sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Capítulo II


The Fault In Our Stars

Joseph Jonas dirigia muito mal. Tanto na freada quanto na arrancada, dava sempre um TRANCO enorme. Eu voava de encontro ao cinto de segurança da caminhonete Toyota toda vez que ele freava, e meu pescoço chicoteava para trás quando o pé ia para o acelerador. Eu deveria estar nervosa — sentada no carro de um estranho, indo para a casa dele, perfeitamente ciente do fato de que meus pulmões de araque iriam dificultar quaisquer esforços para evitar avanços indesejados —, mas ele dirigia tão mal que eu não conseguia pensar em outra coisa.
Tínhamos percorrido quase uns dois quilômetros em silêncio, ouvindo só os barulhos do carro, quando o Joseph disse:
— Fui reprovado três vezes no teste de direção.
— Não diga.
Ele riu e balançou a cabeça.
— É que eu não consigo sentir nada com a boa e velha prótese aqui, e não me acostumo a dirigir com o pé esquerdo. Meus médicos disseram que a maioria dos amputados consegue dirigir sem problemas, mas… bem. Não é o meu caso. Aí eu cheguei para o meu quarto teste de direção e ele rolou mais ou menos como agora. — Quase um quilômetro à frente o sinal ficou vermelho. O Joseph pisou fundo no freio, me atirando num abraço triangular com o cinto de segurança. — Foi mal. Juro por Deus que estou tentando fazer tudo devagar. Mas, aí, no fim do teste, eu estava certo de que tinha sido reprovado de novo, e o instrutor disse: “Seu jeito de dirigir é incômodo, mas não é arriscado, tecnicamente falando.” — Não sei se concordo com ele — falei. — Acho que foi mais um caso de “privilégio do câncer”.
Os “privilégios do câncer” são pequenas coisas que as crianças com a doença recebem e as saudáveis, não: bolas de basquete autografadas por ídolos do esporte, perdão pelo atraso na entrega do dever de casa, carteiras de motorista não merecidas etc.
— É — ele disse.
O sinal ficou verde. Segurei firme no banco. O Joseph meteu o pé no acelerador.
— Você sabe que existem controles manuais para pessoas que não podem dirigir usando os pedais? — perguntei.
— Sei — ele respondeu. — Quem sabe algum dia?
E suspirou de um jeito que me fez pensar se ele achava que esse algum dia ia chegar. Eu sabia que o osteossarcoma tinha uma probabilidade de cura muito grande, mas, mesmo assim…
Existem várias maneiras de estabelecer a expectativa de vida aproximada de alguém sem perguntar isso diretamente. Eu fui pela mais tradicional.
— Então, você estuda?
Normalmente seus pais tiram você da escola quando já estão esperando que bata as botas.
— Estudo — ele respondeu. — Na North Central. Mas estou atrasado um ano, dei uma parada no segundo. E você?
Pensei em mentir. Afinal de contas, ninguém se interessa por um cadáver ambulante. Mas acabei dizendo a verdade.
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três anos.
— Três anos? — ele perguntou, boquiaberto.
Contei ao Joseph a versão resumida do meu milagre: diagnosticada com câncer de tireoide em estágio IV aos treze anos. (Não contei que o diagnóstico veio três meses depois da minha primeira menstruação. Tipo: Parabéns! Você já é uma mulher. Agora morra.) E, foi o que nos disseram, era incurável.
Passei por uma cirurgia chamada dissecação radical do pescoço, tão desagradável quanto o nome. Depois, radioterapia. Aí tentaram quimioterapia para os tumores no pulmão, que diminuíram num primeiro momento, mas cresceram de novo. Nessa época eu já tinha quatorze anos.
