The Fault In Our Stars
Acho
que ele deve ter acabado dormindo. Eu peguei no sono, e acordei com o barulho
do trem de pouso sendo baixado. Estava com um gosto horrível na boca, por isso
tentei mantê-la fechada com medo de intoxicar o avião inteiro. Virei para o Joseph,
que olhava pela janela, e enquanto mergulhávamos através de um bloco de nuvens
baixas endireitei as costas para ver a Holanda. A terra parecia afundada no
oceano, pequenos retângulos de verde rodeados de canais por todos os lados. Na
verdade, nós aterrissamos numa pista paralela a um canal, como se houvesse duas
delas: uma para nós e outra para as aves aquáticas.
Depois
de pegar nossa bagagem e passar pela alfândega, nos amontoamos num táxi
dirigido por um homem careca e rechonchudo que falava inglês perfeitamente —
tipo, melhor que eu.
—
Hotel Filosoof? — falei.
E
ele perguntou:
—
Vocês são americanos?
—
Sim — mamãe respondeu. — Somos de Indiana.
—
Indiana — ele falou. — Eles roubam a terra dos índios e deixam o nome, é?
—
Mais ou menos isso — mamãe respondeu.
O
taxista se embrenhou pelo tráfego e seguimos em direção a uma estrada que
continha várias placas azuis com palavras de vogais dobradas: Oosthuizen,
Haarlem. Ao lado, uma planície desocupada se estendia por vários quilômetros,
interrompida por uma ou outra sede gigantesca de alguma empresa. Resumindo, a
Holanda se parecia com Indianápolis, só que com carros menores.
—
Isso aqui é Amsterdã? — perguntei ao motorista de táxi.
—
Sim e não — ele respondeu. — Amsterdã é como os anéis de uma árvore: fica mais
velha conforme você vai chegando perto do centro.
Aconteceu
tudo de repente: saímos da estrada e vimos as casas geminadas da minha
imaginação repousando precariamente sobre os canais, bicicletas onipresentes, e
cafés anunciando: SALÃO DE FUMO. O táxi passou por cima de um canal e eu pude
ver, do alto da ponte, várias casas flutuantes atracadas. Não se parecia em
nada com os Estados Unidos da América. Parecia uma pintura antiga, só que real
— tudo dolorosamente idílico à luz da manhã —, e eu pensei em como seria
maravilhosamente estranho morar num lugar onde quase tudo havia sido construído
por pessoas mortas.
—
Essas casas são muito antigas? — perguntou minha mãe.
—
Muitas das casas do canal datam da Idade de Ouro, o século dezessete — ele
disse. — Nossa cidade tem uma história riquíssima, embora muitos turistas só
queiram ver o Bairro da Luz Vermelha. — Ele fez uma pausa.
—
Alguns turistas acham que Amsterdã é a cidade do pecado, mas a verdade é que
ela é a cidade da liberdade. E é na liberdade que a maioria das pessoas
encontra o pecado.
* *
*
Todos
os quartos do Hotel Filosoof haviam sido batizados em homenagem a filósofos:
mamãe e eu ficamos no térreo, no Kierkegaard; o Joseph estava um andar acima,
no Heidegger. Nosso quarto era pequeno: uma cama de casal encostada numa das
paredes com a minha máquina BiPAP, um concentrador de oxigênio e vários
cilindros recarregáveis ao pé da cama. Passado o equipamento, havia uma cadeira
Paisley velha e empoeirada com o assento afundado, uma mesa e uma prateleira
acima da cama contendo a coleção completa dos livros de Søren Kierkegaard. Na
mesa encontramos uma cesta de vime cheia de presentes enviados pelos Gênios:
tamancos de madeira, uma camiseta cor de laranja da Holanda, chocolates e
vários outros itens.
O
Filosoof ficava ao lado do Vondelpark, o parque mais famoso de Amsterdã. Mamãe
quis sair para passear, mas eu estava supercansada, então ela colocou o BiPAP
para funcionar e ajeitou a máscara em mim. Eu odiava falar com aquela coisa no
nariz, mas:
—
Vá passear no parque que eu ligo para você quando acordar.
—
Está bem — ela disse. — Durma bem, querida.
* *
*
Mas,
quando acordei algumas horas depois, ela estava sentada na velha cadeira no
canto, lendo um guia turístico.
—
Bom dia — eu disse.
