quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Capítulo I


The Fault In Our Stars

Faltando pouco para eu completar meu décimo sétimo ano de vida minha mãe resolveu que eu estava deprimida, provavelmente porque quase nunca saía de casa, passava horas na cama, lia o mesmo livro várias vezes, raramente comia e dedicava grande parte do meu abundante tempo livre pensando na morte.
Sempre que você lê um folheto, uma página da Internet ou sei lá o que mais sobre câncer, a depressão aparece na lista dos efeitos colaterais. Só que, na verdade, ela não é um efeito colateral do câncer. É um efeito colateral de se estar morrendo. (O câncer também é um efeito colateral de se estar morrendo. Quase tudo é, na verdade.) Mas a mamãe achava que eu precisava de tratamento, então me levou ao meu médico comum, o Jim, que concordou que eu, de fato, estava nadando numa depressão paralisante e totalmente clínica e, portanto, ele ia trocar meus remédios e, além disso, eu teria que frequentar um Grupo de Apoio uma vez por semana.
O grupo era formado por um elenco rotativo de pessoas com várias questões psicológicas desencadeadas pelos tumores. A razão de o elenco ser rotativo? Efeito colateral de se estar morrendo.
O Grupo de Apoio era megadeprimente, óbvio. A reunião acontecia toda quarta-feira no porão de uma igreja episcopal — uma construção no formato de cruz com paredes de pedra. Nós nos sentávamos em uma roda bem no meio da cruz: onde os dois pedaços de madeira um dia se cruzaram, onde esteve o coração de Jesus.
Sabia disso porque o Kevin, Líder do Grupo de Apoio e o único naquele lugar com mais de dezoito anos, falava sobre o coração de Jesus todo raio de reunião, sobre como nós, jovens sobreviventes do câncer, estávamos sentados bem no sagrado coração de Cristo, e tal.
Bem, era assim que acontecia no coração do Senhor: os seis ou sete ou dez de nós chegávamos lá a pé/de cadeira de rodas, comíamos um pouco daqueles biscoitos velhos com limonada, sentávamos na Roda da Esperança e ouvíamos o Kevin contar pela milésima vez a história ultradeprimente e superinfeliz da sua vida — sobre ter tido câncer nas bolas e acharem que ele ia morrer, mas não morreu, e ali estava, já adulto, no porão de uma igreja na 137ª cidade mais linda dos Estados Unidos, divorciado, viciado em videogames, quase sem amigos, levando uma vida sem graça explorando seu fantástico passado com câncer, ralando para terminar um mestrado que não vai melhorar sua perspectiva de progresso na carreira e esperando, como todos nós, que a espada de Dâmocles traga para ele o alívio do qual escapou muitos anos atrás, quando o câncer levou seus testículos e lhe deixou algo que só a alma mais generosa poderia chamar de vida.
E VOCÊS TAMBÉM PODEM TER ESSA SORTE!
Aí nós nos apresentávamos: Nome. Idade. Diagnóstico. E como estávamos no dia. Meu nome é Demetria, dizia na minha vez. Dezesseis. Tireoide, originalmente, mas com uma respeitável colônia satélite há muito tempo instalada nos pulmões. E está tudo bem comigo.
Depois do último da roda, o Kevin sempre perguntava se alguém queria se abrir. E aí começava a punheta grupal de apoio mútuo: todo mundo falando de lutar, combater, vencer, remitir e examinar. Para não ser injusta com o Kevin, ele nos deixava falar da morte. Mas a maioria ali não estava morrendo. A maioria viveria até a idade adulta. Como o Kevin.
(Isso significa que havia muita competição, com todo mundo querendo vencer não só o câncer, mas também as outras pessoas da roda. Tipo, eu sei que não faz o menor sentido, mas quando você ouve que tem, por exemplo, vinte por cento de chance de viver cinco anos, e faz as contas e conclui que isso é uma chance em cinco… você olha em volta e pensa, como qualquer pessoa saudável faria: eu preciso durar mais que quatro desses desgraçados.)