Meus pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente, eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões, a pele rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não ficar totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma grande quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido perifericamente— PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros medicamentos. Mesmo assim, a sensação de afogamento é meio desagradável, principalmente quando dura vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia, e minha mãe se ajoelhou ao lado do meu leito e perguntou: “Você está pronta, querida?” Eu respondi que estava, e meu pai ficava repetindo que me amava com aquela voz embargada de sempre, e eu dizia que o amava também, e todo mundo de mãos dadas, eu sem conseguir respirar, meus pulmões funcionando no desespero, sem fôlego, me forçando a me ajeitar para tentar achar uma posição que permitisse que ar entrasse, eu constrangida pelo desespero dos meus pulmões, passada por eles não desistirem, simplesmente, e me lembro da minha mãe dizendo que estava tudo bem, que eu estava bem, que eu ficaria bem, e do meu pai fazendo um esforço tão grande para não chorar que, quando caía no choro, o que acontecia com frequência, parecia um terremoto. E me lembro de não querer ficar acordada.
Todo mundo achou que aquele fosse meu fim, mas minha médica do câncer, Kim, conseguiu drenar um pouco do líquido dos pulmões e, logo depois, os antibióticos que eu tomava para tratar a pneumonia começaram a fazer efeito.
Acordei e logo entrei num daqueles testes clínicos com remédios experimentais que são famosos na República da Cancervânia por não funcionarem. A droga se chamava Falanxifor, uma tal de molécula projetada para grudar nas células cancerosas e diminuir a velocidade de multiplicação delas. Não funcionava em mais ou menos 70% das pessoas. Mas funcionou em mim. Os tumores reduziram de tamanho.
E continuaram reduzidos. Viva o Falanxifor! Nos últimos dezoito meses minhas metástases quase não aumentaram, deixando para mim pulmões que são péssimos, mas que poderiam, a princípio, continuar funcionando indefinidamente no sacrifício com o auxílio da chuvinha de oxigênio e de doses diárias de Falanxifor.
Devo confessar que a história de milagre do meu câncer só resultou em um pequeno ganho de tempo. (Eu só não sabia ainda quão pequeno.) Mas, enquanto contava tudo ao Joseph Jonas, pintei o quadro mais otimista possível, ressaltando a miraculosidade do milagre.
— Então você precisa voltar a estudar — ele disse.
— Na verdade, não dá — expliquei —, porque já peguei meu certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido às aulas no MCC. — Que é a faculdade comunitária da cidade.
— Uma universitária — ele disse, balançando a cabeça. — Isso explica a aura de sofisticação.
Ele abriu um sorriso afetado. Dei um empurrão no seu braço, de brincadeira. E pude sentir o músculo logo abaixo da pele, todo contraído e incrível.
Fizemos uma curva cantando pneu e entramos em um loteamento com muro emboçado de dois metros e meio de altura. A casa dele era a primeira à esquerda. Estilo colonial, dois andares. Paramos, com um tranco, na entrada de carros.
Fui atrás dele até dentro da casa. Uma placa de madeira, no hall, tinha gravadas com letras cursivas as palavras O lar é onde fica o coração, e acabou que a casa toda era enfeitada com dizeres desse tipo. Amigos de verdade são difíceis de encontrar e impossíveis de esquecer, afirmava uma ilustração acima do cabideiro. O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis, prometia uma almofada bordada na sala de estar cheia de móveis antigos. O Joseph me pegou lendo.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos — explicou. — Estão espalhados por toda parte.

