The Fault In Our Stars
Faltando
pouco para eu completar meu décimo sétimo ano de vida minha mãe resolveu que eu
estava deprimida, provavelmente porque quase nunca saía de casa, passava horas
na cama, lia o mesmo livro várias vezes, raramente comia e dedicava grande
parte do meu abundante tempo livre pensando na morte.
Sempre
que você lê um folheto, uma página da Internet ou sei lá o que mais sobre
câncer, a depressão aparece na lista dos efeitos colaterais. Só que, na
verdade, ela não é um efeito colateral do câncer. É um efeito colateral de se
estar morrendo. (O câncer também é um efeito colateral de se estar morrendo.
Quase tudo é, na verdade.) Mas a mamãe achava que eu precisava de tratamento,
então me levou ao meu médico comum, o Jim, que concordou que eu, de fato,
estava nadando numa depressão paralisante e totalmente clínica e, portanto, ele
ia trocar meus remédios e, além disso, eu teria que frequentar um Grupo de
Apoio uma vez por semana.
O
grupo era formado por um elenco rotativo de pessoas com várias questões
psicológicas desencadeadas pelos tumores. A razão de o elenco ser rotativo?
Efeito colateral de se estar morrendo.
O
Grupo de Apoio era megadeprimente, óbvio. A reunião acontecia toda quarta-feira
no porão de uma igreja episcopal — uma construção no formato de cruz com
paredes de pedra. Nós nos sentávamos em uma roda bem no meio da cruz: onde os
dois pedaços de madeira um dia se cruzaram, onde esteve o coração de Jesus.
Sabia
disso porque o Kevin, Líder do Grupo de Apoio e o único naquele lugar com mais
de dezoito anos, falava sobre o coração de Jesus todo raio de reunião, sobre
como nós, jovens sobreviventes do câncer, estávamos sentados bem no sagrado
coração de Cristo, e tal.
Bem,
era assim que acontecia no coração do Senhor: os seis ou sete ou dez de nós
chegávamos lá a pé/de cadeira de rodas, comíamos um pouco daqueles biscoitos
velhos com limonada, sentávamos na Roda da Esperança e ouvíamos o Kevin contar
pela milésima vez a história ultradeprimente e superinfeliz da sua vida — sobre
ter tido câncer nas bolas e acharem que ele ia morrer, mas não morreu, e ali
estava, já adulto, no porão de uma igreja na 137ª cidade mais linda dos Estados
Unidos, divorciado, viciado em videogames, quase sem amigos, levando uma vida
sem graça explorando seu fantástico passado com câncer, ralando para terminar
um mestrado que não vai melhorar sua perspectiva de progresso na carreira e
esperando, como todos nós, que a espada de Dâmocles traga para ele o alívio do
qual escapou muitos anos atrás, quando o câncer levou seus testículos e lhe
deixou algo que só a alma mais generosa poderia chamar de vida.
E
VOCÊS TAMBÉM PODEM TER ESSA SORTE!
Aí
nós nos apresentávamos: Nome. Idade. Diagnóstico. E como estávamos no dia. Meu
nome é Demetria, dizia na minha vez. Dezesseis. Tireoide, originalmente, mas
com uma respeitável colônia satélite há muito tempo instalada nos pulmões. E
está tudo bem comigo.
Depois
do último da roda, o Kevin sempre perguntava se alguém queria se abrir. E aí
começava a punheta grupal de apoio mútuo: todo mundo falando de lutar,
combater, vencer, remitir e examinar. Para não ser injusta com o Kevin, ele nos
deixava falar da morte. Mas a maioria ali não estava morrendo. A maioria
viveria até a idade adulta. Como o Kevin.
(Isso
significa que havia muita competição, com todo mundo querendo vencer não só o
câncer, mas também as outras pessoas da roda. Tipo, eu sei que não faz o menor
sentido, mas quando você ouve que tem, por exemplo, vinte por cento de chance
de viver cinco anos, e faz as contas e conclui que isso é uma chance em cinco…
você olha em volta e pensa, como qualquer pessoa saudável faria: eu preciso
durar mais que quatro desses desgraçados.)
