The Fault In Our Stars
Fiquei acordada até bem tarde lendo O preço do
alvorecer. (Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não
era nenhum Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma
quinta-feira. Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um
dos pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até
tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se
ajoelhar ao lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio
retangular, que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe.
Mamãe me conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi
aquele menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O
livro, Demetria. Estou falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela
falou, as sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse
exclusivamente de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria
valendo a pena — continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não
vem ao caso. Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora.
Além disso, hoje é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março —
ela disse aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber
que dia é hoje — gritei também.
— DEMETRIA! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO
ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente
adepta da prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O
DIA DA ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA
OS NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já
que é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão
especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir
ao maior número possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o
recorde mundial nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira
acima da minha cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde,
tipo, um ano de idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os
bichos de pelúcia nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Miley ou
com o Josh? — Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem
de texto para a Miley e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa
depois da aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um
programa legal? — ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou
não é um programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Miley, tomei banho,
vesti uma roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era
Literatura Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala
tipo anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Miley
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às
3h32?
A Miley possuía uma vida social concorrida,
organizada visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para
a livraria ao lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto
o Réquiem para Mayhem, os volumes seguintes da série “O preço do alvorecer”.
Depois fui andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero.
Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que
brincavam num navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam
um túnel repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o que me fez
lembrar do Joseph Jonas e de seus lances livres carregados de existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação,
sozinha, sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um
sanduíche de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos,
provavelmente. Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Miley passando,
confiante e decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando
levantei o braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e
veio andando na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia
até o joelho, perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa
parte do rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou
para me abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado.
— Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho
nem se incomodava. Acontece que a Miley era uma socialite britânica de vinte e
cinco anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em
Indianápolis. Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que
sim com a cabeça e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. —
Eu adoraria que você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos
meninos ficaram totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou
cinco garotos que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino
fundamental, mas não consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Liam Hemsworth já faz
algum tempo — ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas
chega de falar de mim. Quais são as novidades no universo Demetria?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada,
sorrindo. — Então você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma
outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo
com um garoto também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só
porque sabia que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos
bons modos e baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o
interesse de um garoto causaria surpresa e espanto na Miley. Mas não tinha
muito do que me gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou,
apontando para o livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que
curtindo sci-fi agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os
modelos, a Miley ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: “Essas
ficariam lindas em você”, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava
sandálias porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões
eram compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim.
Então, quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de
pele, a Miley reagiu com:
— É, mas… — O “mas” querendo dizer “mas eles
vão deixar meus dedos medonhos à mostra”.
— Miley, você é a única pessoa que eu conheço
que tem dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê
não é exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses
aqui? — Segurou um par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se mencionar
a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você deveria
experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para
ter o que comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de
sapatos e fiquei observando a Miley serpenteando pelos corredores da loja,
escolhendo calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas
ao xadrez profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da
bolsa e ler um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha
parte, então fiquei só olhando a Miley. De vez em quando ela ia até onde eu
estava, carregando algum sapato fechado, e perguntava: “Esse?”, e eu tentava
fazer algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou
três pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Starbucks agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade —
falei. — Estou meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso
vê-la mais vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas
bochechas e bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me
buscar às seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou
no estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade
perpétua dela às vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da
Miley. De verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em tempo
integral com meus colegas de turma, era como se uma distância intransponível
tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da escola queriam me
ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo que não era
possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor
e do cansaço, como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Miley ou
com algum dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como
uma pessoa normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem
agir como pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante
que vem lá de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de
todo. Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires
irlandeses, chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um
canto do shopping que nem mesmo a Miley frequentaria, e comecei a ler o
Alvoradas à meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver
de quase 1:1, e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer.
Gostava do Sargento Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito “técnica”,
mas o que eu gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam
de acontecer. Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem
para salvar. Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu
não lia uma série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de
novo numa ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à
meia-noite as coisas começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem,
quando ele foi atingido dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém
(loira, norte-americana) que estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de
leitora, não me desesperei. O esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam
ser — e seriam — feitas continuações da história estrelando seus companheiros
de grupo: o recruta Manny Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma
menininha de tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me
dão oxigênio e me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Madison — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava
tudo bem mesmo.
E quando a Madison perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no
nariz e respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela
comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar
minha cânula para você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei
toda a atenção na minha respiração enquanto Madison me devolvia os tubos. Dei
uma limpadinha básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas
e enfiei o cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela
disse.