A única coisa que salvava no Grupo de Apoio era um menino chamado Nicholas. E seu problema eram os olhos. Ele teve um tipo inacreditavelmente improvável de câncer ocular. Um olho foi extraído quando ele era pequeno, e agora Nicholas usava um par de óculos fundo de garrafa que fazia os olhos (tanto o de verdade quanto o de vidro) parecerem sobrenaturalmente grandes, como se a cabeça inteira fosse basicamente o globo ocular de mentira e o de verdade olhando para você. Pelo que pude entender das raras vezes que ele se abriu para o grupo, uma recorrência colocou o olho que resta em perigo mortal.
O Nicholas e eu nos comunicávamos quase exclusivamente por meio de suspiros. Cada vez que alguém falava de dietas anticâncer, de cheirar cartilagem de tubarão em pó ou sei lá, ele me olhava e suspirava de leve. Eu balançava a cabeça em um movimento microscópico e dava um suspiro em resposta.

* * *

Então o Grupo de Apoio deu o que tinha de dar, e depois de algumas semanas eu passei a surtar quando tocavam no assunto. Na verdade, na quarta-feira em que conheci o Joseph Jonas, tinha feito de tudo para me livrar da ida à sessão de grupo enquanto estava sentada no sofá com a mamãe, no meio da terceira parte da maratona de doze horas da temporada anterior de America’s Next Top Model, que, confesso, já tinha visto, mas mesmo assim…
Eu: “Eu me recuso a ir ao Grupo de Apoio”.
Mamãe: “Um dos sintomas da depressão é a falta de interesse em participar de atividades”.
Eu: “Por favor, mãe, deixe eu ficar vendo America’s Next Top Model. Isso é uma atividade”.
Mamãe: “Televisão é passividade.”
Eu: “SAAAAAAACO.”
Mamãe: “Demetria, você merece uma vida.”
Aquilo me fez calar a boca, mesmo não tendo conseguido entender o que a ida ao Grupo de Apoio tinha a ver com a definição de vida. De qualquer jeito, concordei em ir — depois de negociar o direito de gravar o episódio e meio do ANTM que eu ia perder. Ia ao Grupo de Apoio pelo mesmo motivo que uma vez deixei enfermeiras com um ano e meio de faculdade me envenenarem com substâncias químicas de nomes exóticos: queria fazer meus pais felizes. Só tem uma coisa pior nesse mundo que bater as botas aos dezesseis anos por causa de um câncer: ter um filho que bate as botas por causa de um câncer.

* * *

Mamãe parou na entrada de carros circular atrás da igreja às 4h56. Fingi que estava ajeitando o cilindro de oxigênio por um segundo só para ganhar tempo.
— Quer que eu o carregue até lá dentro?
— Não, está tudo bem — respondi.
O cilindro verde só pesava uns poucos quilos e eu tinha um carrinho de aço para transportá-lo. Aquilo me fornecia dois litros de oxigênio por minuto através de uma cânula, um tubo transparente que se dividia bem embaixo do meu pescoço, passava por trás das orelhas e se juntava de novo nas narinas. A geringonça era necessária porque meus pulmões faziam um péssimo trabalho como pulmões.
— Eu te amo — ela disse, enquanto eu saltava do carro.
— Eu também, mãe. Vejo você às seis.
— Faça amigos! — ela gritou pela janela abaixada enquanto eu me distanciava. Não quis usar o elevador porque isso é o tipo de coisa que você faz nos seus “Últimos dias no Grupo de Apoio”, então fui de escada. Peguei um biscoito, coloquei um pouco de limonada num copo descartável e me virei.
Um garoto olhava fixamente para mim.
Eu tinha quase certeza de nunca ter visto aquele cara na vida. Alto e magro, mas musculoso, ele fazia a cadeira de plástico, daquelas usadas em sala de aula, parecer minúscula. Cabelo castanho, ondulado e meio curto. Parecia ter a minha idade, talvez um ano mais velho, e estava sentado com o cóccix na beirada da cadeira, uma postura péssima, com uma das mãos enfiada até a metade no bolso da calça jeans escura.