—
Na verdade, é fim de tarde — ela comentou, levantando da cadeira com um
suspiro. Andou até a cama, colocou um cilindro no carrinho e o conectou ao tubo
enquanto eu tirava a máscara do BiPAP do rosto e inseria o cateter no nariz.
Ela programou o cilindro para 2,5 litros por minuto, seis horas até que eu
precisasse que ele fosse trocado, e só aí levantei. — Como está se sentindo? —
ela perguntou.
—
Bem — respondi. — Ótima. Como foi lá no Vondelpark?
—
Não cheguei a ir — respondeu. — Mas li tudo sobre ele no guia turístico.
—
Mãe — falei —, você não precisava ter ficado aqui.
Ela
deu de ombros.
—
Sei disso. Mas eu quis ficar. Gosto de ver você dormindo.
—
Disse a criatura maníaco-obsessiva. — Ela riu, mas ainda assim me senti mal. —
Só quero que você se divirta, sabe?
—
Está bem. Vou me divertir hoje à noite, combinado? Vou cometer loucuras por aí
enquanto você e o Joseph saem para jantar.
—
Sem você? — perguntei.
—
É. Sem mim. Para falar a verdade, vocês já têm uma reserva num lugar chamado
Oranjee — ela disse. — A assistente do Sr. Van Houten organizou tudo. O
restaurante fica num bairro chamado Jordaan. Muito chique, segundo o guia
turístico. Há uma estação de bonde logo depois da curva. O Joseph tem as
instruções de como chegar lá. Vocês podem comer ao ar livre e ver os barcos
passando. Vai ser um programa adorável. Bastante romântico.
—
Mãe.
—
Só estou falando — ela disse. — Você deveria se arrumar. O vestido de alcinha,
talvez?
A
insanidade daquela situação seria de deixar qualquer um embasbacado: a mãe
manda a filha de dezesseis anos sozinha com um garoto de dezessete para um
programa numa cidade estrangeira famosa por sua permissividade. Mas isso,
também, era um efeito colateral de se estar morrendo: eu não podia correr nem
dançar nem comer alimentos ricos em nitrogênio, mas na cidade da liberdade eu
estava entre os residentes mais liberados de lá. Usei mesmo o vestido de
alcinha — um modelo azul com estampa floral e que ia até o joelho, da Forever
21 — com meia-calça e sapatos boneca, porque eu gostava de ser bem mais baixa
que ele. Entrei no banheiro ridiculamente pequeno e lutei com meus cabelos
despenteados durante algum tempo até que tudo parecesse apresentável. Às seis
da tarde em ponto (meio-dia em casa), houve uma batida à porta.
—
Oi? — eu disse, sem abrir. Não havia olho-mágico no Hotel Filosoof.
—
O.k. — respondeu o Joseph.
Pelo
som da voz dele deu para perceber que estava com o cigarro na boca. Dei uma
olhada em mim. O vestido de alcinha deixava à mostra muito mais do que o que o Joseph
já tinha visto da minha caixa torácica e das minhas clavículas. Não era obsceno
nem nada, mas era o mais perto que eu havia chegado de mostrar a pele na minha
vida inteira.
(Minha
mãe tinha um lema com o qual eu concordava: “Lovato que é Lovato não anda por
aí de barriga de fora.”)
Abri
a porta. O Joseph estava de terno preto, as lapelas estreitas, o caimento
perfeito, com uma camisa social azul-clara e uma gravata-borboleta fina. O
cigarro pendia do canto da boca.
—
Demetria Lovato — ele disse —, você está linda.
—
Eu — falei. Fiquei achando que o resto da frase surgiria só por ter ar passando
pelas minhas cordas vocais, mas nada aconteceu. Por fim, acabei dizendo: —
Estou me sentindo malvestida.
—
Ah, essa coisa velha? — ele falou, sorrindo para mim.
—
Joseph — minha mãe disse atrás de mim —, você está extremamente bonito.
—
Obrigado, senhora — ele disse, me oferecendo o braço.
Apoiei
a mão nele e olhei para trás, para a mamãe.
—
Vejo vocês às onze — ela disse.
Esperando
pelo bonde número um numa larga avenida com tráfego intenso, falei para o Joseph:
—
Esse é o terno que você usa em enterros?
—
Na verdade, não — ele disse. — O outro não é nem de longe tão bonito.
O
bonde azul e branco chegou e o Joseph entregou nossos cartões para o motorista,
que explicou que precisávamos passá-los por cima de um sensor circular.