— De nada.
— Madison — a mãe falou de novo, e dessa vez
eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max
Mayhem se lamentava por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas
continuei pensando na menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Miley,
acho, era que conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer
tentativas de simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava
óbvio que todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha vida se
sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto talvez crianças como a
Madison, que simplesmente não sabem nada da vida como ela é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar
sozinha. Gostei de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai,
peraí, ele não vai sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)Capítulo IV
Deitei cedo aquela noite, depois de trocar de
roupa, colocar um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha
cama de casal enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o
meu preferido. Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe
de um olho só — uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida
típica de classe média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a
Anna é diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque
livros assim são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa
que tem o câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e
ajudar na pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade
faz com que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se
sinta amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer.
Mas, no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma
instituição de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto
narcisista, então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com
Câncer que Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos,
de um jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a
si mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas holandês que a Anna
chama de o Homem das Tulipas Holandês. O Homem das Tulipas Holandês tem muito
dinheiro e ideias bastante excêntricas a respeito de como tratar o câncer, mas
a Anna acha que esse cara pode ser um vigarista e que talvez não seja nem mesmo
holandês, e aí, no momento em que o provável holandês e a mãe dela estão
prestes a se casar, e Anna está à beira de iniciar um novo tratamento doido
envolvendo grama de trigo e pequenas doses de arsênico, o livro termina bem no
meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária,
e tal, e muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro,
mas há um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um
fim, então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.
UAI foi o único livro escrito por Peter Van
Houten, e tudo o que as pessoas pareciam saber a respeito do autor era que
depois do lançamento do livro ele se mudou dos Estados Unidos para a Holanda e
passou a viver recluso. Imaginei que ele estaria trabalhando numa continuação
da história, ambientada na Holanda — talvez a mãe da Anna e o Homem das Tulipas
Holandês tivessem se mudado para lá e estivessem tentando começar uma vida
nova. Mas já fazia dez anos que Uma aflição imperial tinha sido lançado, e
depois disso o Van Houten não publicou nenhum post num blog sequer. Eu não
poderia esperar para sempre.
Enquanto lia o livro aquela noite, de vez em
quando me distraía ao imaginar o Joseph Jonas lendo as mesmas palavras que eu.
Será que estava gostando, ou tinha parado no meio por achar o livro
pretensioso? Aí me lembrei da promessa que fiz de ligar para ele assim que
terminasse O preço do alvorecer, então peguei o número do telefone na primeira
página do livro e mandei um torpedo para ele.
Opinião sobre O preço do alvorecer: muitos corpos. Quantidade
insuficiente de adjetivos. Como vai o UAI?
Ele respondeu um minuto depois:
Se lembro bem, você prometeu me LIGAR quando terminasse de ler o
livro, e não me mandar um SMS.
Aí eu liguei.
— Demetria Lovato — ele disse ao atender.
— Você leu tudo?
— Não acabei ainda. O livro tem seiscentas e
cinquenta e uma páginas e eu só tive vinte e quatro horas.
— Até onde chegou?
— Página quatrocentos e cinquenta e três.
— E?
— Nada de opiniões antes do fim. Mas tenho de
admitir que estou meio envergonhado de ter dado O preço do alvorecer para você
ler.
— Não fique. Já estou no Réquiem para Mayhem.
— Um acréscimo brilhante à série. Então tá, me
diga, o cara das tulipas é um vigarista ou não é? Estou tendo um mau pressentimento
com relação a ele. — Nada de estragar o suspense — eu disse.
— Se ele for qualquer coisa diferente de um
completo cavalheiro, vou arrancar os olhos dele fora.
— Então você está gostando do livro.
— Nada de opiniões antes do fim! Quando posso
ver você?
— Com certeza, não até terminar Uma aflição
imperial. — Eu adorava fazer jogo duro.
— Então é melhor eu desligar e começar a ler.
— Melhor mesmo — falei, e o telefonema acabou
ali.
Paquerar era uma coisa nova para mim, mas eu
estava gostando.
* * *
Na manhã seguinte eu tinha aula de Poesia
Norte-americana do Século XX no MCC. Uma professora bem mais velha conseguiu
falar noventa minutos da Sylvia Plath sem citar uma palavra da Sylvia Plath.
Quando saí da aula, mamãe estava parada no
meio-fio na frente do prédio.
