The Fault In Our Stars
Abri os olhos
às quatro horas da manhã holandesa, completamente acordada. Todas as tentativas
de voltar a dormir foram em vão, então fiquei deitada ali com o BiPAP bombeando
o ar para dentro e puxando o ar para fora, viajando nos ruídos de dragão mas
desejando ser capaz de escolher de que jeito respirar.
Reli o Uma aflição imperial até a mamãe
acordar e rolar para o meu lado, lá pelas seis horas. Ela aconchegou a cabeça
no meu ombro, o que foi um pouco desconfortável e ligeiramente Josephiniano.
O hotel serviu o café da manhã no nosso quarto
e, para minha total satisfação, continha frios e muitas outras transgressões à
composição do café da manhã norte-americano. O vestido que eu tinha planejado
usar no encontro com o Peter Van Houten passou à frente dos outros na fila
quando do jantar no Oranjee; por isso, assim que saí do banho e consegui deixar
o cabelo mais ou menos liso, passei uma meia hora debatendo com a mamãe sobre
as diversas vantagens e desvantagens dos figurinos disponíveis, até que resolvi
me vestir o mais parecida com a Anna em UAI possível: Chuck Taylors, calça
jeans escura do jeito que ela sempre usava e uma camiseta de malha azul-claro.
A estampa da camiseta era a reprodução de um
famoso quadro surrealista de René Magritte, no qual ele pintou um cachimbo e
escreveu embaixo, em letras cursivas: Ceci n’est pas une pipe. (“Isto não é um
cachimbo.”)
— Eu não consigo entender essa camiseta —
mamãe falou.
— O Peter Van Houten vai entender, acredite.
Em Uma aflição imperial há, tipo, umas sete mil referências ao Magritte.
— Mas isto é um cachimbo.
— Não, não é — falei. — É uma ilustração de um
cachimbo. Entendeu agora? Todas as representações de um objeto são
inerentemente abstratas. É muito inteligente.
— Como foi que você amadureceu tanto que
consegue entender coisas que confundem sua velha mãe? — ela perguntou. — Parece
que foi ontem que eu estava explicando para uma Demetria de sete anos por que o
céu é azul. Você me achou um gênio naquela época.
— Por que o céu é azul? — perguntei.
— Porque sim — ela respondeu, e eu ri.
Quanto mais perto das dez horas ia chegando,
mais ansiosa eu ficava: ansiosa para ver o Joseph; ansiosa para conhecer o
Peter Van Houten; ansiosa ao imaginar que minha roupa talvez pudesse não ter
sido uma boa escolha; ansiosa e com medo de não conseguirmos achar a casa
certa, já que todas as casas em Amsterdã se parecem; ansiosa e temerosa de nos
perdermos e não encontrarmos o caminho de volta para o Filosoof; ansiosa
ansiosa ansiosa. Mamãe ficava tentando bater papo comigo, mas eu não conseguia
prestar atenção nela direito. Eu já estava para pedir a ela que fosse até o
andar de cima ver se o Joseph estava acordado, quando ele chegou.
Abri a porta. Ele olhou minha camiseta e
sorriu.
— Muito engraçado — ele disse.
— Não chame meu peito de engraçado —
retruquei.
— Eu estou bem aqui — mamãe disse lá de trás.
Mas eu tinha feito o Joseph enrubescer e ficar
tão sem ação que finalmente pude sustentar o olhar dele.
— Tem certeza de que não quer ir também? —
perguntei à mamãe.
— Vou visitar o Rijksmuseum e o Vondelpark
hoje — ela respondeu. — Além do mais, não consigo gostar do livro dele. Sem
querer ofender. Agradeça a ele e à Lidewij por nós, tá?
— Tá — respondi. Abracei a mamãe e ela beijou
a minha cabeça bem acima da orelha.
* * *
A casa branca e geminada de Peter Van Houten
ficava, saindo do hotel, logo depois da curva, na Vondelstraat, de frente para
a área do parque. Número 158. O Augustus me deu a mão, carregou o carrinho do
oxigênio com a outra, e nós subimos os três degraus que levavam até a porta
pintada de verniz azul e preto da casa. Meu coração batia acelerado. Uma porta
fechada era a distância entre mim e as respostas com as quais vinha sonhando
desde a primeira vez que li a última página incompleta.
Dava para ouvir as batidas do som de um baixo,
alto o suficiente para fazer tremer os parapeitos das janelas. Fiquei me
perguntando se o Peter Van Houten teria um filho fã de rap.
Segurei a aldraba em formato de cabeça de leão
e bati à porta, hesitante. O som do baixo continuou.
— Talvez ele não consiga ouvir por causa da
música? — o Joseph comentou.
Ele pegou a cabeça do leão e bateu bem mais
forte.
A música parou de tocar e foi substituída pelo
som de passos trôpegos. Uma das trancas foi destravada. E mais outra. A porta
se abriu com um rangido. Um homem barrigudo, de cabelo ralo, bochechas caídas e
a barba de uma semana por fazer estreitou os olhos por causa da luz do sol. Ele
usava um pijama azul-bebê, como um personagem de filme antigo. O rosto e a
barriga eram tão redondos e os braços, tão magros, que ele parecia uma bola de
massa de pão com quatro varetas enfiadas.
— Sr. Van Houten? — o Joseph perguntou, a voz
esganiçando um tiquinho.
A porta se fechou com um estrondo. De trás
dela, ouvi uma voz aguda e gaguejante gritar: “LIII-DEE-VI-GUE!” (Até aquele
momento, eu vinha pronunciando o nome da assistente dele como li-de-vi-ge.) Nós
conseguíamos escutar tudo através da porta.
— Eles estão aqui, Peter? — uma mulher
perguntou.
— Estão… Lidewij, há duas aparições
adolescentes atrás da porta.
— Aparições? — ela perguntou, com uma melodia
cadenciada tipicamente holandesa.
O Van Houten respondeu rápido.
— Fantasmas espectros demônios visitantes
pós-terrestres aparições, Lidewij. Como pode uma pessoa que almeja obter um
diploma de pós-graduação em literatura norte-americana demonstrar um
conhecimento tão abominável da língua inglesa?
— Peter, aqueles não são visitantes
pós-terrestres. Eles são o Joseph e a Demetria, os jovens fãs com os quais você
vem se correspondendo.
— Eles são quem?! Eles… eu pensei que
estivessem nos Estados Unidos da América!