Desviei o olhar, repentinamente consciente da quantidade infinita de coisas erradas em mim. Eu estava com uma calça jeans velha, que algum dia foi justa mas que agora ficava folgada nos lugares mais estranhos, e uma camiseta de malha amarela com o nome de uma banda da qual eu nem gostava mais. Tinha também meu cabelo: Recém-cortado um pouco abaixo dos ombros, e eu nem tive a preocupação de dar uma escovada nele. Além disso, minhas bochechas estavam ridiculamente redondas, como as de um esquilo, efeito colateral do tratamento. Eu era uma pessoa de proporções normais com um balão no lugar da cabeça. Isso sem falar do inchaço nos tornozelos. Mesmo assim, dei uma espiada rápida e os olhos dele ainda estavam grudados em mim.
Foi então que entendi o verdadeiro sentido de aquilo ser chamado de contato visual.
Andei até a roda e me sentei ao lado do Nicholas, a duas cadeiras do garoto. Olhei de novo, rapidamente. Ele ainda me observava.
Na boa, vou logo dizendo: ele era um gato. Se um cara que não é gato encara você sem parar, isso é, na melhor das hipóteses, esquisito, e na pior, algum tipo de assédio. Mas se é um cara gato… na boa…
Peguei meu celular e apertei uma tecla para ver as horas. Os lugares na roda foram ocupados por azarados de doze a dezoito anos e, então, o Kevin deu início aos trabalhos com a prece da serenidade: Senhor, dê-me serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar as que posso, e sabedoria para reconhecer a diferença entre elas. O garoto ainda estava me encarando. Senti meu rosto ficar vermelho.
Por fim, resolvi que a melhor estratégia seria também olhar fixamente para ele. Afinal de contas, os garotos não detêm o monopólio da Atividade Encaradora. Foquei nele enquanto o Kevin explicava pela milésima vez sua ausência de bolas etc., e aquilo logo virou um Jogo do Sério. Depois de um tempo o garoto sorriu e, até que enfim, desviou os olhos verdes. Quando me olhou de novo, arqueei as sobrancelhas como que dizendo: ganhei.
Ele deu de ombros. O Kevin prosseguiu e, enfim, a hora das apresentações chegou.
— Nicholas, talvez você queira ser o primeiro hoje. Sei que está enfrentando um grande desafio no momento.
— É — o Nicholas disse. — Meu nome é Nicholas. Tenho dezessete anos. Parece que vou precisar ser operado em duas semanas, depois vou ficar cego. Não estou reclamando nem nada porque sei que poderia ser pior, como no caso de alguns aqui, mas, quer dizer, ficar cego é, tipo, uma droga. Ter uma namorada me ajuda. Além de amigos como o Joseph. — Ele balançou a cabeça na direção do garoto, que agora tinha nome. — Pois é… — continuou. Ele estava olhando para as mãos, os dedos cruzados parecendo o topo de uma tenda indígena. — Não há nada que se possa fazer para mudar isso.
— Estamos do seu lado, Nicholas — o Kevin falou. — Vamos lá, pessoal, digam para o Nicholas ouvir.
E então todos nós, em uníssono, dissemos:
— Estamos do seu lado, Nicholas.
O Michael foi o próximo. Ele tinha doze anos. Sofria de leucemia. Desde que se entendia por gente. E estava bem. (Pelo menos foi o que disse. Ele desceu de elevador.)
A Lida tinha dezesseis anos e era bonita o suficiente para ser alvo do olhar do cara gato. Era frequentadora assídua das reuniões — estava em um longo período de remissão de um câncer de apêndice, que eu nem sabia que existia. Ela disse — como em todas as outras vezes que eu fui às sessões do grupo — que se sentia forte, o que para mim, com aquela chuvinha de oxigênio fazendo cosquinhas no nariz, era o mesmo que tirar onda. Outros cinco falaram antes do cara gato. Ele deu um sorrisinho quando chegou sua vez. A voz era baixa, aveludada e supersensual.
— Meu nome é Joseph Jonas — disse. — Tenho dezessete anos. Tive uma pitada de osteossarcoma um ano e meio atrás, mas só estou aqui hoje porque o Nicholas pediu.