A
única coisa que salvava no Grupo de Apoio era um menino chamado Nicholas. E seu
problema eram os olhos. Ele teve um tipo inacreditavelmente improvável de
câncer ocular. Um olho foi extraído quando ele era pequeno, e agora Nicholas
usava um par de óculos fundo de garrafa que fazia os olhos (tanto o de verdade
quanto o de vidro) parecerem sobrenaturalmente grandes, como se a cabeça
inteira fosse basicamente o globo ocular de mentira e o de verdade olhando para
você. Pelo que pude entender das raras vezes que ele se abriu para o grupo, uma
recorrência colocou o olho que resta em perigo mortal.
O
Nicholas e eu nos comunicávamos quase exclusivamente por meio de suspiros. Cada
vez que alguém falava de dietas anticâncer, de cheirar cartilagem de tubarão em
pó ou sei lá, ele me olhava e suspirava de leve. Eu balançava a cabeça em um
movimento microscópico e dava um suspiro em resposta.
*
* *
Então
o Grupo de Apoio deu o que tinha de dar, e depois de algumas semanas eu passei
a surtar quando tocavam no assunto. Na verdade, na quarta-feira em que conheci
o Joseph Jonas, tinha feito de tudo para me livrar da ida à sessão de grupo
enquanto estava sentada no sofá com a mamãe, no meio da terceira parte da
maratona de doze horas da temporada anterior de America’s Next Top Model, que,
confesso, já tinha visto, mas mesmo assim…
Eu:
“Eu me recuso a ir ao Grupo de Apoio”.
Mamãe:
“Um dos sintomas da depressão é a falta de interesse em participar de
atividades”.
Eu:
“Por favor, mãe, deixe eu ficar vendo America’s Next Top Model. Isso é uma
atividade”.
Mamãe:
“Televisão é passividade.”
Eu:
“SAAAAAAACO.”
Mamãe: “Demetria, você merece uma vida.”
Aquilo me fez calar a boca, mesmo não tendo
conseguido entender o que a ida ao Grupo de Apoio tinha a ver com a definição
de vida. De qualquer jeito, concordei em ir — depois de negociar o direito de
gravar o episódio e meio do ANTM que eu ia perder. Ia ao Grupo de Apoio pelo
mesmo motivo que uma vez deixei enfermeiras com um ano e meio de faculdade me
envenenarem com substâncias químicas de nomes exóticos: queria fazer meus pais
felizes. Só tem uma coisa pior nesse mundo que bater as botas aos dezesseis
anos por causa de um câncer: ter um filho que bate as botas por causa de um
câncer.
* * *
Mamãe parou na entrada de carros circular
atrás da igreja às 4h56. Fingi que estava ajeitando o cilindro de oxigênio por
um segundo só para ganhar tempo.
— Quer que eu o carregue até lá dentro?
— Não, está tudo bem — respondi.
O cilindro verde só pesava uns poucos quilos e
eu tinha um carrinho de aço para transportá-lo. Aquilo me fornecia dois litros
de oxigênio por minuto através de uma cânula, um tubo transparente que se
dividia bem embaixo do meu pescoço, passava por trás das orelhas e se juntava
de novo nas narinas. A geringonça era necessária porque meus pulmões faziam um
péssimo trabalho como pulmões.
— Eu te amo — ela disse, enquanto eu saltava
do carro.
— Eu também, mãe. Vejo você às seis.
— Faça amigos! — ela gritou pela janela
abaixada enquanto eu me distanciava. Não quis usar o elevador porque isso é o
tipo de coisa que você faz nos seus “Últimos dias no Grupo de Apoio”, então fui
de escada. Peguei um biscoito, coloquei um pouco de limonada num copo
descartável e me virei.
Um garoto olhava fixamente para mim.
Eu tinha quase certeza de nunca ter visto
aquele cara na vida. Alto e magro, mas musculoso, ele fazia a cadeira de
plástico, daquelas usadas em sala de aula, parecer minúscula. Cabelo castanho,
ondulado e meio curto. Parecia ter a minha idade, talvez um ano mais velho, e
estava sentado com o cóccix na beirada da cadeira, uma postura péssima, com uma
das mãos enfiada até a metade no bolso da calça jeans escura.