Enquanto atravessávamos o bonde lotado, um senhor se levantou para podermos
sentar juntos e eu tentei dizer para ele continuar sentado, mas o homem fez um
gesto insistente em direção ao assento. Andamos de bonde por três paradas, eu
me apoiando no Joe para que pudéssemos olhar pela janela ao mesmo tempo.
O
Joseph apontou para o alto, para as árvores, e perguntou:
—
Viu aquilo?
Eu
vi. Havia olmos por todo lado pelos canais, e algumas sementes estavam sendo
carregadas pelo vento. Mas não pareciam sementes. Pareciam, precisamente,
pétalas de rosa descoloridas e em miniatura. Essas pétalas claras se juntavam
no vento como pássaros voando em bando — milhares deles, como uma tempestade de
neve na primavera.
O
senhor que nos deu o lugar reparou que estávamos observando aquilo e disse, em
inglês:
—
É primavera em Amsterdã. Os iepen jogam confete para dar as boas-vindas à
primavera. Trocamos de bonde e depois de quatro outras paradas chegamos a uma
rua dividida por um lindo canal, os reflexos da antiga ponte e das pitorescas
casas do canal ondulando na água.
O
Oranjee ficava a alguns passos. O restaurante era num lado da rua e as mesas ao
ar livre, no outro, em cima de uma extensão de concreto bem à margem do canal.
Os olhos da recepcionista brilharam quando o Joseph e eu andamos na direção
dela.
—
Sr. e Sra. Jonas?
—
Pois não? — falei.
—
Sua mesa — ela disse, apontando para o outro lado da rua, para uma mesinha a
alguns centímetros do canal. — O champanhe é cortesia da casa.
O
Joe e eu nos entreolhamos, sorrindo. Depois que atravessamos, ele puxou a
cadeira para mim e me ajudou a chegar para a frente com ela. De fato havia duas
taças de champanhe na mesa coberta por uma toalha branca. O leve frescor no ar
era magnificamente contrabalançado pelo calor da luz do sol; de um lado,
ciclistas passavam pedalando — homens e mulheres bem-vestidos voltando do
trabalho a caminho de casa, loiras inacreditavelmente atraentes sentadas de
lado na garupa da bicicleta de alguma amiga, crianças bem pequenas de capacete
sacolejando em cadeirinhas de plástico atrás de seus pais. E, do outro lado, a água
do canal saturada pelos milhões de sementes-confete. Pequenos barcos estavam
atracados aos muros de tijolos, com água da chuva até a metade, alguns quase
naufragando. Um pouco mais adiante dava para ver casas flutuantes em pontões e,
no meio do canal, um barco com o fundo plano, todo aberto, repleto de
espreguiçadeiras e com um aparelho de som portátil vinha na nossa direção. O Joseph
ergueu a taça de champanhe. Ergui a minha, mesmo sem nunca ter bebido nada
alcoólico — fora as vezes que dei umas bicadinhas na cerveja do meu pai.
—
O.k. — ele disse.
—
O.k. — falei, e fizemos tintim com as taças. Tomei um gole. As bolinhas se
desmancharam na minha boca e viajaram em direção ao norte, para dentro da
cabeça. Doce. Frisante. Delicioso.
—
Isso é muito bom — falei. — Nunca tinha bebido champanhe.
Um
jovem garçom, os cabelos loiros e ondulados, apareceu. Acho que era ainda mais
alto que o Joseph.
—
Vocês sabem o que Dom Pérignon disse depois de inventar o champanhe? — ele
perguntou com um sotaque delicioso.
—
Não? — falei.
—
Ele chamou os outros monges e disse: “Venham depressa! Estou bebendo estrelas.”
Bem-vindos a Amsterdã. Vocês gostariam de olhar o cardápio ou preferem a
sugestão do chef?
Olhei
para o Joseph e ele, para mim.
—
A sugestão do chef parece ótima, mas a Demetria é vegetariana.
Eu
só havia falado disso com o Joseph uma vez, no dia em que nos conhecemos.
—
Isso não é problema — disse o garçom.
—
Beleza. E será que poderíamos tomar um pouco mais disso? — o Joe perguntou,
falando do champanhe.
