The Fault In Our Stars
Joseph Jonas dirigia muito mal. Tanto na freada
quanto na arrancada, dava sempre um TRANCO enorme. Eu voava de encontro ao
cinto de segurança da caminhonete Toyota toda vez que ele freava, e meu pescoço
chicoteava para trás quando o pé ia para o acelerador. Eu deveria estar nervosa
— sentada no carro de um estranho, indo para a casa dele, perfeitamente ciente
do fato de que meus pulmões de araque iriam dificultar quaisquer esforços para
evitar avanços indesejados —, mas ele dirigia tão mal que eu não conseguia
pensar em outra coisa.
Tínhamos percorrido quase uns dois quilômetros
em silêncio, ouvindo só os barulhos do carro, quando o Joseph disse:
— Fui reprovado três vezes no teste de
direção.
— Não diga.
Ele riu e balançou a cabeça.
— É que eu não consigo sentir nada com a boa e
velha prótese aqui, e não me acostumo a dirigir com o pé esquerdo. Meus médicos
disseram que a maioria dos amputados consegue dirigir sem problemas, mas… bem.
Não é o meu caso. Aí eu cheguei para o meu quarto teste de direção e ele rolou
mais ou menos como agora. — Quase um quilômetro à frente o sinal ficou
vermelho. O Joseph pisou fundo no freio, me atirando num abraço triangular com
o cinto de segurança. — Foi mal. Juro por Deus que estou tentando fazer tudo
devagar. Mas, aí, no fim do teste, eu estava certo de que tinha sido reprovado
de novo, e o instrutor disse: “Seu jeito de dirigir é incômodo, mas não é arriscado,
tecnicamente falando.” — Não sei se concordo com ele — falei. — Acho que foi
mais um caso de “privilégio do câncer”.
Os “privilégios do câncer” são pequenas coisas
que as crianças com a doença recebem e as saudáveis, não: bolas de basquete
autografadas por ídolos do esporte, perdão pelo atraso na entrega do dever de
casa, carteiras de motorista não merecidas etc.
— É — ele disse.
O sinal ficou verde. Segurei firme no banco. O
Joseph meteu o pé no acelerador.
— Você sabe que existem controles manuais para
pessoas que não podem dirigir usando os pedais? — perguntei.
— Sei — ele respondeu. — Quem sabe algum dia?
E suspirou de um jeito que me fez pensar se
ele achava que esse algum dia ia chegar. Eu sabia que o osteossarcoma tinha uma
probabilidade de cura muito grande, mas, mesmo assim…
Existem várias maneiras de estabelecer a
expectativa de vida aproximada de alguém sem perguntar isso diretamente. Eu fui
pela mais tradicional.
— Então, você estuda?
Normalmente seus pais tiram você da escola
quando já estão esperando que bata as botas.
— Estudo — ele respondeu. — Na North Central.
Mas estou atrasado um ano, dei uma parada no segundo. E você?
Pensei em mentir. Afinal de contas, ninguém se
interessa por um cadáver ambulante. Mas acabei dizendo a verdade.
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três
anos.
— Três anos? — ele perguntou, boquiaberto.
Contei ao Joseph a versão resumida do meu
milagre: diagnosticada com câncer de tireoide em estágio IV aos treze anos.
(Não contei que o diagnóstico veio três meses depois da minha primeira
menstruação. Tipo: Parabéns! Você já é uma mulher. Agora morra.) E, foi o que
nos disseram, era incurável.
Passei por uma cirurgia chamada dissecação
radical do pescoço, tão desagradável quanto o nome. Depois, radioterapia. Aí
tentaram quimioterapia para os tumores no pulmão, que diminuíram num primeiro
momento, mas cresceram de novo. Nessa época eu já tinha quatorze anos.
Meus pulmões começaram a se encher de líquido.