— E como está se sentindo? — o Kevin perguntou.
— Ah, maravilha. — Joseph Jonas deu um sorrisinho. — Estou numa montanha-russa que só vai para cima, amigão.
Quando chegou minha vez, eu disse:
— Meu nome é Demetria. Tenho dezesseis anos. Tireoide com metástase nos pulmões. Estou bem.
A hora passou rápido. Lutas foram recontadas, batalhas ganhas em guerras que com certeza seriam perdidas; a esperança virou tábua de salvação; famílias foram celebradas e recriminadas; foi consenso que os amigos não entendiam nada; lágrimas foram compartilhadas, e consolo, oferecido.
Nem eu nem o Joseph Jonas tínhamos soltado uma palavra, até que o Kevin disse:
— Joseph, talvez você queira falar de seus medos para o grupo.
— Meus medos?
— É.
— Eu tenho medo de ser esquecido — disse ele de bate-pronto. — Tenho medo disso como um cego tem medo de escuro.
— Calma aí… — disse Nicholas, abrindo um sorriso.
— Estou sendo insensível? — perguntou o Joseph. — Eu posso ser bem cego quando o assunto são os sentimentos das outras pessoas.
O Nicholas estava rindo, mas o Kevin levantou um dedo, repreendendo-o.
— Por favor, Joseph. Voltemos a você e às suas questões. Disse que tem medo de ser esquecido?
— É — respondeu o Joseph.
O Kevin pareceu meio perdido.
— Alguém, ahn, alguém gostaria de fazer algum comentário?
Eu não frequentava uma escola de verdade havia três anos. Meus melhores amigos eram meus pais. Meu terceiro melhor amigo era um escritor que nem sabia que eu existia. Eu era relativamente tímida — de jeito nenhum o tipo que levanta a mão para falar. E, mesmo assim, só dessa vez, resolvi abrir o verbo. Levantei a mão, e o Kevin, a satisfação estampada na cara, disse:
— Demetria!
Eu estava, tenho certeza de que foi isso o que ele pensou, me abrindo. “Me tornando parte do grupo.”
Olhei na direção do Joseph Jonas, que me encarava. Dava quase para ver através dos olhos dele, de tão verdes.
— Vai chegar um dia — eu disse — em que todos nós vamos estar mortos. Todos nós. Vai chegar um dia em que não vai sobrar nenhum ser humano sequer para lembrar que alguém já existiu ou que nossa espécie fez qualquer coisa nesse mundo. Não vai sobrar ninguém para se lembrar de Aristóteles ou de Cleópatra, quanto mais de você. Tudo o que fizemos, construímos, escrevemos, pensamos e descobrimos vai ser esquecido e tudo isso aqui — fiz um gesto abrangente — vai ter sido inútil. Pode ser que esse dia chegue logo e pode ser que demore milhões de anos, mas, mesmo que o mundo sobreviva a uma explosão do Sol, não vamos viver para sempre. Houve um tempo antes do surgimento da consciência nos organismos vivos, e vai haver outro depois. E se a inevitabilidade do esquecimento humano preocupa você, sugiro que deixe esse assunto para lá. Deus sabe que é isso o que todo mundo faz.
Eu tinha aprendido aquilo com meu já citado terceiro melhor amigo, Peter Van Houten, o autor recluso de Uma aflição imperial — de todos os meus livros, o mais próximo de uma Bíblia. Peter Van Houten era a única pessoa que eu conhecia que parecia: (a) entender o que era estar morrendo, e (b) não ter morrido.
Assim que terminei fez-se um longo silêncio, e eu pude ver um sorriso se abrindo de um canto ao outro no rosto do Joseph — não o tipo de sorriso cafajeste do garoto tentando parecer sexy ao me encarar, mas um sorriso sincero, quase maior que a cara dele.
— Caramba! — disse ele baixinho. — Não é que você é mesmo demais?
Nós dois não falamos mais nada até o fim da reunião, quando todos se deram as mãos e o Kevin nos guiou em uma prece.
