremamente romântico
com certeza teria levado você direto para a minha cama.
Eu
ri muito, tanto que até senti dor no ponto em que o dreno torácico tinha
estado.
—
Você ri porque sabe que é verdade — ele disse e eu ri de novo. — É verdade, não
é?!
—
Provavelmente não — falei e, depois de alguns instantes, acrescentei: — Mas,
nunca se sabe.
Ele
gemeu, em ânsias:
—
Eu vou morrer virgem — falou.
—
Você é virgem? — perguntei, surpresa.
—
Demetria — ele disse —, você tem uma caneta e uma folha de papel? — Respondi
que tinha. — Então tá. Desenhe um círculo, por favor. — Desenhei. — Agora faça
um círculo menor dentro dele. — Obedeci. — O círculo maior representa os
virgens. O círculo menor é composto por jovens de dezessete anos com uma perna
só.
Ri
mais uma vez e argumentei que o fato de a maior parte das atividades sociais
dele ocorrerem num hospital pediátrico também não ajudava muito no quesito
promiscuidade. Aí falamos sobre o comentário extremamente genial de Peter Van
Houten quanto à meretricidade do tempo e, mesmo eu estando na minha cama e o Joseph,
no porão dele, realmente deu a impressão de que estávamos de volta àquela
terceira dimensão invisível, lugar que gostei muito de visitar na companhia
dele.
Depois
que desliguei o telefone, minha mãe e meu pai entraram no meu quarto e, mesmo a
minha cama não sendo grande o suficiente para nós três, eles se deitaram
comigo, cada um de um lado, e todos assistimos ao ANTM na minha televisãozinha.
A garota de quem eu não gostava, Ashley, tinha sido eliminada do programa, o
que por algum motivo me deixou bastante satisfeita. Então mamãe me conectou ao
BiPAP e ajeitou as cobertas em cima de mim, papai beijou minha testa, um beijo
arranhado, de barba malfeita, e, por fim, fechei os olhos. Basicamente, o que o
BiPAP fazia era assumir o controle da minha respiração, o que era muito
incômodo, mas o grande barato era o barulho que fazia, ressoando a cada
inspiração e chiando quando eu expirava.
Eu
ficava pensando que aquele som parecia o de um dragão respirando ao mesmo tempo
que eu, como se eu tivesse um dragão como bicho de estimação, aninhado junto a
mim, e que se importava tanto comigo que até sincronizava sua respiração com a
minha. Estava pensando nisso quando mergulhei num sono profundo.
* *
*
Acordei
tarde na manhã seguinte. Vi televisão ainda na cama, li meus e-mails e, depois
de um tempo, comecei a rascunhar uma mensagem para o Peter Van Houten contando
por que não conseguiria ir a Amsterdã, mas dizendo que jurava pela vida da
minha mãe que nunca compartilharia qualquer informação sobre os personagens com
ninguém, que eu nem queria dividir isso com ninguém, porque eu era uma pessoa
incrivelmente egoísta, e que, por favor, será que ele poderia me dizer se o
Homem das Tulipas Holandês é ou não um vigarista e se a mãe da Anna se casa com
ele e, também, o que aconteceu com Sísifo, o hamster?
Mas
não enviei. Era patético demais, até para mim.
Lá
pelas três da tarde, imaginando que o Joseph já teria chegado em casa da
escola, fui até o quintal e liguei para ele. Enquanto o telefone tocava me
sentei na grama, que já estava bem alta e apinhada de dentes-de-leão. O balanço
ainda estava lá, ervas daninhas brotando da pequena vala que eu havia criado
com os pés ao me impulsionar cada vez mais alto quando era bem novinha. Lembrei
do dia em que papai trouxe para casa o kit de balanço da Toys “R” Us e montou
aquele aparato no quintal com a ajuda de um vizinho. Ele insistiu em se
balançar primeiro para testar a resistência do brinquedo, e o troço quase
quebrou todo.
O
céu estava cinzento e nublado, mas não chovia ainda. Desliguei quando ouvi a
voz do Joseph na saudação da caixa postal e coloquei o telefone no chão ao meu
lado. Continuei olhando para o balanço, pensando que eu abriria mão de todos os
dias doentes que me restavam em troca de uns poucos saudáveis. Tentei me
convencer de que poderia ser pior, que o mundo não era uma fábrica de
realização de desejos, que eu estava vivendo com câncer e não morrendo por
causa dele, que eu não deveria deixar que ele me matasse antes da hora, e aí
comecei a murmurar idiota idiota idiota idiota idiota idiota sem parar até que
o som da palavra se desassociou do seu significado. Ainda estava repetindo
quando ele retornou a minha ligação.
—
Oi — falei.
—
Demetria Lovato — ele disse.
—
Oi — falei de novo.
—
Você está chorando, Demetria?
—
Mais ou menos.
—
Por quê? — ele perguntou.