Basicamente, eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões,
a pele rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não
ficar totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma
grande quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido perifericamente—
PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros medicamentos. Mesmo
assim, a sensação de afogamento é meio desagradável, principalmente quando dura
vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia, e minha mãe se ajoelhou ao lado
do meu leito e perguntou: “Você está pronta, querida?” Eu respondi que estava,
e meu pai ficava repetindo que me amava com aquela voz embargada de sempre, e
eu dizia que o amava também, e todo mundo de mãos dadas, eu sem conseguir
respirar, meus pulmões funcionando no desespero, sem fôlego, me forçando a me
ajeitar para tentar achar uma posição que permitisse que ar entrasse, eu
constrangida pelo desespero dos meus pulmões, passada por eles não desistirem,
simplesmente, e me lembro da minha mãe dizendo que estava tudo bem, que eu
estava bem, que eu ficaria bem, e do meu pai fazendo um esforço tão grande para
não chorar que, quando caía no choro, o que acontecia com frequência, parecia
um terremoto. E me lembro de não querer ficar acordada.
Todo mundo achou que aquele fosse meu fim, mas
minha médica do câncer, Kim, conseguiu drenar um pouco do líquido dos pulmões
e, logo depois, os antibióticos que eu tomava para tratar a pneumonia começaram
a fazer efeito.
Acordei e logo entrei num daqueles testes
clínicos com remédios experimentais que são famosos na República da Cancervânia
por não funcionarem. A droga se chamava Falanxifor, uma tal de molécula
projetada para grudar nas células cancerosas e diminuir a velocidade de
multiplicação delas. Não funcionava em mais ou menos 70% das pessoas. Mas
funcionou em mim. Os tumores reduziram de tamanho.
E continuaram reduzidos. Viva o Falanxifor!
Nos últimos dezoito meses minhas metástases quase não aumentaram, deixando para
mim pulmões que são péssimos, mas que poderiam, a princípio, continuar
funcionando indefinidamente no sacrifício com o auxílio da chuvinha de oxigênio
e de doses diárias de Falanxifor.
Devo confessar que a história de milagre do
meu câncer só resultou em um pequeno ganho de tempo. (Eu só não sabia ainda
quão pequeno.) Mas, enquanto contava tudo ao Joseph Jonas, pintei o quadro mais
otimista possível, ressaltando a miraculosidade do milagre.
— Então você precisa voltar a estudar — ele
disse.
— Na verdade, não dá — expliquei —, porque já
peguei meu certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido
às aulas no MCC. — Que é a faculdade comunitária da cidade.
— Uma universitária — ele disse, balançando a
cabeça. — Isso explica a aura de sofisticação.
Ele abriu um sorriso afetado. Dei um empurrão
no seu braço, de brincadeira. E pude sentir o músculo logo abaixo da pele, todo
contraído e incrível.
Fizemos uma curva cantando pneu e entramos em
um loteamento com muro emboçado de dois metros e meio de altura. A casa dele
era a primeira à esquerda. Estilo colonial, dois andares. Paramos, com um
tranco, na entrada de carros.
Fui atrás dele até dentro da casa. Uma placa
de madeira, no hall, tinha gravadas com letras cursivas as palavras O lar é onde
fica o coração, e acabou que a casa toda era enfeitada com dizeres desse tipo.
Amigos de verdade são difíceis de encontrar e impossíveis de esquecer, afirmava
uma ilustração acima do cabideiro. O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis,
prometia uma almofada bordada na sala de estar cheia de móveis antigos. O Joseph
me pegou lendo.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos —
explicou. — Estão espalhados por toda parte.
* * *
O pai e a mãe dele o chamavam de Joe. Estavam
preparando enchiladas na cozinha (escrita em letras gordinhas num vidro jateado
perto da pia estava a frase Família é para sempre). A mãe colocava frango nas
tortillas, que o pai enrolava e botava num pirex. Eles não pareceram muito
surpresos com a minha chegada, o que fazia sentido: o fato de o Joseph me fazer
sentir especial não queria necessariamente dizer que eu era especial. Talvez
ele levasse uma garota nova todas as noites para ver um filme e se aproveitar
dela.
— Esta é Demetria Lovato — ele disse, me
apresentando formalmente.