— Senhor Jesus Cristo, estamos aqui reunidos em Seu coração, literalmente em Seu coração, como sobreviventes do câncer. O Senhor e somente o Senhor nos conhece como conhecemos a nós mesmos. Nos guie pela vida e para a Luz em nossos períodos de provação. Oremos pelos olhos do Nicholas, pelo sangue do Michael e do Jamie, pelos ossos do Joseph, pelos pulmões da Demetria, pela garganta do James. Oremos para que o Senhor consiga nos curar e para que possamos sentir Seu amor e Sua paz, que excedem todo o entendimento. E nos lembremos em nossos corações daqueles que um dia conhecemos, amamos e que foram para a Sua casa: Maria, Kade, Augustos, Haley, Abigail, Angelina, Taylor, Gabriel…
A lista era grande. Tem muita gente morta no mundo. E enquanto o Kevin continuava a ladainha, lendo a relação em uma folha de papel porque era muito comprida para ser decorada, fiquei de olhos fechados, tentando elevar os pensamentos em oração, mas a maior parte do tempo imaginava o dia em que meu nome ocuparia um lugarzinho ali, bem no fim da lista, quando ninguém mais está prestando atenção.
Quando o Kevin acabou, entoamos junto aquele mantra idiota — VIVENDO O MELHOR DA NOSSA VIDA HOJE — e foi o fim da reunião. O Joseph Jonas empurrou o corpo para fora da cadeira e caminhou na minha direção. O andar dele era tão cafajeste quanto o sorriso. Ele parou na minha frente, mas manteve uma certa distância para eu poder olhá-lo nos olhos sem ter de esticar o pescoço.
— Qual é o seu nome? — ele perguntou.
— Demetria.
— Não, o nome completo.
— Ahn, Demetria Devonne Lovato.
Ele ia dizendo alguma coisa quando o Nicholas se aproximou.
— Só um instante — falou, levantando um dedo, e virou-se para o Nicholas. — Isso foi pior do que você tinha dito, na verdade.
— Eu disse que era um tédio.
— Por que você se dá o trabalho de vir aqui?
— Sei lá. Meio que ajuda…?
O Joseph inclinou o corpo achando que assim eu não conseguiria ouvi-lo.
— Ela vem sempre? — Não deu para escutar o comentário do Nicholas, mas o Joseph respondeu:
— Quer saber? — Ele pegou o Nicholas pelos ombros e deu meio passo para trás.
— Conte à Demetria da ida ao médico.
O Nicholas apoiou uma das mãos na mesa de biscoitos e virou o olho enorme para mim.
— Tá, é que eu fui ao médico hoje de manhã e estava falando para o meu cirurgião que preferiria ser surdo a ser cego. E ele disse: “Não é assim que as coisas funcionam.” Aí eu falei, tipo: “É, eu sei que não é assim; só estou dizendo que preferiria ser surdo a ser cego se pudesse escolher, mas sei que não posso.” E ele: “Bem, a boa notícia é que você não vai ficar surdo.” Eu disse: “Obrigado por esclarecer que meu câncer no olho não vai me deixar surdo. É muita sorte minha ter um gênio como você me operando.”
— Ele é mesmo um gênio — falei. — Vou tentar arrumar um câncer qualquer no olho para poder conhecer esse cara.
— Boa sorte. Então, tá. Já vou indo. A Selena está me esperando. Preciso olhar bastante para ela enquanto posso.
— Counterinsurgence amanhã? — o Joseph perguntou.
— Com certeza. — O Nicholas deu meia-volta e subiu as escadas correndo, pulando os degraus de dois em dois.
Joseph Jonas se virou para mim:
— Literalmente.
— Literalmente? — perguntei.
— Estamos literalmente no coração de Jesus… Achei que estivéssemos no porão de uma igreja, mas estamos literalmente no coração de Jesus.
— Alguém deveria contar isso para Jesus — falei. — Quer dizer, deve ser perigoso ficar guardando crianças com câncer no coração.
— Eu mesmo poderia contar — o Joseph falou —, mas, para minha infelicidade, estou literalmente enterrado no coração Dele, então Ele não vai conseguir me ouvir.