Desviei o olhar, repentinamente consciente da
quantidade infinita de coisas erradas em mim. Eu estava com uma calça jeans
velha, que algum dia foi justa mas que agora ficava folgada nos lugares mais estranhos,
e uma camiseta de malha amarela com o nome de uma banda da qual eu nem gostava
mais. Tinha também meu cabelo: Recém-cortado um pouco abaixo dos ombros, e eu nem
tive a preocupação de dar uma escovada nele. Além disso, minhas bochechas
estavam ridiculamente redondas, como as de um esquilo, efeito colateral do
tratamento. Eu era uma pessoa de proporções normais com um balão no lugar da
cabeça. Isso sem falar do inchaço nos tornozelos. Mesmo assim, dei uma espiada
rápida e os olhos dele ainda estavam grudados em mim.
Foi então que entendi o verdadeiro sentido de
aquilo ser chamado de contato visual.
Andei até a roda e me sentei ao lado do Nicholas,
a duas cadeiras do garoto. Olhei de novo, rapidamente. Ele ainda me observava.
Na boa, vou logo dizendo: ele era um gato. Se
um cara que não é gato encara você sem parar, isso é, na melhor das hipóteses,
esquisito, e na pior, algum tipo de assédio. Mas se é um cara gato… na boa…
Peguei meu celular e apertei uma tecla para
ver as horas. Os lugares na roda foram ocupados por azarados de doze a dezoito
anos e, então, o Kevin deu início aos trabalhos com a prece da serenidade:
Senhor, dê-me serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar,
coragem para modificar as que posso, e sabedoria para reconhecer a diferença
entre elas. O garoto ainda estava me encarando. Senti meu rosto ficar vermelho.
Por fim, resolvi que a melhor estratégia seria
também olhar fixamente para ele. Afinal de contas, os garotos não detêm o
monopólio da Atividade Encaradora. Foquei nele enquanto o Kevin explicava pela
milésima vez sua ausência de bolas etc., e aquilo logo virou um Jogo do Sério.
Depois de um tempo o garoto sorriu e, até que enfim, desviou os olhos verdes.
Quando me olhou de novo, arqueei as sobrancelhas como que dizendo: ganhei.
Ele deu de ombros. O Kevin prosseguiu e,
enfim, a hora das apresentações chegou.
— Nicholas, talvez você queira ser o primeiro
hoje. Sei que está enfrentando um grande desafio no momento.
— É — o Nicholas disse. — Meu nome é Nicholas.
Tenho dezessete anos. Parece que vou precisar ser operado em duas semanas,
depois vou ficar cego. Não estou reclamando nem nada porque sei que poderia ser
pior, como no caso de alguns aqui, mas, quer dizer, ficar cego é, tipo, uma
droga. Ter uma namorada me ajuda. Além de amigos como o Joseph. — Ele balançou
a cabeça na direção do garoto, que agora tinha nome. — Pois é… — continuou. Ele
estava olhando para as mãos, os dedos cruzados parecendo o topo de uma tenda
indígena. — Não há nada que se possa fazer para mudar isso.
— Estamos do seu lado, Nicholas — o Kevin
falou. — Vamos lá, pessoal, digam para o Nicholas ouvir.
E então todos nós, em uníssono, dissemos:
— Estamos do seu lado, Nicholas.
O Michael foi o próximo. Ele tinha doze anos.
Sofria de leucemia. Desde que se entendia por gente. E estava bem. (Pelo menos
foi o que disse. Ele desceu de elevador.)
A Lida tinha dezesseis anos e era bonita o
suficiente para ser alvo do olhar do cara gato. Era frequentadora assídua das
reuniões — estava em um longo período de remissão de um câncer de apêndice, que
eu nem sabia que existia. Ela disse — como em todas as outras vezes que eu fui
às sessões do grupo — que se sentia forte, o que para mim, com aquela chuvinha
de oxigênio fazendo cosquinhas no nariz, era o mesmo que tirar onda. Outros
cinco falaram antes do cara gato. Ele deu um sorrisinho quando chegou sua vez.
A voz era baixa, aveludada e supersensual.
— Meu nome é Joseph Jonas — disse. — Tenho
dezessete anos. Tive uma pitada de osteossarcoma um ano e meio atrás, mas só
estou aqui hoje porque o Nicholas pediu.