— Só Demetria — falei.
— Como vai, Demetria? — o pai perguntou. Ele
era alto, quase tão alto quanto o Joe, e magro de um jeito que pais mais velhos
normalmente não são.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Nicholas?
— Foi inacreditável — disse o Joe.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres — a
mãe disse. — Demetria, você gosta de lá?
Fiquei em silêncio por um segundo, tentando
decidir se minha resposta deveria ser calculada para agradar ao Joseph ou aos
pais dele.
— A maioria das pessoas é bem legal — falei,
por fim.
— Foi exatamente o que achamos das famílias no
Memorial quando estávamos no meio do tratamento do Joe — o pai dele disse. —
Todo mundo era muito gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor
coloca as melhores pessoas na sua vida.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque
isso precisa virar um Encorajamento — o Joseph disse, e o pai pareceu ficar um
pouco chateado, mas aí ele passou o braço comprido em volta do pescoço do homem
e falou:
— Só estou brincando, pai. Eu gosto desses
malditos Encorajamentos. De verdade. Só não posso admitir isso porque sou
adolescente. — O pai dele revirou os olhos.
— Você vai ficar para o jantar? — a mãe me
perguntou. Ela era baixa, morena e tinha as feições de uma ratinha.
— Acho que sim — respondi. — Tenho de estar em
casa às dez. Ah, só tem uma coisa… Eu não como carne…
— Não tem problema. Vamos vegetarianizar
algumas delas — ela disse.
— Os animais são fofos demais? — o Joe perguntou.
— Quero diminuir a quantidade de mortes pelas
quais sou responsável — falei.
O Joe abriu a boca para fazer um comentário,
mas pensou duas vezes e continuou calado.
A mãe dele preencheu o silêncio.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
Eles conversaram um pouco comigo, me contando
que as enchiladas eram as Famosas e Impossíveis de Não Experimentar Enchiladas Jonas,
e que o toque de recolher do Joe ambém era às dez, e que eles desconfiavam
totalmente de qualquer um que estabelecesse um toque de recolher diferente de
dez, comentando o fato de eu estar estudando — “ela é universitária”, o Joseph
exclamou —, de o clima estar absolutamente magnífico para março, e de como na
primavera tudo era renovado, e em nenhum momento fizeram qualquer pergunta
sobre o oxigênio ou sobre meu diagnóstico, o que era ao mesmo tempo estranho e
maravilhoso, e aí o Joseph disse:
— A Demetria e eu vamos assistir ao V de
Vingança para que ela possa ver a doppelgänger cinematográfica dela, a Natalie
Portman do século vinte e um.
— A sala de estar é toda de vocês — o pai dele
disse, todo alegrinho.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no
porão.
O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Demetria
Lovato — o Joseph disse.
— Só Demetria — falei.
— Então mostre o porão para a Só Demetria — o
pai dele disse. — E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala
de estar.
O Joseph bufou, se equilibrou na perna e girou
o quadril, jogando a prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até
chegarmos a um enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira
lotada de memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo:
dezenas de troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com
arremesso, driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia
várias bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e
essas bolas são Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha
enorme de DVDs e videogames estavam arrumados num formato que lembrava uma
pirâmide. Dobrou o corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. —
Eu era tipo, o protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele
disse. — Estava todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de
meia distância. Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do
garrafão na quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um
carrinho, de repente me perguntei por que estava jogando um objeto esférico
através de outro, toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do
mundo. Aí comecei a pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos
cilíndricos em círculos vazados e em como tentam isso várias vezes durante
meses até descobrirem como se faz, e em como o basquete era basicamente uma
versão só um pouquinho mais aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer
forma, por um tempão segui encestando os lances livres. Acertei oito bolas
seguidas, meu recorde absoluto, mas, enquanto continuava, me sentia cada vez
mais como uma criança de dois anos. E aí, por algum motivo que não sei qual,
comecei a pensar em atletas que praticam corridas com obstáculos. Está tudo
bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama
desarrumada dele. Não queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco
toda vez que fico muito tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar,
depois desci a escada, e aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e
não queria desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito “desmaios à
toa”.