—
Claro — respondeu nosso garçom. — Nós engarrafamos todas as estrelas esta
noite, jovens amigos. Ai, esse confete! — ele falou e deu uma espanada de leve
numa semente que havia pousado no meu ombro nu. — Há tempos não caíam tantos
assim. Estão em todo lugar. Isso é muito irritante.
O
garçom desapareceu. Ficamos olhando o confete caindo do céu, rolando pelo chão
com a brisa e terminando no canal.
—
É meio difícil de acreditar que alguém possa achar isso irritante — o Joseph
disse depois de um tempo.
—
As pessoas sempre acabam ficando insensíveis à beleza.
—
Eu ainda não fiquei insensível a você — ele retrucou, sorrindo. Fiquei
vermelha. — Obrigado por vir a Amsterdã.
—
Obrigada por me deixar sequestrar seu desejo — falei.
—
Obrigado por usar esse vestido que é, tipo, “uau”.
Balancei
a cabeça, tentando não sorrir. Eu não queria ser uma granada. Mas, para falar a
verdade, ele sabia o que estava fazendo, não sabia? Era uma questão de escolha
para ele também.
—
Ei, como termina aquele poema? — ele perguntou.
—
Hein?
—
Aquele que você recitou para mim no avião.
—
Ah, o “Prufrock”? Acaba assim: “Tardamos nas câmaras do mar / Junto às ondinas
com sua grinalda de algas rubras e castanhas / Até sermos acordados por vozes
humanas. E nos afogarmos.”
O
Joseph tirou um cigarro do maço e bateu com o filtro na mesa.
—
Essas estúpidas vozes humanas sempre estragando tudo.
O
garçom chegou com mais duas taças de champanhe e com o que chamou de “Aspargos
brancos belgas com infusão de lavanda”.
—
Eu também nunca tinha bebido champanhe — o Joe disse depois que o garçom se
afastou. — Caso você tenha ficado se perguntando isso, e tal. E também nunca
tinha comido aspargos brancos.
Eu
estava no meio da primeira garfada.
—
É fantástico — garanti.
Ele
deu uma garfada, engoliu.
—
Céus. Se os aspargos tivessem sempre esse gosto eu também seria vegetariano.
Algumas
pessoas num barco de madeira envernizada se aproximaram lá embaixo no canal.
Uma delas, uma loira de cabelos cacheados, com uns trinta anos, talvez, ergueu seu
copo de cerveja na nossa direção e gritou algo.
—
Nós não falamos holandês — o Joe gritou para ela.
Uma
das outras gritou uma tradução:
—
O casal bonito é bonito.
* *
*
A
comida era tão boa que a cada prato nossa conversa recaía em mais exaltações
fragmentadas daquela deliciosidade: “Eu quero que esse risoto de cenoura roxa
se transforme numa pessoa para que eu possa levá-la até Las Vegas e me casar
com ela.” “Sorbet de ervilha-de-cheiro, você é tão surpreendentemente
magnífico.” Queria estar com mais fome.
Depois
do nhoque de alho verde com folhas de mostarda vermelha, o garçom disse:
—
A sobremesa já está a caminho. Gostariam de beber mais estrelas antes?
Balancei
a cabeça negativamente. Duas taças eram o bastante para mim. O champanhe não
era exceção à minha alta resistência a calmantes e analgésicos; eu estava
alegre, mas não bêbada. E nem pretendia ficar. Noites como aquela não
aconteciam com frequência, e eu queria me lembrar dela.
—
Humm — falei depois que o garçom saiu, e o Joseph deu aquele sorriso torto,
olhando para um lado do canal enquanto eu olhava para o outro.
Nós
tínhamos muito o que ver, e por isso aquele silêncio não era estranho, de verdade,
mas eu queria que tudo fosse perfeito. E era perfeito, acho, só que dava a
impressão de que alguém tinha tentado encenar a Amsterdã da minha imaginação, o
que tornou mais difícil esquecer que aquele jantar, assim como a viagem em si,
eram um Privilégio do Câncer. Eu só queria que ficássemos conversando e rindo
confortavelmente, como fazíamos no sofá lá em casa, mas alguma tensão permeava
aquilo tudo.
—
Não é o terno que eu uso em enterros — ele disse após alguns minutos. — Quando
descobri que estava doente, eles me disseram que minha chance de cura era de
oitenta e cinco por cento. Sei que essa é uma probabilidade favorável, mas não
pude deixar de pensar que estava numa roleta-russa. Quer dizer, eu teria que
passar o maior sufoco por um tempo, de seis meses a um ano, e perder minha
perna, e, no fim, aquilo ainda assim poderia não funcionar, sabe?