— Sim, mas você os convidou para vir até aqui,
se bem se lembra.
— Você sabe por que eu me mudei dos Estados
Unidos, Lidewij? Para que nunca mais precisasse me encontrar com nenhum
norte-americano.
— Mas você é norte-americano.
— Algo aparentemente incurável, imagino. Mas,
quanto a esses norte-americanos aí, você deve pedir-lhes que vão embora
imediatamente, que houve um terrível engano, que o bendito Van Houten fez um
convite retórico, não a sério, que esse tipo de convite deve ser considerado
algo simbólico.
Achei que fosse vomitar. Virei para o Joseph,
que olhava vidrado para a porta, e vi os ombros dele se encurvando.
— Não farei isso, Peter — a Lidewij respondeu.
— Você deve recebê-los. Você deve. Você precisa vê-los. Precisa ver como seu
trabalho é importante.
— Lidewij, você me manipulou, de caso pensado,
para provocar este encontro?
Um silêncio demorado se seguiu e, por fim, a
porta se abriu de novo. Ele virou a cabeça metronomicamente do Joseph para mim,
ainda com os olhos estreitados.
— Qual de vocês é o Joseph Jonas? — perguntou.
O Joseph levantou a mão devagar. O Van Houten
assentiu com a cabeça e disse:
— Você já resolveu a questão com aquela
franguinha?
E foi quando vi, pela primeira e única vez, um
Joseph Jonas totalmente sem palavras.
— Eu — ele começou —, humm, eu, Demetria,
humm. Bem.
— Este garoto parece ter algum tipo de
retardamento — o Peter Van Houten disse para a Lidewij.
— Peter — ela o censurou.
— Bem — disse o Peter Van Houten, estendendo a
mão para mim.
— É um prazer sem igual conhecer criaturas tão
ontologicamente improváveis.
Apertei a mão inchada dele e, em seguida, ele
e o Joseph se cumprimentaram. Fiquei me perguntando o que a palavra
ontologicamente significaria. Mesmo sem saber o que era, gostei dela. O Joseph
e eu estávamos juntos no Time das Criaturas Improváveis: nós e os
ornitorrincos.
É claro que eu tinha esperado que o Peter Van
Houten fosse mentalmente são, mas o mundo não é uma fábrica de realização de
desejos. A coisa mais importante era que a porta fora aberta e eu estava entrando
ali para descobrir o que acontece depois do término do Uma aflição imperial. E
isso era o suficiente. Seguimos ele e a Lidewij para dentro da casa, passamos
por uma enorme mesa de jantar de madeira de carvalho com apenas duas cadeiras e
chegamos a uma sala de estar estranhamente estéril. Parecia um museu, só que
não havia quadro algum nas paredes brancas e vazias. Tirando um sofá e uma
poltrona reclinável, ambos feitos de uma combinação de aço e couro preto, a
sala parecia deserta. De repente, reparei em duas sacolas de lixo pretas
grandes, cheias e lacradas com aqueles arames retorcidos, atrás do sofá.
— Lixo? — balbuciei para o Joseph, baixinho,
achando que ninguém mais ouviria.
— Cartas de fãs — o Van Houten respondeu ao se
sentar na poltrona reclinável. — Dezoito anos delas. Não posso abri-las. É
aterrorizante. As de vocês foram as primeiras missivas às quais respondi, e
vejam aonde isso me levou. Para ser sincero, acho a realidade dos leitores
totalmente insossa.
Aquilo
explicava por que o Van Houten nunca havia respondido às minhas cartas: ele não
tinha lido nenhuma. Fiquei me perguntando por que guardava todas elas, ainda
mais numa sala de estar formal e quase vazia. O Van Houten colocou os pés em
cima do pufe à frente da poltrona reclinável e cruzou os chinelos. Ele apontou
para o sofá. O Joseph e eu nos sentamos lado a lado, mas não perto demais.
— Vocês gostariam de tomar café da manhã? — a
Lidewij perguntou.
Comecei a responder que já tínhamos comido
quando o Peter me interrompeu.
— É cedo demais para o café da manhã, Lidewij.
— Bem, eles vêm dos Estados Unidos, Peter. Já
passa do meio-dia para os dois.
— Neste caso é tarde demais para o café da
manhã — ele disse. — Porém, já que passa do meio-dia para eles, deveríamos
então nos servir de um drinque. Você toma uísque? — perguntou para mim.
— Se eu… hummm… não… obrigada — falei.
— Joseph Jonas? — o Van Houten perguntou, balançando
a cabeça para o Joseph.
— É… Não, obrigado.
— Para mim, apenas, Lidewij. Uísque e água,
por favor. — O Peter transferiu a atenção para o Joe, perguntando: — Você sabe
como preparamos uma dose de uísque escocês com água nesta casa?
— Não, senhor — o Joe respondeu.
— Colocamos o uísque num copo, depois pensamos
na água, e então misturamos o uísque de verdade com a ideia abstrata da água.
— Talvez seja melhor tomar alguma coisa de
café da manhã antes, Peter — a Lidewij disse.
Ele olhou para nós e sussurrou, fingindo que
estava contando um segredo e que ela não podia ouvi-lo:
— A Lidewij acha que eu tenho problemas com a
bebida.
— E eu acho que o sol nasceu — a Lidewij
respondeu.
Mesmo assim, ela se encaminhou para o bar na
sala de estar, pegou uma garrafa de uísque, serviu o copo até a metade e levou
até ele. O Peter Van Houten tomou um gole e se ajeitou na cadeira, sentando-se
ereto.
— Um drinque desta qualidade merece uma
postura melhor — ele disse.
Fiquei consciente da minha própria postura e
me endireitei um pouco no sofá. E ajeitei a cânula. Papai sempre dizia que é possível
julgar as pessoas pelo modo como tratam garçons e assistentes. Nesse aspecto, o
Peter Van Houten era, provavelmente, o cara mais idiota do mundo.
— Então você gosta do meu livro — ele disse
para o Joseph depois de outro gole.
— Sim — respondi pelo Joseph. — E, sim, nós…
bem, o Joseph, ele usou o Desejo dele para conhecer você, para que nós
pudéssemos vir aqui e você pudesse nos contar o que acontece depois do fim do
Uma aflição imperial.
O Van Houten não disse uma palavra. Apenas deu
uma golada na bebida. Depois de alguns instantes, o Joseph falou:
— Seu livro foi mais ou menos o que nos uniu.