—
Porque eu… eu quero ir a Amsterdã, quero que ele me diga o que acontece depois
que o livro acaba, e simplesmente não quero mais essa vida, e, além disso, o
céu está me deixando deprimida, e tem esse velho balanço aqui que meu pai montou
para mim quando eu era criança.
—
Preciso ver esse velho balanço de lágrimas imediatamente — ele disse. — Chego
aí em vinte minutos.
* *
*
Continuei
no quintal porque minha mãe sempre ficava muito angustiada e preocupada quando
eu chorava, já que eu não chorava com frequência, e sabia que ela ia querer
conversar e debater se eu não deveria considerar fazer alterações nos meus
remédios, e só de pensar na possibilidade dessa conversa toda fiquei com
vontade de vomitar.
Não
que eu tivesse uma lembrança clara e comovente de um pai saudável empurrando
uma criança saudável no balanço e a criança dizendo mais alto mais alto mais
alto, ou de algum outro momento metaforicamente ressonante. O balanço só estava
lá, abandonado, as duas cadeirinhas, imóveis e tristes, penduradas de uma tábua
acinzentada de madeira, o formato dos assentos parecendo o traço de um sorriso
feito por uma criança.
Atrás
de mim, ouvi o ruído da porta de correr de vidro se abrindo. Virei o corpo. Era
o Joseph, com uma calça cáqui e uma camisa xadrez de manga curta. Enxuguei o
rosto na manga da blusa e sorri.
—
Oi — falei. Ele demorou um pouquinho para se sentar no chão ao meu lado, e fez
uma careta ao aterrissar um tanto desajeitadamente de bunda.
—
Oi — falou, por fim. Olhei para ele e vi que observava o quintal atrás de mim.
—
Entendo o que você quer dizer — ele disse e passou o braço por cima dos meus
ombros. — Aquele é um pedaço de balanço triste e maldito.
Aninhei
a cabeça no ombro dele.
—
Obrigada por se oferecer para vir aqui.
—
Você sabe que tentar me manter a distância não vai diminuir o que eu sinto por
você — ele disse.
—
Talvez? — falei.
—
Todos os esforços para me proteger de você serão inúteis — ele disse.
—
Por quê? Por que é que você deveria sequer gostar de mim? Já não se colocou em
situações difíceis assim o suficiente? — perguntei, pensando em Caroline
Mathers.
O
Joe não respondeu. Ele só ficou ali, me abraçando, os dedos firmes no meu braço
esquerdo.
—
Precisamos fazer algo a respeito desse raio de balanço — ele falou. — Vou dizer
uma coisa para você: ele é o responsável por noventa por cento do problema.
* *
*
Assim
que me refiz, entramos e sentamos no sofá, lado a lado, o laptop metade apoiado
no joelho (de mentira) dele e a outra metade, no meu.
—
Quente — comentei sobre o fundo do laptop.
—
Está mesmo? — Ele sorriu.
Joe
acessou um site de doações chamado Grátis Sem Pegadinha e juntos redigimos um
anúncio.
—
Título? — ele perguntou.
—
Balanço Precisa de um Lar — falei.
—
Balanço Extremamente Solitário Necessita de um Lar Amoroso — ele disse.
—
Balanço Solitário e Ligeiramente Pedofílico Procura Bumbuns de Crianças —
falei.
Ele
riu.
—
É por isso.
—
O quê?
—
É por isso que gosto de você. Você tem ideia de como é raro encontrar uma gata
que use essa versão adjetivada do substantivo pedófilo? Você está tão ocupada
sendo você mesma que não faz ideia de quão absolutamente sem igual você é.
Respirei
fundo pelo nariz. Nunca havia ar suficiente no mundo, mas a carência dele
naquele momento estava particularmente crítica.
Escrevemos
juntos o anúncio, fazendo as devidas edições às nossas ideias conforme íamos
digitando. Por fim, acabamos com o seguinte texto:
Balanço Extremamente Solitário
Necessita de Um Lar Amoroso
Um balanço bastante usado, mas em
condições estruturalmente boas, procura um novo lar. Crie lembranças com seu
filho, ou filhos, para que um dia ele, ou ela, ou eles olhem para o quintal e
sintam o mesmo tipo de sentimentalismo que experimentei esta tarde. Tudo é
frágil e efêmero, caro leitor, mas com este balanço seu filho conhecerá os
altos e baixos da vida devagar e com segurança, e também poderá aprender a
lição mais crucial de todas: não importa quão forte seja o impulso, não importa
o quão alto se chegue, não será possível dar uma volta completa.
O balanço reside atualmente na Rua
83, quase esquina com a Spring Mill.
Depois
disso ligamos a televisão por um tempo, mas não conseguimos achar nada que nos
interessasse, então peguei o exemplar de Uma aflição imperial da mesa de
cabeceira, levei o volume para a sala de estar e o Joseph Jonas leu algumas
páginas para mim, enquanto mamãe, que preparava o almoço, escutava.