— E como está se sentindo? — o Kevin
perguntou.
— Ah, maravilha. — Joseph Jonas deu um
sorrisinho. — Estou numa montanha-russa que só vai para cima, amigão.
Quando chegou minha vez, eu disse:
— Meu nome é Demetria. Tenho dezesseis anos.
Tireoide com metástase nos pulmões. Estou bem.
A hora passou rápido. Lutas foram recontadas,
batalhas ganhas em guerras que com certeza seriam perdidas; a esperança virou
tábua de salvação; famílias foram celebradas e recriminadas; foi consenso que
os amigos não entendiam nada; lágrimas foram compartilhadas, e consolo,
oferecido.
Nem eu nem o Joseph Jonas tínhamos soltado uma
palavra, até que o Kevin disse:
— Joseph, talvez você queira falar de seus
medos para o grupo.
— Meus medos?
— É.
— Eu tenho medo de ser esquecido — disse ele
de bate-pronto. — Tenho medo disso como um cego tem medo de escuro.
— Calma aí… — disse Nicholas, abrindo um
sorriso.
— Estou sendo insensível? — perguntou o Joseph.
— Eu posso ser bem cego quando o assunto são os sentimentos das outras pessoas.
O Nicholas estava rindo, mas o Kevin levantou
um dedo, repreendendo-o.
— Por favor, Joseph. Voltemos a você e às suas
questões. Disse que tem medo de ser esquecido?
— É — respondeu o Joseph.
O Kevin pareceu meio perdido.
— Alguém, ahn, alguém gostaria de fazer algum
comentário?
Eu não frequentava uma escola de verdade havia
três anos. Meus melhores amigos eram meus pais. Meu terceiro melhor amigo era
um escritor que nem sabia que eu existia. Eu era relativamente tímida — de
jeito nenhum o tipo que levanta a mão para falar. E, mesmo assim, só dessa vez,
resolvi abrir o verbo. Levantei a mão, e o Kevin, a satisfação estampada na
cara, disse:
— Demetria!
Eu estava, tenho certeza de que foi isso o que
ele pensou, me abrindo. “Me tornando parte do grupo.”
Olhei na direção do Joseph Jonas, que me
encarava. Dava quase para ver através dos olhos dele, de tão verdes.
— Vai chegar um dia — eu disse — em que todos nós
vamos estar mortos. Todos nós. Vai chegar um dia em que não vai sobrar nenhum
ser humano sequer para lembrar que alguém já existiu ou que nossa espécie fez
qualquer coisa nesse mundo. Não vai sobrar ninguém para se lembrar de
Aristóteles ou de Cleópatra, quanto mais de você. Tudo o que fizemos,
construímos, escrevemos, pensamos e descobrimos vai ser esquecido e tudo isso
aqui — fiz um gesto abrangente — vai ter sido inútil. Pode ser que esse dia
chegue logo e pode ser que demore milhões de anos, mas, mesmo que o mundo
sobreviva a uma explosão do Sol, não vamos viver para sempre. Houve um tempo
antes do surgimento da consciência nos organismos vivos, e vai haver outro
depois. E se a inevitabilidade do esquecimento humano preocupa você, sugiro que
deixe esse assunto para lá. Deus sabe que é isso o que todo mundo faz.
Eu tinha aprendido aquilo com meu já citado
terceiro melhor amigo, Peter Van Houten, o autor recluso de Uma aflição
imperial — de todos os meus livros, o mais próximo de uma Bíblia. Peter Van Houten
era a única pessoa que eu conhecia que parecia: (a) entender o que era estar
morrendo, e (b) não ter morrido.
Assim que terminei fez-se um longo silêncio, e
eu pude ver um sorriso se abrindo de um canto ao outro no rosto do Joseph — não
o tipo de sorriso cafajeste do garoto tentando parecer sexy ao me encarar, mas
um sorriso sincero, quase maior que a cara dele.
— Caramba! — disse ele baixinho. — Não é que
você é mesmo demais?
Nós dois não falamos mais nada até o fim da
reunião, quando todos se deram as mãos e o Kevin nos guiou em uma prece.