— Você ficou esperando aqui o tempo todo? —
perguntei quando ela se apressou em me ajudar a puxar o carrinho e o cilindro
para dentro do carro.
— Não. Peguei algumas roupas na lavanderia e
fui à agência dos correios.
— E depois?
— Trouxe um livro para ler — ela disse.
— E sou eu quem precisa viver a minha vida. —
Sorri, e ela tentou sorrir também, mas havia algo estranho em seu sorriso.
Depois de alguns segundos, falei: — Que tal um cineminha?
— Boa ideia. Tem alguma coisa que você queira
ver?
— Vamos fazer o de sempre: ir até lá e
assistir ao filme que estiver para começar.
Ela fechou a porta do carro para mim e andou
até o lado do motorista. Fomos ao cinema Castleton e assistimos a um filme 3-D
sobre roedores falantes. No fim das contas, o filme até que era engraçado.
* * *
Quando saímos do cinema, vi que tinha recebido
quatro torpedos do Joseph.
Diga que meu exemplar veio com as últimas vinte páginas faltando
ou algo assim.
Demetria Lovato, diga que eu não cheguei ao fim deste livro.
AI MEU DEUS ELES SE CASAM OU NÃO AI MEU DEUS O QUE É ISSO
A Anna morreu e a história acabou, é isso? CRUEL.
Ligue para mim quando puder. Espero que esteja tudo bem.
Então, quando cheguei à minha casa, fui direto
para o quintal, me sentei numa cadeira de vime trançado meio velhinha que havia
na varanda, e liguei para ele. O dia estava nublado, como sempre está em
Indiana: o tipo de clima que deixa qualquer um deprimido. Ocupando quase toda a
área do quintal ficava o balanço que eu usava na infância, e que agora tinha
uma aparência toda alagada e patética.
O Joseph atendeu no terceiro toque.
— Demetria Lovato — falou.
— Seja bem-vindo à doce tortura que é ler Uma
aflição… — Parei ao ouvir um choro convulsivo do outro lado da linha. — Você
está bem? — perguntei.
— Ah, maravilha — o Joseph respondeu. — Mas
estou aqui com o Nicholas, que está meio descompensado. — Mais choro. Como o
grito de morte de algum animal ferido. O Joe deu atenção para o Nicholas. —
Cara. Cara. A Demetria do Grupo de Apoio ajuda ou atrapalha? Nicholas. Preste.
Atenção. Em. Mim. — Um minuto depois o Joe me perguntou: — Você pode vir até a
minha casa em mais ou menos vinte minutos?
— Claro — respondi, e desliguei.
* * *
Se desse para ir em linha reta, eu levaria só
uns cinco minutos da minha casa até a do Joseph de carro, mas não dá porque o
Holliday Park está entre nós.
Mesmo sendo uma inconveniência geográfica, eu
gostava muito do Holliday Park. Quando era pequena, costumava brincar no rio
White com o papai, e sempre havia um momento fantástico em que ele me lançava
no alto, me jogando para longe, eu esticava os braços durante o voo e papai, os
dele, e então ambos víamos que nossos braços não iriam se tocar e que ninguém
iria me pegar, o que nos assustava da melhor maneira possível, e aí eu, as
pernas agitadas no ar, mergulhava na água e depois subia para respirar, ilesa,
a corrente me levando de volta para ele enquanto eu dizia de novo, papai, de
novo.
Estacionei na entrada de carros ao lado de um
Toyota preto meio antigo modelo sedã. Imaginei que fosse o carro do Nicholas.
Levando o cilindro no carrinho atrás de mim, andei até a porta de entrada.
Bati. O pai do Joe atendeu.
— Só Demetria — exclamou. — Que bom ver você.
— O Joseph disse que eu poderia vir aqui.
— É. Ele e o Nicholas estão no porão. —
Naquele momento ouvi um choro vindo lá de baixo.
— E esse é o Nicholas — disse o pai do Joe,
balançando a cabeça devagar. — Denise precisou sair para dar uma volta de
carro. O barulho… — ele falou, divagando. — Bem, de qualquer maneira, acho que
você está sendo requisitada lá embaixo. Posso carregar seu cilindro? — ele
perguntou.
— Não precisa, estou bem. Obrigada mesmo
assim, Sr. Jonas.
— Paul — ele disse.
Eu estava meio com medo de descer. Ouvir gente
chorando convulsivamente não é um dos meus passatempos favoritos. Mas fui mesmo
assim.