—
Sei — falei, mesmo não sabendo.
Não
de verdade. Eu nunca fui outra coisa a não ser uma paciente terminal; todo o
meu tratamento tinha como objetivo estender a minha vida, e não curar o câncer.
O Falanxifor havia introduzido um grau de ambiguidade à história, mas eu era
diferente do Joseph: meu capítulo final foi escrito no momento do diagnóstico.
O Joe, como a maioria dos sobreviventes do câncer, vivia na incerteza.
—
Certo — ele disse. — Então passei por todo um processo de querer estar
preparado. Compramos um lote em Crown Hill, e eu fui lá um dia com meu pai e
escolhi um local. Planejei todo o meu enterro e tudo mais, e então, logo antes
da cirurgia, perguntei a meus pais se poderia comprar um terno, tipo, um terno
dos bons, só para o caso de eu bater as botas. No fim das contas, nunca tive
oportunidade de usá-lo. Até hoje.
—
Então este é o seu terno mortuário.
—
Exatamente. Você não tem uma roupa para o seu enterro?
—
Tenho — respondi. — É um vestido que comprei para o meu aniversário de quinze
anos. Mas não uso esse vestido em encontros românticos.
Os
olhos dele brilharam.
—
Nós estamos num encontro romântico?
Olhei
para o chão, envergonhada.
—
Não force a barra.
* *
*
Ambos
estávamos totalmente satisfeitos, mas a sobremesa — um opulento e suculento
cremeaux rodeado de maracujá — era boa demais para não provarmos pelo menos um
pouquinho, então protelamos o pedido por um tempo, tentando ficar com fome de
novo. O sol era uma criança pequena se recusando terminantemente a ir para a
cama: já eram mais de oito e meia da noite e o céu ainda estava claro.
Do
nada, o Joseph perguntou:
—
Você acredita em vida após a morte?
—
Eu acho que a eternidade é um conceito errôneo — respondi. Ele sorriu de um
jeito afetado.
—
Você é um conceito errôneo.
—
Eu sei. E é por isso que estou sendo retirada da rotação.
—
Isso não é engraçado — ele disse, olhando para a rua.
Duas
meninas passaram numa bicicleta, uma sentada de lado em cima da roda traseira,
de carona.
—
Peraí — falei. — Eu só estava brincando.
—
Não tem a menor graça para mim imaginar você sendo retirada da rotação — ele
disse. — Agora, sério: e a vida após a morte?
—
Não — falei, e depois me corrigi. — Bem, para falar a verdade, eu não diria um
“não” tão categórico assim, talvez. E você?
—
Eu acredito — ele disse, confiante. — Acredito, com certeza. Não num paraíso
onde você anda de unicórnio, toca harpa e vive numa mansão feita de nuvem. Mas,
sim, eu acredito em Algo com A maiúsculo. Sempre acreditei.
—
Sério? — perguntei.
Aquilo
me surpreendeu. Eu sempre relacionei a crença no paraíso com, sendo bem
sincera, um tipo de limitação intelectual. Mas o Joe não era burro.
—
É — ele respondeu baixinho. — Eu acredito naquela frase de Uma aflição
imperial. “A luz do sol nascente forte demais em seus olhos que perecem.” Acho
que o sol nascente é Deus, e a luz do sol é muito forte e os olhos dela estão
perecendo, mas não estão perdidos. Eu não acredito que retornamos para
assombrar ou consolar os vivos nem nada, mas acho que nos transformamos em alguma
coisa.
—
Mas você tem medo do esquecimento.
—
Sim, eu tenho medo do esquecimento terreno. Mas, quer dizer, não quero parecer
meu pai nem minha mãe falando, mas acredito que os seres humanos têm alma, e
acredito na manutenção da alma. O medo do esquecimento é outra coisa, o medo de
não ser capaz de dar a minha vida em troca de nada. Se você não vive uma vida a
serviço de um bem maior, precisa pelo menos morrer uma morte a serviço de um
bem maior, sabe? E eu tenho medo de não ter nem uma vida nem uma morte que
signifique alguma coisa.
Eu
balancei a cabeça.
—
O que foi? — ele perguntou.
—
A sua obsessão por, tipo, morrer por alguma coisa, ou por deixar para trás
algum símbolo memorável do seu heroísmo, e tal. É estranho.