— Senhor Jesus Cristo, estamos aqui reunidos
em Seu coração, literalmente em Seu coração, como sobreviventes do câncer. O
Senhor e somente o Senhor nos conhece como conhecemos a nós mesmos. Nos guie
pela vida e para a Luz em nossos períodos de provação. Oremos pelos olhos do Nicholas,
pelo sangue do Michael e do Jamie, pelos ossos do Joseph, pelos pulmões da Demetria,
pela garganta do James. Oremos para que o Senhor consiga nos curar e para que
possamos sentir Seu amor e Sua paz, que excedem todo o entendimento. E nos
lembremos em nossos corações daqueles que um dia conhecemos, amamos e que foram
para a Sua casa: Maria, Kade, Augustos, Haley, Abigail, Angelina, Taylor,
Gabriel…
A lista era grande. Tem muita gente morta no
mundo. E enquanto o Kevin continuava a ladainha, lendo a relação em uma folha
de papel porque era muito comprida para ser decorada, fiquei de olhos fechados,
tentando elevar os pensamentos em oração, mas a maior parte do tempo imaginava
o dia em que meu nome ocuparia um lugarzinho ali, bem no fim da lista, quando
ninguém mais está prestando atenção.
Quando o Kevin acabou, entoamos junto aquele
mantra idiota — VIVENDO O MELHOR DA NOSSA VIDA HOJE — e foi o fim da reunião. O
Joseph Jonas empurrou o corpo para fora da cadeira e caminhou na minha direção.
O andar dele era tão cafajeste quanto o sorriso. Ele parou na minha frente, mas
manteve uma certa distância para eu poder olhá-lo nos olhos sem ter de esticar
o pescoço.
— Qual é o seu nome? — ele perguntou.
— Demetria.
— Não, o nome completo.
— Ahn, Demetria Devonne Lovato.
Ele ia dizendo alguma coisa quando o Nicholas
se aproximou.
— Só um instante — falou, levantando um dedo,
e virou-se para o Nicholas. — Isso foi pior do que você tinha dito, na verdade.
— Eu disse que era um tédio.
— Por que você se dá o trabalho de vir aqui?
— Sei lá. Meio que ajuda…?
O Joseph inclinou o corpo achando que assim eu
não conseguiria ouvi-lo.
— Ela vem sempre? — Não deu para escutar o
comentário do Nicholas, mas o Joseph respondeu:
— Quer saber? — Ele pegou o Nicholas pelos
ombros e deu meio passo para trás.
— Conte à Demetria da ida ao médico.
O Nicholas apoiou uma das mãos na mesa de
biscoitos e virou o olho enorme para mim.
— Tá, é que eu fui ao médico hoje de manhã e
estava falando para o meu cirurgião que preferiria ser surdo a ser cego. E ele
disse: “Não é assim que as coisas funcionam.” Aí eu falei, tipo: “É, eu sei que
não é assim; só estou dizendo que preferiria ser surdo a ser cego se pudesse escolher,
mas sei que não posso.” E ele: “Bem, a boa notícia é que você não vai ficar
surdo.” Eu disse: “Obrigado por esclarecer que meu câncer no olho não vai me
deixar surdo. É muita sorte minha ter um gênio como você me operando.”
— Ele é mesmo um gênio — falei. — Vou tentar
arrumar um câncer qualquer no olho para poder conhecer esse cara.
— Boa sorte. Então, tá. Já vou indo. A Selena
está me esperando. Preciso olhar bastante para ela enquanto posso.
— Counterinsurgence amanhã? — o Joseph
perguntou.
— Com certeza. — O Nicholas deu meia-volta e
subiu as escadas correndo, pulando os degraus de dois em dois.
Joseph Jonas se virou para mim:
— Literalmente.
— Literalmente? — perguntei.
— Estamos literalmente no coração de Jesus…
Achei que estivéssemos no porão de uma igreja, mas estamos literalmente no
coração de Jesus.
— Alguém deveria contar isso para Jesus —
falei. — Quer dizer, deve ser perigoso ficar guardando crianças com câncer no
coração.
— Eu mesmo poderia contar — o Joseph falou —,
mas, para minha infelicidade, estou literalmente enterrado no coração Dele,
então Ele não vai conseguir me ouvir.