— Demetria Lovato — disse o Joseph ao ouvir o
ruído dos meus passos.
— Nicholas, a Demetria do Grupo de Apoio está
descendo. Demetria, só para lembrar: o Nicholas está no meio de um surto
psicótico.
O Joseph e o Nicholas estavam sentados em
poltronas em formato de L, daquelas próprias para se jogar videogame, olhando
para cima, para uma televisão gigantesca. A tela estava dividida entre o ponto
de vista do Nicholas, à esquerda, e o do Joseph, à direita. Eles eram soldados
em guerra numa cidade contemporânea toda bombardeada. Reconheci o cenário como
sendo o de O preço do alvorecer. Ao me aproximar, o que vi não tinha nada de
anormal: só dois caras sentados, banhados pela luz de uma televisão enorme,
fingindo matar pessoas.
Só quando fiquei bem ao lado deles pude ver o
rosto do Nicholas. Lágrimas corriam num fluxo contínuo por suas bochechas
vermelhas, a cara dele uma máscara de dor. Ele olhava vidrado para a tela, sem
virar nem um instantinho na minha direção, aos prantos, o tempo todo apertando
os botões do controle.
— Está tudo bem, Demetria? — perguntou o
Joseph.
— Estou bem — respondi. — Nicholas?
Nenhuma resposta. Nem mesmo uma pista que
determinasse se ele estava ou não consciente da minha presença ali. Só lágrimas
descendo pelo rosto e encharcando a camiseta preta.
O Joseph tirou os olhos da tela só por um
instante.
— Você está bonita — ele disse. Eu usava um
vestido que ia até um pouquinho abaixo dos joelhos e que eu tinha há séculos. —
As garotas pensam que só podem usar vestidos em ocasiões formais, mas eu gosto
da mulher que diz, tipo: Estou indo ver um cara em meio a um colapso nervoso, um
cara cuja ligação com o sentido da visão é tênue, e, que se dane, vou usar esse
vestido para ele.
— E mesmo assim — falei — o Nicholas não é nem
capaz de dar uma olhada rápida em mim. Apaixonado demais pela Selena, só pode
ser. — Comentário esse que resultou num choro catastrófico.
— Este é um assunto delicado — o Joseph
explicou. — Nicholas, não sei por você, mas tenho a vaga impressão de que
estamos sendo flanqueados. — E voltou a falar comigo: — O Nicholas e a Selena
não são mais um casal, mas ele não quer falar sobre isso. Só quer chorar e
jogar Counterinsurgence 2: O preço do alvorecer.
— É justo — falei.
— Nicholas, estou começando a ficar preocupado
com a nossa localização. Caso concorde com isso, vá até aquela usina
termoelétrica, e eu cubro você.
O Nicholas correu para uma construção
indistinta enquanto o Augustus atirava enlouquecidamente com uma metralhadora,
numa série de rajadas rápidas, e corria atrás dele.
— De qualquer forma — o Joseph se dirigiu a
mim —, não vai fazer nenhum mal falar com ele. Se tiver alguma palavra sábia,
algum conselho feminino.
— Para falar a verdade, acho que a reação dele
é, provavelmente, a mais apropriada — comentei, enquanto uma rajada da
metralhadora do Nicholas matou um inimigo que havia colocado a cabeça para fora
da carcaça incendiada de um caminhão.
O Joseph fez que sim com a cabeça, ainda
olhando para a tela.
— A dor precisa ser sentida — ele disse, e
esta era uma frase do Uma aflição imperial. — Você tem certeza de que não há
ninguém atrás de nós? — ele perguntou ao Nicholas. Momentos depois, balas
traçantes começaram a zumbir acima da cabeça deles. — Ai, que droga, Nicholas —
o Joseph disse. — Não quero criticar você num momento tão sensível como esse,
mas deixou que fôssemos flanqueados, e agora não há nada entre os terroristas e
a escola.
O personagem do Nicholas partiu correndo na
direção do fogo cruzado, ziguezagueando por uma passagem estreita.
— Vocês poderiam atravessar a ponte e dar a
volta por trás — palpitei, uma tática que conhecia graças à minha leitura de O
preço do alvorecer.
O Nicholas suspirou.
— Infelizmente, a ponte já está sob o controle
dos rebeldes devido à estratégia questionável do meu parceiro desconsolado
aqui.
— Eu? — o Nicholas disse, ofegante. — Eu?! Foi
você quem sugeriu que nos metêssemos no raio da usina termoelétrica.