— Mas vocês não são um casal — ele comentou,
sem me olhar.
— O que quase nos uniu — falei.
Então ele olhou para mim.
— Você se vestiu igual a ela de propósito?
— Igual à Anna? — perguntei, e ele ficou só me
encarando. — Pode-se dizer que sim.
Ele esvaziou o copo e fez uma careta.
— Eu não tenho problemas com a bebida — ele
anunciou, a voz desnecessariamente alta. — Eu tenho uma relação churchilliana
com o álcool: posso contar piadas, governar a Inglaterra e fazer o que quiser.
Exceto deixar de beber.
Ele olhou para a Lidewij e fez um movimento
com a cabeça em direção ao copo. Ela o pegou e andou de volta até o bar.
— Só a ideia de água, Lidewij — ele instruiu.
— Está bem, já entendi — ela disse, o sotaque
quase como o nosso.
A segunda dose chegou. O Van Houten se
empertigou todo de novo como forma de demonstrar respeito. E tirou os chinelos.
Seus pés eram realmente feios. Ele estava arruinando a concepção que eu tinha
de um gênio autoral. Mas possuía as respostas.
— Bem, humm — falei —, primeiro nós queremos agradecer
pelo jantar de ontem à noite e…
— Nós pagamos o jantar para eles ontem à
noite? — o Van Houten perguntou para a Lidewij.
— Sim. No Oranjee.
— Ah, sim. Bem, acreditem em mim quando digo
que vocês não têm de me agradecer, e sim à Lidewij, que possui um talento
excepcional quando se trata de gastar o meu dinheiro.
— O prazer foi todo nosso — a Lidewij disse.
— Bem, obrigado, de qualquer forma — o Joseph
falou.
Deu para sentir um quê de irritação na voz
dele.
— Então aqui estou — o Van Houten disse após
alguns instantes. — Quais são as suas perguntas?
— Humm — o Joseph murmurou.
— Ele parecia tão inteligente nas cartas — o
Van Houten disse para a Lidewij, a respeito do Joseph. — Talvez o câncer tenha
criado uma cabeça de ponte no cérebro dele.
— Peter — a Lidewij disse, devidamente
horrorizada.
Eu também estava horrorizada, mas havia algo
de interessante num cara tão vil que se recusava a nos tratar de forma
condescendente.
— Temos mesmo algumas perguntas — eu disse. —
Falei delas em meu e-mail. Não sei se você lembra.
— Não lembro.
— A memória dele está comprometida — a Lidewij
disse.
— Se ao menos minha memória se comprometesse…
— o Van Houten retrucou.
— Então, nossas perguntas — repeti.
— Ela usa o “nós” da realeza — o Peter falou,
para ninguém em particular.
Outro gole. Eu não sabia como era o gosto do
uísque, mas se fosse de alguma forma parecido com champanhe, não dava para
entender como ele conseguia beber tanto, tão rápido e tão cedo.
— Você conhece o paradoxo da tartaruga de Zenão?
— ele perguntou para mim.
— Nossas perguntas têm a ver com o que
acontece com os personagens depois do fim do livro, mais especificamente…
— Você presume de forma errônea que eu precise
ouvir a sua pergunta para que possa respondê-la. Já ouviu falar de Zenão, o
filósofo?
Fiz ligeiramente que não com a cabeça.
— Ai de mim. Zenão era um filósofo
pré-socrático que, dizem, elaborou quarenta paradoxos associados à cosmovisão a
partir de pensamentos desenvolvidos por Parmênides… de Parmênides você já ouviu
falar, naturalmente — ele disse, e eu fiz que sabia quem era Parmênides, mesmo
não sabendo. — Graças a Deus! — ele falou. — Zenão se especializou em revelar
as imprecisões e simplificações de Parmênides, o que não foi difícil, pois
Parmênides estava sempre redondamente enganado em quase tudo. O valor de
Parmênides é o mesmo que o do amigo que escolhe o cavalo errado toda vez que
você o leva ao hipódromo. Mas o paradoxo mais conhecido de Zenão… Espere um
instante… Qual é o seu grau de familiaridade com o hip-hop sueco?
Eu não sabia dizer se o Peter Van Houten
estava brincando ou não. Depois de um tempo, o Augustus respondeu por mim:
— Limitado.
— Está bem, mas presumo que você conheça o
álbum mais influente de Afasi och Filthy intitulado Fläcken.
— Não, nós não conhecemos — respondi por nós
dois.
— Lidewij, coloque "Bomfalleralla" para tocar
imediatamente. A Lidewij andou até um MP3 player, girou um pouquinho o botão
circular e apertou uma tecla. Um rap começou a reverberar em todas as direções.
O som era bastante familiar, exceto por ser cantado em sueco.
Terminou e o Van Houten olhou para nós, na
expectativa, seus olhinhos o mais arregalados que conseguiam ficar.
— E então? — perguntou.
— Então?
Aí eu falei:
— O senhor deve nos desculpar, mas nós não
falamos sueco.
— Bem, é claro que não falam. Eu também não.
Quem é que raios fala sueco? O importante não é o que as vozes estão dizendo, o
que quer que seja, mas o que as vozes estão sentindo. Vocês certamente sabem
que só existem duas emoções, amor e medo, e que o Afasi och Filthy navega entre
elas com o tipo de facilidade que não se encontra no rap fora da Suécia. Querem
que eu bote para tocar de novo?
— Isso é uma piada? — o Joe perguntou.
— Como assim?
— Isso é algum tipo de performance? — Ele
olhou para a Lidewij e perguntou: — É isso?
— Creio que não — a Lidewij respondeu. — Ele
não é sempre… esse é um jeito incomum…
— Ah, cale a boca, Lidewij. Rudolf Otto disse
que se você não tiver vivenciado o numinoso, se não tiver experimentado um
encontro irracional com o mysterium tremendum, então o livro dele não é para
você. E eu lhes digo, jovens amigos, que se não conseguem ouvir a reação
corajosa de Afasi och Filthy ao medo, então meu livro não é para vocês.
É preciso que fique bem claro: aquilo era um
rap absolutamente normal, exceto pela letra em sueco.
— Humm — falei. — Então, o Uma aflição
imperial. Quando o livro termina, a mãe da Anna está prestes a…
O Van Houten me interrompeu, batendo no copo
enquanto falava até a Lidewij enchê-lo de novo.