— Tudo bem — falei. — Só estou prestando
atenção em você. Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar
neles correndo naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos
totalmente arbitrários colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses
corredores já teriam pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se
nós simplesmente nos livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? —
perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um
sorrisinho. — Por coincidência, o dia dos lances livres carregados de
existencialismo foi meu último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento
da amputação e o “dia D”. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Nicholas
está passando agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do
Joseph Jonas. Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele
terminava falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele
ter feito lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser
professor titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas
cátedras no Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele
ter um apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher
como chamá-las: Joe ou Joseph? Eu era sempre só Demetria.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco
distraído.
— Aquilo que você disse sobre ver crianças
brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas
meias-irmãs. Mas elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A
JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em
Chicago. As duas são casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros.
Não lembro direito. E você, tem irmãos?
Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele
perguntou, sentando do meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui
diagnosticada quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua
história. Seus interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas
pessoas que encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o
câncer é um negócio em franco crescimento, certo? O negócio de
tomar-as-pessoas-de-assalto. Mas é claro que você não deixou que ele saísse
vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez
eu tivesse deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Joseph Jonas,
que interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que
eu não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em
alguma coisa de que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção
pretensiosa, poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Joseph falou quase gritando. — Demetria
Lovato, você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a
escrever poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de
livros maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.
Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição
imperial, mas eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um
estranho fervor religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado só
vai se tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos o
leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue
falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda da sua
adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem
nada; era só porque o autor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos
mais estranhos e improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo
jeito que meu corpo era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Joseph.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma
aflição imperial — eu disse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?*
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu.
— Vou ler esse livro horrível com um título
sem graça que não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti
que não deveria ter lhe contado. O Joseph se virou para uma pilha de livros na
parte de baixo da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto
escrevia algo na primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você
leia esta adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me
estendeu o exemplar, cujo título era O preço do alvorecer. Ri e peguei-o.
Nossos dedos meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando
minha mão. — Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo
— ele disse, se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até
chegarmos à escada.
* * *
Vimos o filme com vários centímetros de sofá
entre nós. Dei uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do
caminho para deixar claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não
fez nada. Depois de uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as
enchiladas, que comemos no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado
que morria heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que
não tem nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo.
Sério. Era um filme do tipo que só agrada
garotos. Não sei por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós,
meninas, não temos expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de
filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã —
falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o
Joseph procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o
Encorajamento acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como
poderíamos reconhecer o prazer?
(Essa é uma discussão antiga no campo das
Reflexões Sobre o Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da
frase poderiam ser analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a
existência do brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Joseph até a minha
casa, ele no banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que
gostava, de um grupo chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não
conhecia, não causaram em mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava
uma olhada na perna do Joseph, ou no lugar onde ela costumava ficar, tentando
imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não queria dar muita bola para
aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a mesma coisa em relação ao meu
oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há muito tempo, e achava que o Joseph
também tinha aprendido.
Quando encostei o carro em frente à minha
casa, o Joseph desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando
em me beijar, e eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei
me perguntando se era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas
fazia algum tempo. Na era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e
olhei para ele. Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para
elogiar a beleza de um garoto, mas ele era.
— Demetria Lovato. — Meu nome soando inédito e
muito mais bonito na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Jonas — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não
era páreo para a intensidade daqueles olhos verdes.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e
havia um nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim
vai parecer que você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei “amanhã”.
Quero ver você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda
e boa parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o
livro de dentro do console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de
ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu
telefone — ele disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou
o número no livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece
direito.
*Stormtroopers são soldados ficcionais do Império Galático em Star Wars.
~*~*~*~
*Stormtroopers são soldados ficcionais do Império Galático em Star Wars.
~*~*~*~
Amanhã eu posto o capítulo três.
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