—
Todo mundo quer ter uma vida extraordinária.
—
Nem todo mundo — falei, sem conseguir disfarçar minha irritação.
—
Ficou chateada?
—
É só que — falei, mas não consegui terminar a frase. — Só que — falei de novo.
Entre nós dois, a luz de uma vela tremulava. — É muita maldade sua dizer que as
únicas vidas que importam são aquelas vividas por alguma coisa ou mortas por
alguma coisa. É muita maldade dizer uma coisa dessas para mim.
Por
algum motivo me senti como uma criancinha, e dei uma colherada na sobremesa
para fazer parecer que aquilo não tinha tanta importância assim.
—
Foi mal — ele disse. — Não foi a minha intenção. Eu só estava pensando em mim
mesmo.
—
É, estava — falei.
Não
dava para terminar de comer a sobremesa. Meu estômago estava cheio demais.
Fiquei com medo de vomitar, na verdade, porque de vez em quando eu vomitava
depois de comer. (Nada a ver com bulimia, só câncer.) Empurrei o prato de
sobremesa na direção do Joe, mas ele sacudiu a cabeça.
—
Foi mal — falou de novo, esticando o braço sobre a mesa para pegar a minha mão.
Deixei
que ele a pegasse.
—
Eu poderia ser pior, sabe?
—
Como? — perguntei, em tom de desafio.
—
Quer dizer, eu tenho uma frase escrita à mão acima da minha privada que diz: “Banhe-se
Diariamente no Consolo das Palavras de Deus”, Demetria. Eu poderia ser muito
pior.
—
Isso não parece nada higiênico — falei.
—
Eu poderia ser pior.
—
Você poderia ser pior. — Sorri.
Ele
gostava mesmo de mim. Talvez eu fosse um pouco narcisista, e tal, mas quando
percebi isso naquele momento no Oranjee, passei a gostar mais ainda dele.
Quando
nosso garçom apareceu para levar os pratos de sobremesa, anunciou:
—
Sua refeição foi paga pelo Sr. Peter Van Houten.
O
Joseph sorriu.
—
Esse tal de Peter Van Houten não é tão mau assim.
* *
*
Andávamos
pela margem do canal quando começou a escurecer. À distância de um quarteirão
do Oranjee, paramos num banco de praça rodeado de bicicletas velhas e
enferrujadas presas com cadeado a racks e umas às outras. Nós nos sentamos lado
a lado, os quadris encostados, de frente para o canal, e ele colocou o braço
nos meus ombros.
Dava
para ver a luminosidade vinda do Bairro da Luz Vermelha. Mesmo sendo o Bairro
da Luz Vermelha, o brilho que vinha de lá tinha um misterioso tom de verde.
Imaginei milhares de turistas se embebedando, se drogando e passando de mão em
mão por aquelas ruas estreitas.
—
Nem acredito que ele vai nos contar tudo amanhã — falei. — Peter Van Houten vai
nos contar o famoso fim não publicado do melhor livro do mundo.
—
Além de ter pago o nosso jantar — o Joseph disse.
—
Fico fantasiando que ele vai nos revistar à procura de gravadores antes de nos
contar. E aí vai se sentar no meio de nós no sofá da sala de estar dele e
sussurrar a resposta para a pergunta que fiz sobre a mãe da Anna ter se casado
ou não com o Homem das Tulipas Holandês.
—
Não se esqueça do Sísifo, o hamster — o Joseph acrescentou.
—
Certo, e também, é claro, sobre que destino aguardou Sísifo, o hamster. — Eu me
inclinei para a frente, para olhar a água do canal. Havia uma quantidade
exagerada daquelas pétalas de olmo desbotadas. — Uma continuação que só vai
existir para nós — falei.
—
Qual é o seu palpite? — ele perguntou.
—
Não sei. De verdade. Já pensei nisso tudo, de trás para a frente e da frente
para trás, umas mil vezes. Cada vez que releio o livro, penso diferente, sabe?
Ele
assentiu com a cabeça.
—
Você tem uma teoria? — perguntei.
—
Tenho. Eu não acho que o Homem das Tulipas Holandês seja vigarista, mas também
não é rico como as faz acreditar. E acho que depois que a Anna morre, a mãe vai
para a Holanda com ele pensando que vão morar lá para sempre, mas não dá certo,
porque ela quer ficar perto de onde a filha viveu.