— Pois bem, Zenão é mais famoso por seu
paradoxo da tartaruga. Imaginemos que você esteja participando de uma corrida
com uma tartaruga. É dada à tartaruga uma vantagem inicial, em distância, de
dez metros. No tempo que você leva para percorrer esses dez metros, a tartaruga
talvez se desloque um. E, então, no tempo que você leva para transpor essa
distância, a tartaruga vai um pouco mais à frente, e assim por diante. Você é
mais rápido que a tartaruga, mas não consegue alcançá-la; só consegue diminuir
a distância entre vocês.
“Mas é óbvio que você acaba simplesmente
passando pela tartaruga sem ponderar sobre a mecânica envolvida, mas a pergunta
de como foi capaz de fazer isso acaba sendo incrivelmente complicada e ninguém
tinha achado uma resposta para ela de verdade, até que Cantor demonstrou que
alguns infinitos são maiores que outros.”
— Humm — murmurei.
— Imagino que isso responda à sua pergunta —
ele disse, confiante, e então deu um gole generoso na bebida.
— Não exatamente — falei. — Nós estávamos nos
perguntando se, depois do fim do Uma aflição imperial…
— Eu renego tudo o que há naquele livro
pútrido — o Van Houten disse, me interrompendo.
— Não — retruquei.
— O que foi que você disse?
— Não, isso não é aceitável — falei. — Eu
entendo que a história acaba no meio da narrativa porque a Anna morre ou fica
doente demais para continuar a escrever, mas você falou que ia nos dizer o que
acontece com os outros, e é por isso que estamos aqui, e nós, eu preciso que
você me diga.
O Van Houten suspirou. Depois de mais um gole,
disse:
— Muito bem. Você está curiosa a respeito de
quem?
— A mãe da Anna, o Homem das Tulipas Holandês,
Sísifo, o hamster, quer dizer, é só… o que acontece com todo mundo.
O Van Houten fechou os olhos, inflou as
bochechas ao expirar e então olhou para cima, para as vigas de madeira expostas
que se entrecruzavam no teto.
— O hamster — ele disse, depois de um tempo. —
O hamster é adotado pela Christine…
Que era uma das amigas da Anna antes de ela
ficar doente. Aquilo fazia sentido. A Christine e a Anna brincaram com o Sísifo
em algumas cenas.
— Ele é adotado pela Christine e vive alguns
anos depois do fim do livro, para então morrer pacificamente durante seu sono
de hamster.
Agora, sim,
estávamos indo a algum lugar.
— Legal — falei. — Legal. Tá, então agora, o
Homem das Tulipas Holandês. Ele é um vigarista? A mãe da Anna se casa com ele?
O Van Houten ainda estava olhando para as
vigas no teto. Ele tomou mais um gole. O copo já estava quase vazio de novo.
— Lidewij, eu não consigo fazer isso. Não
consigo. Não consigo. — Ele nivelou o olhar com o meu. — Nada acontece com o
Homem das Tulipas Holandês. Ele não é um vigarista nem um não-vigarista; ele é
Deus. Ele é uma representação metafórica óbvia e inequívoca de Deus, e
perguntar o que acontece com ele é o equivalente intelectual a perguntar o que
acontece com os olhos desprovidos de corpo do Dr. T. J. Eckleburg em Gatsby. Se
ele se casa com a mãe da Anna? Nós estamos falando de um livro, cara criança,
não de algum cometimento histórico.
— Tá, mas com certeza você deve ter pensado no
que acontece com eles, quer dizer, como personagens, independentemente dos
significados metafóricos deles, e tal.
— Eles são ficcionais — ele disse, batendo de
novo no copo. — Nada acontece com eles.
— Você falou que ia me dizer — insisti.
Fiz questão de ser assertiva. Eu precisava
manter a atenção inebriada dele nas minhas perguntas.
— Talvez, mas eu me encontrava sob a impressão
equivocada de que você estava impossibilitada de fazer uma viagem
transatlântica. Eu tentei… lhe dar algum consolo, acho, e deveria ter imaginado
que a tentativa seria infrutífera. Mas para ser totalmente honesto, essa ideia
infantil de que o autor de um livro tem algum insight singular sobre seus
personagens… é ridícula. Aquele livro foi composto por rabiscos numa página,
minha cara. Os personagens que nele habitam não possuem vida fora desses
rabiscos. O que aconteceu com eles? Todos deixaram de existir no momento em que
o livro acabou.
— Não — falei. E me levantei do sofá. — Não,
eu entendo isso, mas é impossível não imaginar um futuro para eles. Você é a
pessoa mais qualificada para imaginar esse futuro. Alguma coisa aconteceu com a
mãe da Anna. Ou ela se casou ou não se casou. Ou ela se mudou para a Holanda
com o Homem das Tulipas Holandês ou não se mudou. Ou ela teve mais filhos ou
não teve. Eu preciso saber o que acontece com ela.
O Van Houten fez bico.
— Sinto muito não poder satisfazer seus
caprichos infantis, mas me recuso a me apiedar de você da forma com a qual está
acostumada.
— Eu não quero a sua pena — falei.
— Como toda criança doente — ele retrucou, sem
demonstrar qualquer emoção —, você diz que não quer a pena de ninguém, mas a
sua existência em si depende dela.
— Peter — a Lidewij falou, mas ele continuou,
reclinando-se na cadeira, as palavras saindo ainda mais mastigadas daquela boca
bêbada.
— Crianças doentes inevitavelmente se tornam prisioneiras: você está
fadada a viver o resto dos seus dias como a criança que era ao receber o
diagnóstico, a criança que acredita que haja vida depois que um livro acaba. E
nós, como adultos, temos pena disso, então pagamos seus tratamentos, suas
máquinas de oxigênio. Nós lhes damos comida e água embora seja pouco provável
que vocês vivam o suficiente para…
— PETER! — a Lidewij gritou.
— Você é um efeito colateral — o Van Houten
continuou — de um processo evolutivo que não dá muita importância a vidas
individuais. Você é um experimento malsucedido da mutação.
— EU ME DEMITO! — a Lidewij gritou.
Havia lágrimas nos olhos dela. Mas eu não
estava com raiva. Ele havia encontrado um jeito mais doloroso de dizer a
verdade, mas, naturalmente, eu já sabia qual era a verdade. Eu tinha passado
vários anos olhando do meu leito para o teto da UTI, por isso há tempos já
havia achado as maneiras mais dolorosas de imaginar a minha própria doença. Dei
um passo na direção dele.