Eu ri. O Joseph balançou a cabeça, me olhando.
— O que foi? — perguntei.
— Nada — ele respondeu.
— Por que você está olhando para mim desse
jeito?
Ele deu um sorrisinho.
— Porque você é bonita. Eu gosto de olhar para
pessoas bonitas, e faz algum tempo que resolvi não me negar os prazeres mais
simples da existência humana. — Um silêncio constrangedor se seguiu.
Mas o Joseph quebrou o gelo.
— Quer dizer, principalmente porque, como você
deliciosamente observou, tudo isso vai acabar em total esquecimento, e tal…
Eu meio que engasguei, ou suspirei, ou soltei
o ar de um jeito que pareceu quase uma tosse, e disse:
— Eu não sou boni…
— Você é tipo uma Natalie Portman milenar.
Tipo a Natalie Portman em V de Vingança.
— Não vi esse filme — falei.
— Sério? — ele perguntou. — Garota linda,
rejeita a autoridade e não consegue resistir a um cara que ela sabe que vai ser
um problema. É sua autobiografia, pelo menos até aqui, pelo que posso ver.
Cada sílaba que saía da boca dele flertava
comigo.
O.k., ele meio que me deixava excitada. Eu nem
sabia que garotos podiam me deixar excitada — pelo menos não, tipo, na vida
real.
Uma menina mais nova passou por nós.
— E aí, Noah. Tudo bem? — ele perguntou.
Ela sorriu e balbuciou:
— Oi, Joseph.
— Gente do Memorial — ele explicou.
Memorial era o grande hospital de pesquisas.
— Qual você frequenta?
— O Hospital Pediátrico — respondi, meu tom de
voz mais baixo do que eu pretendia. Ele fez que sim com a cabeça. A conversa
parecia ter chegado ao fim. — Bem — falei, mexendo a cabeça vagamente na
direção dos degraus que levavam para fora do Coração Literal de Jesus. Inclinei
o carrinho do oxigênio para apoiá-lo nas rodinhas e comecei a andar. O Joseph
foi mancando ao meu lado. — Então, a gente se vê na próxima, talvez? —
perguntei.
— Você deveria assistir — ele falou. — Ao V de
Vingança, quero dizer.
— Tá. Vou ver se acho para assistir.
— Não. Comigo. Na minha casa — ele disse. —
Agora.
Parei de andar.
— Eu mal conheço você, Joseph Jonas. Você pode
muito bem ser o assassino do machado.
Ele concordou.
—
Tem toda razão, Demetria Lovato.
E passou por mim, os ombros dando forma à
camisa polo verde, as costas retas, os passos da direita um pouco mais
marcantes enquanto andava firme e confiante apoiado no que eu determinei ser
uma prótese. Às vezes o osteossarcoma leva um dos membros só para dar uma
sondada em você. Depois, se gostar, leva o restante.
Eu o segui escada acima, devagar, ficando para
trás. Degraus não são o forte dos meus pulmões.
Aí fomos do coração de Jesus até o
estacionamento, o frescor da brisa da primavera na medida certa, a luz do fim
de tarde divina em sua nocividade.
Mamãe não tinha chegado ainda, o que era
estranho, porque ela quase sempre estava lá esperando por mim. Olhei em volta e
vi que uma garota alta e boazuda imprensava o Nicholas na parede de pedra da
igreja, beijando o menino de um jeito quase agressivo. Estávamos tão perto que
eu podia escutar os ruídos estranhos das duas bocas grudadas, e ouvi o Nicholas
dizendo “sempre”, e ela respondendo com “sempre” também.
O Joseph apareceu de repente ao meu lado e
sussurrou:
— Eles são grandes adeptos de demonstrar afeto
em público.
— Qual é a do “sempre”?
O ruído da troca de saliva aumentou de
intensidade.
— “Sempre” é o lema deles. Sempre vão se amar,
e tal. Pelos meus cálculos, e sendo bastante conservador, eles devem ter
trocado quatro milhões de mensagens de texto com a palavra sempre no ano
passado.