Eu
não tinha me dado conta de que ele pensava tanto assim no livro, que o Joe se
importava com o Uma aflição imperial independentemente de se importar comigo.
A
água banhava silenciosa os muros de pedra do canal abaixo de nós; um grupo de
amigos passou em bando, de bicicleta, gritando uns para os outros num holandês
gutural e acelerado; os barquinhos, pouco maiores que eu, estavam metade
submersos no canal; o cheiro de água muito parada por muito tempo; o braço dele
me puxando para perto; a perna de verdade dele encostando na minha perna de
verdade do quadril até o pé. Cheguei um pouco mais perto do corpo dele. Ele se
retraiu.
—
Foi mal. Você está bem?
Ele
murmurou um sim em resposta, claramente sentindo alguma dor.
—
Foi mal — falei de novo. — O
mbro ossudo.
—
Está tudo bem — ele disse. — Lindo, na verdade.
Ficamos
sentados ali por um bom tempo. A mão dele acabou abandonando meu ombro e pousou
no encosto do banco de praça. Basicamente nós só olhávamos fixamente para o
canal. Eu estava pensando bastante a respeito de como tinham feito aquele lugar
existir mesmo devendo estar submerso, e em como eu era, para a Dra. Maria, um
tipo de Amsterdã, uma anomalia parcialmente submersa, e aquilo me fez pensar na
morte.
—
Posso fazer uma pergunta sobre a Caroline Mathers?
—
E você ainda diz que não existe vida após a morte — ele respondeu sem olhar
para mim. — Mas pode, claro. O que você quer saber?
Eu
queria saber se ele ficaria bem se eu morresse. Queria não ser uma granada, não
ser uma força malévola nas vidas das pessoas que eu amava.
—
Só, tipo, o que aconteceu.
Ele
suspirou, soltando o ar por tanto tempo que, para os meus pulmões de araque,
parecia que ele estava se gabando. E colocou um cigarro novo na boca.
—
Você sabe que não há no mundo lugar menos frequentado que o playground de um
hospital, não sabe?
Eu
fiz que sim com a cabeça.
—
Bem, eu passei algumas semanas no Memorial quando eles amputaram a minha perna,
e tal. Fiquei internado no quinto andar e meu quarto dava vista para o
playground, que obviamente ficava sempre em total abandono. Eu estava submerso
na ressonância metafórica do playground vazio no pátio do hospital. Mas aí uma
garota começou a aparecer todos os dias ali, sozinha. Sentava no balanço e se
balançava, sem ninguém por perto, como numa cena de filme. Então eu pedi para
uma das minhas enfermeiras mais legais me contar o que sabia sobre ela, e a
mulher a levou lá em cima para uma visita, e era a Caroline, e eu usei o meu
carisma imenso para conquistá-la.
O
Joe fez uma pausa, então resolvi dizer alguma coisa.
—
Você não é tão carismático assim.
Ele
fez pouco caso, duvidando da veracidade do meu comentário.
—
Você é basicamente só gato — expliquei.
Ele
riu disso.
—
O problema com os mortos — disse, e então parou. — O problema é que você acaba
sendo considerado um crápula se não romantizar os mortos, mas a verdade é…
complicada, acho. Tipo, você está familiarizada com a imagem da vítima de
câncer estoica e determinada que luta heroicamente contra a doença com uma
força sobre-humana e nunca reclama nem para de sorrir, nem mesmo em seus últimos
instantes de vida, etc?
—
Se estou — falei. — São aquelas almas bondosas e generosas cujos gestos são uma
Inspiração para Todos Nós. Elas são tão fortes! Nós as admiramos tanto!
—
Certo, mas na verdade, quer dizer, além de nós dois, obviamente, as crianças
com câncer não são estatisticamente mais propensas a serem incríveis, nem
compassivas, nem perseverantes, nem nada. A Caroline estava sempre de mau humor
e infeliz, mas eu gostava daquilo. Gostava de achar que a Caroline tinha me
escolhido como a única pessoa no mundo que não ia odiar, e assim nós passávamos
o tempo todo juntos tirando sarro com a cara dos outros, sabe? Zombando das
enfermeiras, das outras crianças, das nossas famílias e de quem quer que fosse.