— Ouça aqui, seu idiota — falei —, não há nada
que você possa me dizer sobre essa doença que eu já não saiba. Eu só preciso de
uma coisa de você antes de sair da sua vida para sempre: O QUE ACONTECE COM A
MÃE DA ANNA?
Ele ergueu a papada flácida na minha direção e
deu de ombros.
— Não posso dizer o que acontece com ela da
mesma forma que não posso dizer que fim levou o narrador de Proust, nem a irmã
de Holden Caulfield, nem Huckleberry Finn depois que partiu para os territórios
desconhecidos do Oeste.
— BABAQUICE! Isso é uma babaquice. Eu quero
saber! Invente alguma coisa!
— Não, e ficarei grato se não proferir
palavras de baixo calão na minha casa. Não é um vocabulário apropriado para uma
moça.
Eu não estava exatamente com raiva, ainda,
apenas bastante concentrada em obter o que me fora prometido. Alguma coisa
cresceu dentro de mim, eu me inclinei e dei um soco na mão inchada que segurava
o copo de uísque. O que restava da bebida se espalhou pela vastidão do rosto
dele, o copo ricocheteou no nariz e depois rodopiou pelo ar, como num balé,
aterrissando com um ruído de estilhaços no piso antigo de madeira.
— Lidewij — o Van Houten disse calmamente —,
vou tomar um dry martíni, se possível. Com um sussurro de vermute apenas.
— Eu me demiti — ela respondeu após um
instante.
— Não seja ridícula.
Eu não sabia o que fazer.
Ser boazinha não funcionou. Ser grossa não funcionou.
Eu precisava de uma resposta. Tinha vindo de
longe e chegado até ali depois de roubar o Desejo do Joseph. Eu precisava
saber.
— Alguma vez você já parou para se perguntar —
ele disse, as palavras começando a sair meio engroladas — por que se importa
tanto com seus questionamentos tolos?
— VOCÊ PROMETEU! — gritei, o ruído do choro
impotente do Nicholas na noite dos troféus destroçados ecoando na minha cabeça.
O Van Houten não respondeu.
Eu ainda estava de pé na frente dele,
esperando que me dissesse alguma coisa, quando senti a mão do Joseph no meu
braço. Ele me puxou em direção à porta e eu o segui, enquanto o Van Houten
discursava para a Lidewij sobre a ingratidão dos adolescentes contemporâneos e
sobre o fim da sociedade cortês, e a Lidewij, de um jeito histérico, gritava
alguma coisa para ele num holandês acelerado.
— Vocês precisam perdoar a minha ex-assistente
— ele falou. — O holandês não é bem um idioma, mas uma enfermidade da garganta.
O Joseph me tirou do cômodo e me puxou porta afora, ao encontro do fim da manhã
de primavera e do confete dos olmos em queda.
* * *
Não existia, para mim, a possibilidade de uma
fuga rápida, mas nós descemos os degraus, o Joseph segurando meu carrinho, e
começamos a andar de volta para o Filosoof por uma calçada acidentada de
paralelepípedos intercalados. Comecei a chorar pela primeira vez desde o
episódio do balanço.
— Ei — ele disse, colocando a mão na minha
cintura. — Ei. Está tudo bem.
Eu assenti e enxuguei o rosto com as costas da
mão.
— Ele não vale nada.
Assenti de novo.
— Vou escrever um epílogo para você — o Joe
falou. Aquilo me fez chorar ainda mais.
— Vou, sim — ele disse. — Vou mesmo. E vai ser
melhor que qualquer coisa que aquele bêbado poderia escrever. O cérebro dele é
um queijo suíço. Ele nem se lembra de ter escrito o livro. Eu consigo criar uma
história dez vezes melhor que a daquele cara. Vai ter sangue, coragem e
sacrifícios. Uma aflição imperial encontra O preço do alvorecer. Você vai amar.
Eu continuei assentindo, simulando um sorriso,
e aí ele me abraçou, os braços fortes me puxando para perto do peito musculoso,
e eu ensopei a camisa polo dele, mas consegui me recompor o suficiente para
poder falar.
— Eu gastei o seu Desejo com aquele idiota —
disse, ainda encostada no peito dele.
— Demetria. Não. Posso admitir que você de fato
gastou o meu único Desejo, mas não foi com ele. Você gastou meu Desejo com nós
dois.
Escutei, vindo de trás, um toc toc toc de
saltos altos numa corrida desabalada. Eu me virei. Era a Lidewij, o delineador
escorrendo pelas bochechas, claramente constrangida, tentando nos alcançar.
— Talvez devêssemos ir visitar a Anne Frank
Huis — a Lidewij disse.
— Não vou a lugar nenhum com aquele monstro —
o Joseph disse.
— Ele não foi convidado — a Lidewij falou.
O Joseph continuou me abraçando de um jeito
protetor, a mão na lateral do meu rosto.
— Não acho que… — ele começou, mas eu o
interrompi.
— Nós deveríamos ir.
Eu ainda queria respostas do Van Houten. Mas
isso não era tudo. Eu só teria mais dois dias em Amsterdã com o Joseph Jonas.
Não deixaria que um velho patético os estragasse.
* * *
O carro da Lidewij era um desajeitado Fiat
cinza com um motor estridente como uma garotinha de quatro anos. Conforme
percorríamos as ruas de Amsterdã, ela se desculpava repetida e profusamente.
— Sinto muito. Não tem desculpa. Ele está
muito mal — ela disse. — Achei que o encontro o ajudaria, se ele visse que o
livro tinha tido alguma influência na vida de vocês, mas… Sinto imensamente.
Isso é muito, muito constrangedor.
Nem eu nem o Joseph dissemos nada. Eu estava
no banco traseiro, bem atrás dele. Enfiei a mão no espaço entre a lateral do
carro e o assento dianteiro, tentando achar sua mão, mas não consegui
encontrá-la. A Lidewij prosseguiu:
— Eu continuei trabalhando para ele porque o
considero um gênio e porque o salário é muito bom, mas ele se transformou num
monstro.
— Imagino que tenha ficado muito rico com a
venda do livro — falei, depois de um tempo.
— Ah, não, não. Ele é descendente dos Van
Houten — ela falou. — No século dezessete, um ancestral dele descobriu como
diluir cacau em pó em água. Muito tempo atrás, alguns dos Van Houten imigraram
para os Estados Unidos e Peter é filho de um deles, mas se mudou para a Holanda
depois da publicação do livro. Ele é uma vergonha para uma nobre família.