* * *

O pai e a mãe dele o chamavam de Joe. Estavam preparando enchiladas na cozinha (escrita em letras gordinhas num vidro jateado perto da pia estava a frase Família é para sempre). A mãe colocava frango nas tortillas, que o pai enrolava e botava num pirex. Eles não pareceram muito surpresos com a minha chegada, o que fazia sentido: o fato de o Joseph me fazer sentir especial não queria necessariamente dizer que eu era especial. Talvez ele levasse uma garota nova todas as noites para ver um filme e se aproveitar dela.
— Esta é Demetria Lovato — ele disse, me apresentando formalmente.
— Só Demetria — falei.
— Como vai, Demetria? — o pai perguntou. Ele era alto, quase tão alto quanto o Joe, e magro de um jeito que pais mais velhos normalmente não são.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Nicholas?
— Foi inacreditável — disse o Joe.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres — a mãe disse. — Demetria, você gosta de lá?
Fiquei em silêncio por um segundo, tentando decidir se minha resposta deveria ser calculada para agradar ao Joseph ou aos pais dele.
— A maioria das pessoas é bem legal — falei, por fim.
— Foi exatamente o que achamos das famílias no Memorial quando estávamos no meio do tratamento do Joe — o pai dele disse. — Todo mundo era muito gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor coloca as melhores pessoas na sua vida.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque isso precisa virar um Encorajamento — o Joseph disse, e o pai pareceu ficar um pouco chateado, mas aí ele passou o braço comprido em volta do pescoço do homem e falou:
— Só estou brincando, pai. Eu gosto desses malditos Encorajamentos. De verdade. Só não posso admitir isso porque sou adolescente. — O pai dele revirou os olhos.
— Você vai ficar para o jantar? — a mãe me perguntou. Ela era baixa, morena e tinha as feições de uma ratinha.
— Acho que sim — respondi. — Tenho de estar em casa às dez. Ah, só tem uma coisa… Eu não como carne…
— Não tem problema. Vamos vegetarianizar algumas delas — ela disse.
— Os animais são fofos demais? — o Joe perguntou.
— Quero diminuir a quantidade de mortes pelas quais sou responsável — falei.
O Joe abriu a boca para fazer um comentário, mas pensou duas vezes e continuou calado.
A mãe dele preencheu o silêncio.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
Eles conversaram um pouco comigo, me contando que as enchiladas eram as Famosas e Impossíveis de Não Experimentar Enchiladas Jonas, e que o toque de recolher do Joe ambém era às dez, e que eles desconfiavam totalmente de qualquer um que estabelecesse um toque de recolher diferente de dez, comentando o fato de eu estar estudando — “ela é universitária”, o Joseph exclamou —, de o clima estar absolutamente magnífico para março, e de como na primavera tudo era renovado, e em nenhum momento fizeram qualquer pergunta sobre o oxigênio ou sobre meu diagnóstico, o que era ao mesmo tempo estranho e maravilhoso, e aí o Joseph disse:
— A Demetria e eu vamos assistir ao V de Vingança para que ela possa ver a doppelgänger cinematográfica dela, a Natalie Portman do século vinte e um.
— A sala de estar é toda de vocês — o pai dele disse, todo alegrinho.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no porão.
O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Demetria Lovato — o Joseph disse.
— Só Demetria — falei.
— Então mostre o porão para a Só Demetria — o pai dele disse. — E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala de estar.
O Joseph bufou, se equilibrou na perna e girou o quadril, jogando a prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até chegarmos a um enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira lotada de memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo: dezenas de troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com arremesso, driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia várias bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e essas bolas são Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha enorme de DVDs e videogames estavam arrumados num formato que lembrava uma pirâmide. Dobrou o corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. — Eu era tipo, o protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele disse. — Estava todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de meia distância. Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do garrafão na quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um carrinho, de repente me perguntei por que estava jogando um objeto esférico através de outro, toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do mundo. Aí comecei a pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos cilíndricos em círculos vazados e em como tentam isso várias vezes durante meses até descobrirem como se faz, e em como o basquete era basicamente uma versão só um pouquinho mais aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer forma, por um tempão segui encestando os lances livres. Acertei oito bolas seguidas, meu recorde absoluto, mas, enquanto continuava, me sentia cada vez mais como uma criança de dois anos. E aí, por algum motivo que não sei qual, comecei a pensar em atletas que praticam corridas com obstáculos. Está tudo bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama desarrumada dele. Não queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco toda vez que fico muito tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar, depois desci a escada, e aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e não queria desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito “desmaios à toa”.
— Tudo bem — falei. — Só estou prestando atenção em você. Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e o “dia D”. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Nicholas está passando agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do Joseph Jonas. Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele terminava falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele ter feito lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser professor titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas cátedras no Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele ter um apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher como chamá-las: Joe ou Joseph? Eu era sempre só Demetria.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco distraído.
— Aquilo que você disse sobre ver crianças brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E você, tem irmãos?
Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto. Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez eu tivesse deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Joseph Jonas, que interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que eu não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa de que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção pretensiosa, poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Joseph falou quase gritando. — Demetria Lovato, você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.
Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição imperial, mas eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um estranho fervor religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado só vai se tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos o leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda da sua adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem nada; era só porque o autor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos mais estranhos e improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo jeito que meu corpo era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Joseph.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial — eu disse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?*
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu.
— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti que não deveria ter lhe contado. O Joseph se virou para uma pilha de livros na parte de baixo da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me estendeu o exemplar, cujo título era O preço do alvorecer. Ri e peguei-o. Nossos dedos meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando minha mão. — Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — ele disse, se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até chegarmos à escada.

* * *

Vimos o filme com vários centímetros de sofá entre nós. Dei uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do caminho para deixar claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não fez nada. Depois de uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as enchiladas, que comemos no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado que morria heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que não tem nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo.
Sério. Era um filme do tipo que só agrada garotos. Não sei por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós, meninas, não temos expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o Joseph procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o Encorajamento acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos reconhecer o prazer?
(Essa é uma discussão antiga no campo das Reflexões Sobre o Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da frase poderiam ser analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a existência do brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Joseph até a minha casa, ele no banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que gostava, de um grupo chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não conhecia, não causaram em mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava uma olhada na perna do Joseph, ou no lugar onde ela costumava ficar, tentando imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não queria dar muita bola para aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a mesma coisa em relação ao meu oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há muito tempo, e achava que o Joseph também tinha aprendido.
Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Joseph desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele. Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza de um garoto, mas ele era.
— Demetria Lovato. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Jonas — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para a intensidade daqueles olhos verdes.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei “amanhã”. Quero ver você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.


*Stormtroopers são soldados ficcionais do Império Galático em Star Wars.

                                                                           ~*~*~*~


Amanhã eu posto o capítulo três.

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