Mas não sei se isso era ela ou o tumor. Quer dizer, uma das enfermeiras dela me
disse, certa vez, que o tipo de tumor que a Caroline tinha é conhecido entre os
médicos como o Tumor dos Imbecis, porque ele simplesmente transforma a pessoa
num monstro. Então lá estava aquela menina sem um quinto do cérebro e que
acabara de ter uma recorrência do Tumor dos Imbecis, e ela não era o protótipo
do heroísmo estoico da criança com câncer. Ela era… Quer dizer, para ser
honesto, ela era uma megera. Mas não dá para dizer isso, porque ela carregava
aquele tumor e também porque ela está, quer dizer, ela está morta. Ela tinha
vários motivos para ser desagradável, sabe?
Eu
sabia.
—
Você se lembra daquela parte do Uma aflição imperial quando a Anna está
atravessando o campo de futebol para ir para a aula de educação física, e tal,
e cai de cara na grama, e é assim que ela sabe que o câncer voltou e que está
no seu sistema nervoso, e ela não consegue se levantar, e a cara dela está a,
tipo, dois centímetros da grama do campo de futebol, e ela simplesmente fica
ali imóvel olhando para a grama tão próxima, analisando a forma como a luz
incide sobre ela e… Eu não me lembro direito da frase, mas é algo que diz que a
Anna tem uma epifania whitmanesca e, com isso, define a humanidade como a oportunidade
de se maravilhar com a grandiosidade da criação, e tal. Você se lembra dessa
parte?
—
Eu me lembro dessa parte — falei.
—
Então, depois, quando eu estava sendo estripado pela quimioterapia, por algum
motivo resolvi ficar esperançoso de verdade. Não quanto à sobrevivência,
especificamente, mas eu me senti como a Anna se sente no livro, aquela sensação
de empolgação e gratidão por simplesmente ser capaz de se maravilhar com tudo.
“Mas,
nesse meio tempo, a Caroline foi ficando pior a cada dia. Ela teve alta depois
de um período e houve momentos em que achei que poderíamos ter, tipo, um
relacionamento normal, mas não podíamos, na verdade, porque ela não possuía
qualquer mecanismo de filtragem entre pensamento e fala, o que era triste,
desagradável e muitas vezes doloroso. Mas, quer dizer, não se pode terminar o
namoro com uma menina que sofre de câncer cerebral. Os pais dela gostavam de
mim, e ela tinha um irmão menor que é uma criança muito maneira. Quer dizer,
como eu poderia terminar o namoro? Ela estava morrendo.
“Demorou
muito. Levou quase um ano, e foi um ano durante o qual eu convivi com uma
garota que, tipo, do nada começava a rir, apontando para a minha prótese e me
chamando de perneta.”
—
Não — falei.
—
É. Quer dizer, era o tumor. Ele se alimentava do cérebro dela, sabe? Ou então
não era o tumor. Não tenho como saber porque ela e o tumor não podiam ser
desassociados. Mas conforme ela foi ficando mais doente, quer dizer, ela sempre
repetia as mesmas histórias e ria dos próprios comentários, mesmo que já
tivesse falado a mesma coisa umas cem vezes naquele dia. Tipo, ela repetiu a
mesma brincadeira durante várias semanas: “O Joe tem pernas lindas. Quer dizer,
perna.” E aí ria enlouquecidamente.
—
Ah, Joe — falei. — Isso é…
Eu
não sabia o que dizer. Ele não estava olhando para mim, e tive a sensação de
que ia invadir sua privacidade se o encarasse. Senti o corpo dele chegar para a
frente. O Joe tirou o cigarro da boca e olhou para ele, rolando-o com o polegar
e o indicador, e então levou-o de volta à boca.
—
Bem — ele disse —, para falar a verdade, eu tenho mesmo uma perna linda.
—
Sinto muito — falei. — Sinto mesmo.
—
Está tudo bem, Demetria Lovato. Mas, só para esclarecer, quando eu achei que
tinha visto o fantasma de Caroline Mathers no Grupo de Apoio, não fiquei de
todo feliz. Eu estava encarando você, mas não estava ansioso por conhecê-la, se
é que você me entende.
Ele
tirou o maço do bolso e colocou o cigarro de volta lá dentro.
—
Sinto muito — falei de novo.
—
Eu também — ele disse.
—
Não quero nunca fazer uma coisa dessas com você — falei para ele.
— Ah, eu não ia me importar, Demetria Lovato. Seria uma
honra ter o coração partido por você.
Nenhum comentário:
Postar um comentário