O motor do carro esgoelou. A Lidewij trocou a
marcha e nós passamos por uma ponte sobre o canal.
— Foram as circunstâncias — ela disse. — Foram
as circunstâncias que o tornaram uma pessoa tão cruel. Ele não é um homem mau.
Mas, hoje, eu não pensei… quando ele falou aquelas coisas horríveis, não pude
acreditar. Sinto muito. Sinto muito, muito mesmo.
* * *
Tivemos de estacionar a um quarteirão da casa
da Anne Frank, e enquanto a Lidewij ficava na fila para comprar os ingressos
para nós, me sentei com as costas apoiadas numa arvorezinha, olhando para as
casas flutuantes atracadas no canal Prinsengracht. O Joseph estava em pé à
minha frente, movimentando o carrinho do oxigênio em círculos, olhando as
rodinhas girarem. Eu queria que ele se sentasse ao meu lado, mas sabia como era
difícil, para ele, se sentar, e mais difícil ainda ficar de pé de novo.
— Tudo bem? — ele perguntou, olhando para mim.
Dei de ombros e estiquei o braço para poder
colocar a mão na batata da perna dele. Era a panturrilha falsa, mas segurei
firme. Ele abaixou a cabeça para me olhar.
— Eu queria… — falei.
— É, eu sei — ele disse. — Eu sei.
Aparentemente, o mundo não é uma fábrica de realização de desejos.
Isso me fez rir um tiquinho.
A Lidewij voltou com os ingressos, mas seus
lábios finos estavam franzidos de preocupação.
— Não tem elevador — ela disse. — Sinto muito,
muito mesmo.
— Está tudo bem — falei.
— Não. Lá dentro há muitas escadas — ela
disse. — E elas são íngremes.
— Está tudo bem — repeti. O Joseph começou a
dizer alguma coisa, mas eu o interrompi. — Não tem problema. Eu consigo subir.
A visita começou num cômodo que mostrava um
vídeo sobre os judeus na Holanda, sobre a invasão nazista e sobre a família
Frank. Depois fomos para o andar de cima, adentrando a casa do canal onde
funcionara a empresa do Otto Frank. Subir as escadas era um processo lento, tanto
para mim quanto para o Joseph, mas eu me sentia forte. Logo estava olhando a
famosa estante de livros que camuflara a entrada para o esconderijo da Anne, da
família dela e de quatro outras pessoas. A estante estava aberta até a metade,
e por atrás havia uma escada mais íngreme ainda, tão estreita que só cabia uma
pessoa por degrau.
Havia vários visitantes à nossa volta, e eu
não queria atravancar a procissão, mas a Lidewij falou:
— Se todos puderem ter um pouco de paciência,
por favor…
E comecei a subir, a Lidewij carregando o carrinho
atrás de mim, o Joe na sequência.
Eram quatorze degraus. Eu só pensava nas
pessoas que vinham depois de mim, a maioria adultos falando vários idiomas
diferentes, e fiquei com vergonha. Sei lá, eu me sentia como um fantasma que
tanto traz consolo quanto assombra, mas consegui chegar ao fim da escada,
finalmente, num cômodo sinistramente vazio. Eu me apoiei na parede, meu cérebro
dizendo a meus pulmões está tudo bem está tudo bem fiquem tranquilos está tudo
bem e meus pulmões dizendo ao meu cérebro ai, meu Deus, nós estamos morrendo
aqui. Nem vi quando o Joseph chegou, mas ele se aproximou de mim esfregando as
costas da mão na testa para secá-la, num movimento de ufa, e disse:
— Você é uma heroína.
Depois de alguns minutos apoiada na parede,
fui até o cômodo seguinte, que a Anne havia dividido com o dentista Fritz
Pfeffer. Era minúsculo e sem móveis. Não daria para imaginar que alguém tinha
vivido ali não fossem as fotos de revistas e jornais que a Anne havia colado na
parede e que lá permaneciam. Outra escada levava ao cômodo no qual a família
Van Pel havia morado, essa mais íngreme que a anterior e com dezoito degraus,
basicamente uma escada de mão mais elaborada. Cheguei à base dela, olhei para o
alto e achei que não conseguiria subir, mas também sabia que o único caminho
para chegar ao fim era subindo.
— Vamos voltar — o Joe disse, atrás de mim.
— Estou bem — respondi baixinho.
Sei que é bobagem, mas eu ficava pensando que
devia isso a ela, à Anne Frank, digo, porque ela estava morta e eu, não, porque
ela havia ficado em silêncio, mantido as cortinas fechadas e feito tudo certo,
e ainda assim, tinha morrido. Então eu deveria subir aqueles degraus e ver o
resto do mundo no qual ela vivera durante aqueles anos antes da chegada da
Gestapo.
Comecei a subir, transpondo os degraus do
mesmo jeito que uma criança pequena faria, devagar a princípio, para conseguir
respirar, e mais rápido depois, porque eu sabia que no fim das contas não
conseguiria respirar, e queria chegar ao topo antes de perder o fôlego de vez.
A escuridão invadia o meu campo de visão enquanto eu escalava os dezoito
degraus, íngremes como os diabos. Por fim, alcancei o topo basicamente cega e
enjoada, os músculos dos braços e das pernas clamando por oxigênio. Larguei meu
corpo no chão, sentando com as costas encostadas numa parede, tossindo sofregamente.
Havia uma redoma de vidro vazia e aparafusada na parede acima de mim. Olhei
para o alto, através dela, para o teto, tentando não desmaiar.
A Lidewij se agachou ao meu lado e falou:
— Você chegou ao último andar, já acabou.
Fiz que sim com a cabeça. Eu tinha uma vaga
noção de que havia adultos espalhados pelo ambiente olhando preocupados para
mim; da Lidewij falando baixinho numa língua, depois em outra, e então em mais
outra para os vários visitantes; do Joseph de pé na minha frente, a mão dele na
minha cabeça, acariciando meu cabelo no pedaço em que estava repartido. Depois
de um bom tempo, a Lidewij e o Joseph me colocaram de pé, e pude ver o que
estava por trás da redoma de vidro: marcas feitas a lápis no papel de parede e
que registravam o crescimento de todas as crianças no anexo secreto durante o
período em que viveram ali, centímetro por centímetro, até quando foi
interrompido. Saindo dali, deixamos a área de moradia dos Frank, mas ainda
estávamos no museu. Um corredor comprido e estreito exibia fotos de cada um dos
oito residentes do anexo e descrevia como, onde e quando haviam morrido.