—
“O olho de vidro da mãe da Anna virou ao contrário” — o Augustus começou.
Enquanto
ele lia, me apaixonei do mesmo jeito que alguém cai no sono: gradativamente e
de repente, de uma hora para outra.
* *
*
Quando
verifiquei meus e-mails uma hora depois, descobri que havia vários candidatos
para o balanço dentre os quais poderíamos escolher. No fim, selecionamos um
cara chamado Daniel Alvarez, que anexou uma foto de seus três filhos jogando
videogame e, no assunto do e-mail, escreveu: Só quero que eles brinquem ao ar
livre. Respondi à mensagem dizendo que poderia buscar o balanço quando bem
entendesse.
O
Joseph me perguntou se eu queria ir com ele à reunião do Grupo de Apoio, mas eu
estava muito cansada, depois de passar um dia inteiro ocupada Tendo Câncer, por
isso declinei do convite. Estávamos no sofá quando ele empurrou o corpo para
cima, para se levantar, mas acabou caindo sentado de novo e me tacou um beijo
na bochecha.
—
Joseph! — exclamei.
—
Beijo de amigo — ele disse. Empurrou o corpo para cima novamente, dessa vez
permanecendo de pé, e então deu dois passos na direção da minha mãe. — É sempre
um prazer vê-la — ele disse, e minha mãe abriu os braços para lhe dar um
abraço, no que o Joseph se inclinou e deu um beijo na bochecha dela. E se virou
para mim: — Viu? — perguntou.
Fui
para a cama logo após o jantar, o BiPAP suprimindo o mundo que ficava do lado
de fora do meu quarto.
E
nunca mais vi o balanço.
* *
*
Dormi
bastante tempo, dez horas, provavelmente por causa do processo lento de
recuperação, provavelmente porque o sono combate o câncer e provavelmente
porque eu era uma adolescente sem hora certa para acordar. Ainda não me sentia
forte o suficiente para voltar a frequentar as aulas no MCC. Quando, enfim,
tive vontade de levantar, tirei a máscara do BiPAP do nariz, coloquei o cateter
do oxigênio nas narinas, liguei o aparelho e tirei o laptop de debaixo da cama,
onde o tinha guardado na noite anterior. Lá havia um e-mail da Lidewij Vliegenthart.
Cara Demetria,
Recebi uma mensagem dos Gênios
dizendo que você virá nos visitar com Augustus Waters e sua mãe, chegando aqui
no dia 4 de maio. Em apenas uma semana! Peter e eu estamos encantados e não
vemos a hora de conhecê-los pessoalmente. Seu hotel, o Filosoof, fica a apenas
uma rua da casa do Peter. Talvez devêssemos dar um dia para que vocês se
recuperem dos efeitos do jet lag? Sendo assim, se for conveniente, nós os
encontraremos na casa do Peter na manhã do dia 5 de maio, talvez às dez horas,
para uma xícara de café e para que ele responda às perguntas que você quer
fazer sobre o livro dele. E, depois disso, nós poderíamos talvez fazer uma
visita a um museu ou à Casa de Anne Frank.
Cordialmente,
Lidewij Vliegenthart
Assistente-executiva do Sr. Peter Van
Houten,
autor de Uma aflição imperial
—
Mãe — falei. Ela não respondeu. — MÃE! — gritei. Nada. De novo, mais alto: —
MÃE!
Ela
veio correndo enrolada numa toalha cor-de-rosa velhinha, toda pingando,
ligeiramente em pânico.
—
O que aconteceu?
—
Nada. Foi mal. Eu não sabia que você estava tomando uma chuveirada.
—
Eu estava na banheira — ela disse. — Só estava… — Fechou os olhos. — Só estava
tentando tomar um banho de banheira de cinco segundos. Perdão. O que está
havendo?
—
Você poderia ligar para os Gênios e dizer a eles que a viagem foi cancelada?
Acabei de receber um e-mail da assistente do Peter Van Houten. Ela acha que
vamos até lá.
Mamãe
franziu os lábios e passou por mim com os olhos semicerrados.
—
O quê? — perguntei.
—
Não era para eu dizer nada até seu pai chegar.
—
O quê? — perguntei de novo.
—
A viagem está de pé — ela disse, por fim. — A Dra. Maria nos ligou ontem à
noite e nos convenceu de que você precisa viver a sua…
—
MÃE, EU TE AMO TANTO! — gritei.
Ela
foi até a minha cama e deixou que eu a abraçasse.
Mandei
um torpedo para o Joseph porque sabia que ele estava na escola:
Ainda disponível dia três de maio?
:-)
Ele
respondeu na mesma hora.
Está tudo indo às mil maravilhas para
o meu lado.
Se
ao menos eu conseguisse ficar viva por uma semana, conheceria os segredos não
publicados da mãe de Anna e do Homem das Tulipas Holandês. Dei uma espiada na
minha blusa, na altura do peito.
— Vocês têm de se comportar — sussurrei para meus pulmões