Joe desviou o olhar da tela por um segundo e
deu seu sorriso torto para o Joseph.
— Eu sabia que você conseguia falar, meu chapa
— ele disse. — Agora vamos salvar alguns estudantes mirins ficcionais.
Juntos, eles correram pela passagem estreita,
atirando e se escondendo nos momentos certos, até chegarem a uma escola de um
andar só e com apenas uma sala. Eles se agacharam atrás de uma parede do outro
lado da rua e acertaram os inimigos, um a um.
— Por que eles querem entrar na escola? —
perguntei.
— Pretendem fazer as crianças de reféns — o
Joseph respondeu.
Os ombros dele estavam curvados e ele apertava
os botões do controle, os antebraços rijos, as veias visíveis. O Nicholas se
inclinou para a frente, para a tela, o controle dançando nas mãos dele.
— Vai vai vai — o Joseph disse.
Ondas de terroristas continuaram surgindo, e
eles dizimaram todos, os tiros surpreendentemente precisos, como tinham de ser,
para que não acabassem atirando na escola.
— Granada! Granada! — o Joseph gritou quando
alguma coisa passou desenhando um arco pela tela, quicou no caminho que levava
à entrada da escola e então rolou, parando encostada na porta.
O Nicholas largou o controle, de tão
frustrado.
— Se esses desgraçados não conseguirem fazer
reféns, vão matar todos eles e colocar a culpa em nós.
— Nicholas, me cubra! — o Joseph falou ao
pular de trás da parede e correr na direção da escola.
O Nicholas pegou de volta o controle, sem
jeito, e começou a atirar enquanto choviam balas em cima do Joseph, que foi
atingido uma vez e depois duas, mas continuou a correr, gritando: “VOCÊS NÃO
PODEM MATAR MAX MAYHEM!”, e com uma combinação final e afobada de apertos nos
botões ele mergulhou em cima da granada, que detonou. Seu corpo desmembrado
explodiu como um gêiser e a tela ficou toda vermelha. Uma voz gutural disse:
“MISSÃO FRACASSADA”, mas o Joseph não parecia concordar com isso enquanto
sorria, vendo seus restos mortais na tela. Ele enfiou a mão no bolso, pegou um
cigarro e colocou-o entre os dentes.
— Salvamos as crianças — ele disse.
— Por enquanto — observei.
— Todo salvamento é temporário — o Joseph
retrucou. — Eu proporcionei a elas mais um minuto. Talvez esse seja o minuto
que vai proporcionar a elas mais uma hora, que é a hora que vai proporcionar a
elas mais um ano. Ninguém vai dar a elas uma quantidade infinita de tempo, Demetria
Lovato, mas a minha vida deu a elas mais um minuto. E isso não é pouco.
— Opa, peraí — eu disse. — Estamos falando de
pixels aqui.
Ele deu de ombros, como se acreditasse que o
jogo pudesse ser realmente de verdade. O Nicholas estava chorando de novo. O
Joseph se virou para ele:
— Vamos tentar completar a missão mais uma
vez, cabo?
O Nicholas fez que não. Ele se inclinou pela
frente do Joseph para olhar para mim e disse, as cordas vocais exigidas ao
extremo:
— Ela não quis deixar para depois.
— Ela não quis terminar o namoro com um cara
cego — falei.
Ele concordou, as lágrimas caindo na cadência
de um metrônomo silencioso: constante, interminável.
— Ela disse que não conseguiria lidar com isso
— o Nicholas falou. — Estou prestes a perder a visão e ela não consegue lidar
com isso.
Eu fiquei pensando no verbo lidar, e em todas
as coisas não lidáveis com que se tem de lidar.
— Sinto muito — falei.
Ele enxugou o rosto todo molhado na manga da
camisa. Por trás dos óculos, os olhos do Nicholas pareciam tão grandes que tudo
mais no rosto dele meio que desaparecia, e ficavam só aqueles dois olhos
flutuantes e incorpóreos olhando para mim: um de verdade, um de vidro.
— Isso é inaceitável — ele me disse. — Isso é
totalmente inaceitável.
— Bem, para ser honesta — falei —, quer dizer,
ela não deve mesmo conseguir lidar com isso. Você também não, mas ela não
precisa. E você, sim.
— Eu ficava dizendo “sempre” para ela hoje,
“sempre, sempre, sempre”, e ela só continuava falando ao mesmo tempo que eu,
sem me escutar, e não disse “sempre” para mim. Era como se eu não estivesse
mais ali, sabe? “Sempre” era uma promessa! Como é que você pode não cumprir uma
promessa desse jeito?