— O único integrante da família dele a
sobreviver à guerra — a Lidewij nos disse, se referindo ao pai da Anne, Otto.
Ela sussurrava, como se estivéssemos numa
igreja.
— Mas, na verdade, ele não sobreviveu bem a
uma guerra — o Joseph falou. — Ele sobreviveu a um genocídio.
— Verdade — a Lidewij concordou. — Não sei
como é possível alguém continuar vivendo sem a família. Não sei mesmo.
Enquanto eu lia a respeito de cada um dos sete
que morreu, pensei em Otto Frank deixando de ser pai, ficando com um diário, em
vez da esposa e das duas filhas. No fim do corredor, um livro enorme, maior que
um dicionário, continha os nomes dos 103 mil holandeses mortos no Holocausto.
(Apenas 5 mil dos judeus holandeses deportados, explicava uma plaqueta na
parede, haviam sobrevivido. Cinco mil Otto Franks.) O livro estava aberto na
página em que havia o nome da Anne Frank, mas o que chamou mesmo a minha
atenção foi o fato de que logo abaixo do nome dela tinham quatro Aron Franks.
Quatro. Quatro Aron Franks sem museus, sem placas comemorativas, sem ninguém
para chorar por eles. Em meu íntimo, resolvi que iria me lembrar dos quatro
Aron Franks e rezar por eles enquanto vivesse. (Talvez algumas pessoas precisem
acreditar num Deus único e onipotente para o qual rezar, mas eu, não.)
Quando chegamos ao fim do cômodo, o Joe parou
e perguntou:
— Você está bem?
Assenti com a cabeça.
Ele fez um gesto indicando a foto da Anne.
— A pior parte é que ela quase escapou, sabe?
Ela morreu algumas semanas antes da liberação dos campos de concentração.
A Lidewij se afastou alguns passos para
assistir a um vídeo, e eu segurei a mão do Joseph enquanto andávamos para o
ambiente seguinte. Era um cômodo de teto triangular com cartas que o Otto Frank
havia escrito para algumas pessoas durante sua busca pelas filhas, que durou
vários meses. Na parede, no meio do cômodo, um vídeo do Otto estava sendo
reproduzido. Ele falava em inglês.
— Sobrou algum nazista que eu possa perseguir
e entregar nas mãos da Justiça? — o Joseph perguntou quando nos inclinamos
sobre as vitrines da exposição para ler as cartas do Otto e as respostas
dilacerantes de que não, ninguém tinha visto as filhas dele depois da liberação.
— Acho que estão todos mortos. Mas não é como
se os nazistas tivessem o monopólio do mal.
— Verdade — ele disse. — Eis o que deveríamos
fazer, Demetria Lovato: nós deveríamos nos unir e virar uma dupla de
justiceiros portadores de deficiências botando a boca no trombone pelo mundo,
endireitando o que está errado, defendendo os fracos, protegendo quem se sente
ameaçado.
Embora aquela fosse a “viagem” do Joe, e não a
minha, eu entrei na dele. O Joe já havia entrado na minha, afinal.
— Nosso destemor será nossa arma secreta —
falei.
— As lendas das nossas proezas sobreviverão
enquanto existir a voz humana — ele disse.
— E, mesmo depois disso, quando os robôs
relembrarem os absurdos humanos de sacrifício e compaixão, eles se lembrarão de
nós.
— Eles rirão roboticamente da nossa loucura
destemida — ele disse. — Mas algo em seus corações de ferro robotizados vai
desejar ter vivido e morrido como nós: a serviço do heroísmo.
— Joseph Jonas — falei, olhando para ele,
pensando que talvez não fosse certo beijar alguém dentro da casa da Anne Frank,
mas então imaginando que a Anne Frank, no fim das contas, devia ter beijado
alguém na casa da Anne Frank, e que ela provavelmente gostaria de sua casa ter
se tornado um lugar no qual os jovens e irremediavelmente imperfeitos se
entregam ao amor.
“Devo dizer”, o Otto Frank falou no vídeo em
seu inglês com sotaque, “que fiquei surpreso com os pensamentos profundos que a
Anne tinha.” E então, de repente, estávamos nos beijando. Minha mão largou o
carrinho do oxigênio, segurou o pescoço do Joe, enquanto ele me puxou para cima
pela cintura, me deixando na ponta dos pés. Quando os lábios semiabertos dele
encontraram os meus, comecei a sentir uma falta de ar totalmente inédita e
fascinante. O espaço à nossa volta evaporou, e por um estranho momento me senti
bem no meu corpo; essa coisa estragada pelo câncer que eu tinha passado vários
anos arrastando de um lado para outro parecia, de repente, valer a pena, os
tubos no tórax e os PICCs e a incessante traição corporal dos tumores.
“A Anne que eu conhecia como filha era
bastante diferente. Ela nunca demonstrou esse tipo de sentimento interior”, o
Otto Frank continuou.
O beijo durou uma eternidade enquanto o Sr.
Frank falava atrás de mim.
“E a minha conclusão, na medida em que eu
mantinha boas relações com a Anne, é que a maioria dos pais não conhece de
verdade seus filhos.”
Eu me dei conta de que meus olhos estavam
fechados e os abri. O Joseph me encarava, seus olhos verdes mais próximos que
nunca, e atrás dele um grupo de pessoas tinha meio que se organizado em três
camadas de círculos à nossa volta. Eles estavam com raiva, pensei.
Horrorizados. Esses adolescentes, com seus hormônios, se agarrando debaixo de
um vídeo reproduzindo a voz exaurida de um ex-pai.
Eu me afastei do Joseph, e ele tascou um
beijo na minha testa enquanto eu olhava fixamente para meus Chuck Taylors. E
foi então que começaram a bater palmas. Todas as pessoas, todos aqueles
adultos, simplesmente começaram a bater palmas, e um deles até gritou: “Bravo!”,
com um sotaque europeu. O Joseph, sorridente, fez uma mesura. Rindo, fiz uma
ligeira reverência, o que provocou uma nova rodada de aplausos.
Descemos as escadas depois de deixar todos os
adultos passarem, e logo antes de chegarmos ao café (onde, por sorte, um
elevador nos levou até o térreo e à lojinha de suvenires) vimos algumas páginas
do diário da Anne, além de seu livro de citações ainda inédito, aberto numa
página de frases de Shakespeare. Quem é tão firme que não possa ser seduzido?,
ela escrevera.