Eu ri. O Joseph balançou a cabeça, me olhando.
— O que foi? — perguntei.
— Nada — ele respondeu.
— Por que você está olhando para mim desse jeito?
Ele deu um sorrisinho.
— Porque você é bonita. Eu gosto de olhar para pessoas bonitas, e faz algum tempo que resolvi não me negar os prazeres mais simples da existência humana. — Um silêncio constrangedor se seguiu.
Mas o Joseph quebrou o gelo.
— Quer dizer, principalmente porque, como você deliciosamente observou, tudo isso vai acabar em total esquecimento, e tal…
Eu meio que engasguei, ou suspirei, ou soltei o ar de um jeito que pareceu quase uma tosse, e disse:
— Eu não sou boni…
— Você é tipo uma Natalie Portman milenar. Tipo a Natalie Portman em V de Vingança.
— Não vi esse filme — falei.
— Sério? — ele perguntou. — Garota linda, rejeita a autoridade e não consegue resistir a um cara que ela sabe que vai ser um problema. É sua autobiografia, pelo menos até aqui, pelo que posso ver.
Cada sílaba que saía da boca dele flertava comigo.
O.k., ele meio que me deixava excitada. Eu nem sabia que garotos podiam me deixar excitada — pelo menos não, tipo, na vida real.
Uma menina mais nova passou por nós.
— E aí, Noah. Tudo bem? — ele perguntou.
Ela sorriu e balbuciou:
— Oi, Joseph.
— Gente do Memorial — ele explicou.
Memorial era o grande hospital de pesquisas.
— Qual você frequenta?
— O Hospital Pediátrico — respondi, meu tom de voz mais baixo do que eu pretendia. Ele fez que sim com a cabeça. A conversa parecia ter chegado ao fim. — Bem — falei, mexendo a cabeça vagamente na direção dos degraus que levavam para fora do Coração Literal de Jesus. Inclinei o carrinho do oxigênio para apoiá-lo nas rodinhas e comecei a andar. O Joseph foi mancando ao meu lado. — Então, a gente se vê na próxima, talvez? — perguntei.
— Você deveria assistir — ele falou. — Ao V de Vingança, quero dizer.
— Tá. Vou ver se acho para assistir.
— Não. Comigo. Na minha casa — ele disse. — Agora.
Parei de andar.
— Eu mal conheço você, Joseph Jonas. Você pode muito bem ser o assassino do machado.
Ele concordou.
— Tem toda razão, Demetria Lovato.
E passou por mim, os ombros dando forma à camisa polo verde, as costas retas, os passos da direita um pouco mais marcantes enquanto andava firme e confiante apoiado no que eu determinei ser uma prótese. Às vezes o osteossarcoma leva um dos membros só para dar uma sondada em você. Depois, se gostar, leva o restante.
Eu o segui escada acima, devagar, ficando para trás. Degraus não são o forte dos meus pulmões.
Aí fomos do coração de Jesus até o estacionamento, o frescor da brisa da primavera na medida certa, a luz do fim de tarde divina em sua nocividade.
Mamãe não tinha chegado ainda, o que era estranho, porque ela quase sempre estava lá esperando por mim. Olhei em volta e vi que uma garota alta e boazuda imprensava o Nicholas na parede de pedra da igreja, beijando o menino de um jeito quase agressivo. Estávamos tão perto que eu podia escutar os ruídos estranhos das duas bocas grudadas, e ouvi o Nicholas dizendo “sempre”, e ela respondendo com “sempre” também.
O Joseph apareceu de repente ao meu lado e sussurrou:
— Eles são grandes adeptos de demonstrar afeto em público.
— Qual é a do “sempre”?
O ruído da troca de saliva aumentou de intensidade.
— “Sempre” é o lema deles. Sempre vão se amar, e tal. Pelos meus cálculos, e sendo bastante conservador, eles devem ter trocado quatro milhões de mensagens de texto com a palavra sempre no ano passado.