— Às vezes as pessoas não têm noção das
promessas que estão fazendo no momento em que as fazem — falei.
O Nicholas me lançou um olhar ferino.
— Tá, tem razão. Mas você cumpre a promessa
mesmo assim. Amar é isso. Amar é cumprir a promessa mesmo assim. Você não
acredita em amor verdadeiro?
Não respondi. Não tinha uma resposta para
aquela pergunta. Mas tive a sensação de que se o amor verdadeiro existisse,
aquela seria uma definição bastante boa para ele.
— Eu acredito em amor verdadeiro — o Nicholas
disse. — Eu amo a Selena. E ela fez uma promessa. Ela me prometeu para sempre.
Ele ficou de pé e deu um passo na minha
direção. Eu me levantei, achando que ele queria um abraço ou coisa assim, mas
aí ele simplesmente deu meia-volta, como se não conseguisse se lembrar de por
que tinha ficado em pé, e então o Joseph e eu vimos uma expressão de ódio tomar
conta do rosto dele.
— Nicholas — o Joe disse.
— O quê?
— Você parece um pouco… Não leve a mal o duplo
sentido, amigo, mas há algo preocupante no seu olhar.
De repente, o Nicholas começou a chutar
enlouquecidamente a poltrona do videogame, que deu uma cambalhota para trás e
foi parar perto da cama do Joe.
— E lá vamos nós — disse o Joseph. O Nicholas
seguiu a poltrona e chutou a coitada mais uma vez. — Isso aí — falou o Joseph.
— Atrás dela. Chute a poltrona até não poder mais!
O Nicholas chutou a poltrona de novo, até que
ela bateu na cama do Joe, e aí ele pegou um dos travesseiros e começou a bater
com ele na parede entre a cama e a prateleira de troféus. O Joseph olhou para
mim, o cigarro ainda na boca, e deu aquele sorrisinho típico dele.
— Eu não consigo parar de pensar naquele
livro.
— Nem me fale!
— Ele nunca disse o que acontece com os outros
personagens?
— Não — respondi. O Nicholas ainda estava
batendo na parede com o travesseiro. — Ele se mudou para Amsterdã, o que me fez
imaginar que talvez estivesse escrevendo a continuação da história, com o Homem
das Tulipas Holandês como personagem principal, mas ele não publicou nada. Ele
nunca é entrevistado. E não parece estar on-line. Já escrevi várias cartas
perguntando o que acontece com todo mundo, mas ele nunca responde. Então… é
isso.
Parei de falar porque o Joseph não parecia
mais estar prestando atenção. Em vez disso, olhava para o Nicholas com os olhos
semicerrados.
— Espere um instante — ele murmurou para mim,
andou até onde o Nicholas estava e o agarrou pelos ombros. — Cara, travesseiros
não quebram. Tente alguma coisa que quebre.
O Nicholas pegou um troféu de basquete da
prateleira acima da cama e o segurou no alto da cabeça, como se esperasse uma
permissão. — Isso — o Joseph disse.
— Isso! — O troféu se espatifou no chão, o
braço de plástico do jogador de basquete separado do corpo, ainda segurando a
bola. O Nicholas começou a pisotear o troféu. — Isso! — disse o Joseph. — Acabe
com ele! — E, se virando para mim: — Já faz algum tempo que venho procurando
uma forma de dizer ao meu pai que, na verdade, eu meio que odeio basquete, e
acho que encontrei.
Os troféus vieram todos abaixo, um a um, e o
Nicholas pulava neles e gritava enquanto o Joseph e eu mantínhamos uma certa
distância, as testemunhas daquela insanidade. Corpos mutilados de jogadores de
basquete de plástico lotaram o chão acarpetado: num canto, uma bola sendo
espalmada por uma mão sem corpo; no outro, duas pernas sem tronco no meio de um
salto. O Nicholas continuou atacando os troféus, pulando neles com os dois pés,
gritando, ofegante, suado, até que, por fim, cansou e caiu em cima dos
destroços.
O Joseph deu um passo na direção dele e olhou
para baixo.
— Está se sentindo melhor? — perguntou.
— Não — murmurou o Nicholas, o peito inflando
por causa da respiração ofegante.
— Esse é o problema da dor — o Joseph disse, e
aí olhou para mim.
— Ela precisa ser sentida.
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