* * *
A Lidewij nos deu uma carona de volta ao
Filosoof. Do lado de fora do hotel estava chuviscando, e o Joseph e eu ficamos
parados na calçada de paralelepípedos, nos ensopando aos poucos.
Joseph: “Você deve estar precisando
descansar.”
Eu: “Estou bem.”
Joseph: “Tá.” (Pausa.) “Em que você está
pensando?”
Eu: “Em você.”
Joseph: “O que tem eu?”
Eu: “Não sei mesmo qual preferir, / A beleza
das inflexões / Ou a das alusões, / O pássaro-preto assobiando / Ou só depois.”
Joseph: “Cara, você é sexy.”
Eu: “Nós poderíamos ir para o seu quarto.”
Joseph: “Já ouvi ideias piores.”
* * *
Nos esprememos no elevador minúsculo. Todas as
superfícies, inclusive o piso, eram cobertas de espelhos. Tivemos de puxar a
porta para fechar o elevador, e então aquela coisa velha foi rangendo devagar
até o segundo andar. Eu estava cansada, suada e com medo de a minha aparência e
o meu cheiro estarem horríveis, mas mesmo assim o beijei dentro daquele
cubículo. Aí ele se afastou um pouco, apontou para o espelho e disse:
— Veja: infinitas Demetrias.
— Alguns infinitos são maiores que outros —
falei pausadamente, imitando o Van Houten.
— Que palhaço! — o Joseph disse, e demorou
todo esse tempo, e mais ainda, para chegarmos ao segundo andar.
Por fim, o elevador parou num tranco. O Joseph
empurrou a porta espelhada para abri-la. Quando estava metade aberta, ele
estremeceu de dor e perdeu a pegada por um segundo.
— Você está bem? — perguntei.
Após um instante, ele respondeu:
— Estou, estou. É só a porta, que é meio
pesada, acho.
Ele a empurrou de novo e conseguiu abri-la, me
deixando sair primeiro, claro, mas aí eu não soube que direção seguir pelo
corredor e fiquei simplesmente ali, do lado de fora, e ele também, seu rosto
ainda transfigurado pela dor.
— Está tudo bem com você? — perguntei mais uma
vez.
— Só estou fora de forma, Demetria Lovato.
Está tudo ótimo.
Nós estávamos ali parados e ele não tomava a
iniciativa de ir para o quarto nem nada, e eu não sabia onde o quarto ficava, e
enquanto durava o impasse me convenci de que ele estava tentando descobrir uma
forma de não ficar comigo e de que, para início de conversa, eu nunca deveria
ter dado aquela ideia, que a iniciativa não deveria ter sido minha, daí a
repugnância dele, que só ficava me olhando, de pé, sem nem piscar, tentando
pensar num jeito de se desvencilhar educadamente da situação. E aí, depois do
que pareceu ser uma eternidade, ele falou:
— Fica acima do meu joelho, e vai afunilando
um pouco, e depois é só pele. Tem uma cicatriz horrenda, mas ela parece…
— O quê? — perguntei.
— A minha perna — ele respondeu. — Só para
você se preparar psicologicamente no caso de, quer dizer, no caso de você ver,
ou coisa ass…
— Ah, deixe de bobagem — falei, e andei os
dois passos necessários para chegar até ele.
Dei um beijo no Joseph, intenso, imprensando
seu corpo contra a parede, e continuei com o beijo enquanto ele vasculhava o
bolso à procura da chave do quarto.
* * *
Subimos lentamente na cama, minha liberdade um
pouco limitada pelo oxigênio, mas mesmo assim consegui ficar por cima dele e
tirar sua camisa. Senti o gosto do suor na pele abaixo da clavícula enquanto
sussurrava, a boca encostada nele:
— Joseph Jonas, eu te amo.
Seu corpo relaxou debaixo do meu quando ele me
ouviu dizer aquilo. Ele esticou o braço e tentou tirar a minha camiseta, mas
ela acabou enrolando no tubo. Eu ri.
* * *
— Como é que você faz isso todos os dias? —
ele perguntou enquanto eu desenrolava as coisas.
Tolamente, me dei conta de que minha calcinha
rosa não combinava com meu sutiã roxo, como se os garotos reparassem nisso. Eu
me enfiei debaixo das cobertas e tirei a calça jeans e as meias, e então fiquei
observando a dança do edredom enquanto, debaixo dele, o Joseph tirava primeiro
a calça jeans, depois a perna.
* * *
Estávamos deitados de costas, lado a lado,
escondidos sob as cobertas. Depois de um segundo, tateei à procura da coxa dele
e deixei minha mão seguir para baixo até o cotoco, a pele com a cicatriz
grossa. Segurei o cotoco por um tempo. Ele se encolheu.
— Dói? — perguntei.
— Não — ele respondeu.
Ele se virou de lado e me beijou.
— Você é muito sexy — falei, minha mão ainda
na perna.
— Estou começando a achar que você tem um
fetiche por amputados — ele retrucou, ainda me beijando.
Eu ri.
— Eu tenho um fetiche por Joseph Jonas —
expliquei.
* * *
A coisa toda foi exatamente o oposto do que eu
tinha imaginado: devagar, paciente, silenciosa e nem especialmente dolorosa nem
especialmente extasiante. Houve alguns problemas relacionados à camisinha, os
quais não perdi muito tempo observando. Nenhuma cabeceira foi quebrada. Nada de
gritos. Para ser sincera, aquela foi provavelmente a maior quantidade de tempo
que passamos juntos sem falar nada. Só uma coisa seguiu o protocolo: depois que
tudo terminou, enquanto eu descansava o rosto no peito dele, ouvindo seu
coração bater, o Joseph disse:
— Demetria Lovato, não consigo mais manter os
olhos abertos. Literalmente.
— Utilização incorreta da literalidade —
falei.
— Não — ele disse. — Tão. Cansado.
E virou o rosto para o outro lado, minha
orelha apertada contra o peito dele, ouvindo o ruído dos pulmões enquanto
entravam no ritmo do sono. Depois de um tempo me levantei, me vesti, achei um
papel de carta do Hotel Filosoof e escrevi um bilhete de amor para ele:
Querido Joseph,
Jovens de dezesseis anos com uma perna só
Da sua,
Demetria Lovato
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