Mais dois carros chegaram, levando embora o Michael e a Noah. Aí sobramos só o Joseph e eu, observando o Nicholas e a Selena, que continuavam frenéticos, como se não estivessem encostados na parede de um local de oração. Ele pôs a mão no peito dela, por cima da blusa, e apalpou o mamilo, a mão imóvel enquanto os dedos se mexiam. Fiquei me perguntando se aquilo seria gostoso. Não parecia, mas resolvi perdoar o Nicholas levando em conta o fato de que ele estava para ficar cego. Os sentidos devem aproveitar enquanto ainda há apetite, e tal.
— Imagine a última ida de carro até o hospital — falei, baixinho. — A última vez que você vai dirigir um carro.
Sem me olhar, o Joseph disse:
— Você está atrapalhando a minha vibe aqui, Demetria Lovato. Estou tentando observar o amor adolescente em sua esplendorosa estranheza.
— Acho que ele está machucando o peito dela — comentei.
— É. É difícil saber ao certo se ele está tentando excitar a menina ou fazer um exame de mama.
Aí o Joseph colocou a mão no bolso e tirou de lá, por incrível que pareça, um maço de cigarros. Levantou a tampa da caixinha e colocou um cigarro na boca.
— Isso é sério? — perguntei. — Você acha isso legal? Ai, meu Deus, você acabou de estragar a coisa toda.
— Que coisa toda? — ele perguntou, virando para mim.
O cigarro pendia apagado da boca, do canto que não sorria.
— A coisa toda em que um garoto que não é pouco atraente ou pouco inteligente ou, aparentemente, de forma alguma pouco tolerável me encara e chama minha atenção para utilizações incorretas da literalidade e me compara a atrizes e me convida para ver um filme na casa dele. Mas é claro que sempre tem uma hamartia e a sua é que, ai, meu Deus, mesmo você TENDO TIDO UM RAIO DE UM CÂNCER ainda dá dinheiro para uma empresa em troca da chance de ter MAIS CÂNCER. Ai, meu Deus. Deixe-me só dizer para você como é não conseguir respirar? É UM INFERNO. Totalmente decepcionante. Totalmente.
— Uma hamartia? — ele perguntou, o cigarro ainda na boca.
Aquilo deixava sua mandíbula contraída. E a linha da mandíbula dele, infelizmente, era tudo…
— Uma falta trágica — expliquei, dando as costas para ele.
Dei um passo na direção do meio-fio, deixando o Joseph Jonas para trás, e foi então que ouvi um carro dando a partida mais adiante na rua. Era a mamãe. Ela tinha ficado ali, esperando que eu, tipo, fizesse amigos ou coisa assim.
Senti um misto de decepção e raiva crescendo em mim. Nem sei direito que sentimento era aquele, sério, só que havia muito dele, e eu queria dar um soco na cara do Joseph Jonas e ao mesmo tempo trocar meus pulmões por outros que não fossem péssimos. Eu estava de pé bem na pontinha do meio-fio com meu All-Star Chuck Taylors, o cilindro de oxigênio no carrinho ao meu lado parecendo aquela bola de ferro que fica presa com uma corrente no tornozelo de um prisioneiro, e na hora que minha mãe ia encostando o carro senti a mão dele pegar a minha.
Puxei a mão, mas me virei para ele.
— Eles não matam se você não acender — disse ele quando mamãe parou junto ao meio-fio. — E eu nunca acendi nenhum. É uma metáfora. Tipo: você coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela o poder de completar o serviço.
— É uma metáfora — falei, hesitante.
Mamãe esperava, quieta.
— É uma metáfora — ele repetiu.
— Você determina seu comportamento com base nas ressonâncias metafóricas…
— Ah, é. — Ele sorriu. O sorriso largo, meio bobo e sincero. — Sou um grande adepto da metáfora, Demetria Lovato.
Eu me virei para o carro. Dei uma batidinha na janela. Que se abriu.
— Vou ver um filme com o Joseph Jonas — falei. — Grave, por favor, os próximos episódios da maratona do ANTM para mim. 

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E aí?! O que acharam? 
Comentem que eu posto o segundo capítulo amanhã :D

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