Mais dois carros chegaram, levando embora o
Michael e a Noah. Aí sobramos só o Joseph e eu, observando o Nicholas e a
Selena, que continuavam frenéticos, como se não estivessem encostados na parede
de um local de oração. Ele pôs a mão no peito dela, por cima da blusa, e
apalpou o mamilo, a mão imóvel enquanto os dedos se mexiam. Fiquei me
perguntando se aquilo seria gostoso. Não parecia, mas resolvi perdoar o Nicholas
levando em conta o fato de que ele estava para ficar cego. Os sentidos devem
aproveitar enquanto ainda há apetite, e tal.
— Imagine a última ida de carro até o hospital
— falei, baixinho. — A última vez que você vai dirigir um carro.
Sem me olhar, o Joseph disse:
— Você está atrapalhando a minha vibe aqui, Demetria
Lovato. Estou tentando observar o amor adolescente em sua esplendorosa
estranheza.
— Acho que ele está machucando o peito dela —
comentei.
— É. É difícil saber ao certo se ele está
tentando excitar a menina ou fazer um exame de mama.
Aí o Joseph colocou a mão no bolso e tirou de
lá, por incrível que pareça, um maço de cigarros. Levantou a tampa da caixinha
e colocou um cigarro na boca.
— Isso é sério? — perguntei. — Você acha isso
legal? Ai, meu Deus, você acabou de estragar a coisa toda.
— Que coisa toda? — ele perguntou, virando
para mim.
O cigarro pendia apagado da boca, do canto que
não sorria.
— A coisa toda em que um garoto que não é
pouco atraente ou pouco inteligente ou, aparentemente, de forma alguma pouco
tolerável me encara e chama minha atenção para utilizações incorretas da
literalidade e me compara a atrizes e me convida para ver um filme na casa
dele. Mas é claro que sempre tem uma hamartia e a sua é que, ai, meu Deus,
mesmo você TENDO TIDO UM RAIO DE UM CÂNCER ainda dá dinheiro para uma empresa
em troca da chance de ter MAIS CÂNCER. Ai, meu Deus. Deixe-me só dizer para
você como é não conseguir respirar? É UM INFERNO. Totalmente decepcionante.
Totalmente.
— Uma hamartia? — ele perguntou, o cigarro
ainda na boca.
Aquilo deixava sua mandíbula contraída. E a
linha da mandíbula dele, infelizmente, era tudo…
— Uma falta trágica — expliquei, dando as
costas para ele.
Dei um passo na direção do meio-fio, deixando
o Joseph Jonas para trás, e foi então que ouvi um carro dando a partida mais
adiante na rua. Era a mamãe. Ela tinha ficado ali, esperando que eu, tipo,
fizesse amigos ou coisa assim.
Senti um misto de decepção e raiva crescendo
em mim. Nem sei direito que sentimento era aquele, sério, só que havia muito
dele, e eu queria dar um soco na cara do Joseph Jonas e ao mesmo tempo trocar
meus pulmões por outros que não fossem péssimos. Eu estava de pé bem na
pontinha do meio-fio com meu All-Star Chuck Taylors, o cilindro de oxigênio no
carrinho ao meu lado parecendo aquela bola de ferro que fica presa com uma
corrente no tornozelo de um prisioneiro, e na hora que minha mãe ia encostando
o carro senti a mão dele pegar a minha.
Puxei a mão, mas me virei para ele.
— Eles não matam se você não acender — disse
ele quando mamãe parou junto ao meio-fio. — E eu nunca acendi nenhum. É uma
metáfora. Tipo: você coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela
o poder de completar o serviço.
— É uma metáfora — falei, hesitante.
Mamãe esperava, quieta.
— É uma metáfora — ele repetiu.
— Você determina seu comportamento com base
nas ressonâncias metafóricas…
— Ah, é. — Ele sorriu. O sorriso largo, meio
bobo e sincero. — Sou um grande adepto da metáfora, Demetria Lovato.
Eu me virei para o carro. Dei uma batidinha na
janela. Que se abriu.
— Vou ver um filme com o Joseph Jonas — falei.
— Grave, por favor, os próximos episódios da maratona do ANTM para mim.
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E aí?! O que acharam?
Comentem que eu posto o segundo capítulo amanhã :D
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