Demetria.
Todos sabem que sou perfeita. Tenho
uma vida perfeita. Roupas perfeitas. Até minha família é sinônimo de perfeição.
E embora tudo seja uma completa mentira, me esforcei muito para manter as
aparências, para ser “perfeita” em todos os sentidos. Se soubessem da real,
minha imagem iria por água abaixo.
Parada em frente ao espelho do banheiro, com o som ligado no
último volume, corrijo, pela terceira vez, mais uma linha torta que tracei, sob
o olho. Droga! Minhas mãos estão tremendo. Começar o último ano do segundo grau
e reencontrar meu namorado, depois de ficarmos longe um do outro nas férias de
verão, não deveria ser tão estressante assim... Mas hoje o dia começou mal.
Primeiro, o meu modelador de cachos começou a soltar fumaça e logo parou de
funcionar. Depois, o botão da minha blusa predileta quebrou. E agora este
delineador resolveu que tem vontade própria!
Se eu pudesse escolher, ficaria em minha cama, bem
confortável, comendo biscoitos com gotas de chocolate, quentinhos, o dia todo.
— Venha, Demi!
Hum... Acho que ouvi minha mãe gritar, lá do hall.
Meu primeiro impulso é ignorá-la, mas isso nunca me traz nada
de bom, a não ser bronca, dor de cabeça... E mais gritos.
— Já vou! Só um minutinho — respondo, esperando conseguir
passar esse delineador direito e acabar logo com isso.
Por fim, acerto o traço, jogo o delineador no balcão da pia,
confiro minha imagem no espelho, uma, duas, três vezes. Desligo o som e desço
correndo para o hall.
Minha mãe está parada, aos pés da nossa esplêndida escadaria,
analisando meu visual. Endireito os ombros. Sim, eu sei... Tenho dezoito anos e
não deveria ligar para o que mamãe pensa... Mas não é você que mora aqui, na
casa dos Ellis.
Minha mãe sofre de ansiedade... Não do tipo facilmente
controlado por pequenas pílulas azuis. E, quando está estressada, todos os que
convivem com ela sofrem também. Vai ver que é por isso que meu pai sai para
trabalhar cedinho, antes que ela se levante: para não ter que lidar com...
bem... com ela.
— Odiei a calça, amei o cinto — diz minha mãe, apontando com
o indicador para cada uma das minhas peças de roupa. — E aquele barulho que
você chama de música estava me dando enxaqueca. Ainda bem que você desligou.
— Bom dia para você também, mãe — eu digo, antes de descer a
escada e dar-lhe um beijinho no rosto. Quanto mais me aproximo dela, mais meu
nariz sofre com o tormento do seu perfume forte. Minha mãe parece uma
milionária, em seu uniforme de tênis Blue Label, da Ralph Lauren.
Claro que ninguém poderia levantar sequer um dedo para criticar suas roupas.
— Comprei o muffin que você mais gosta, para o seu
primeiro dia de aula — ela anuncia, me mostrando um saquinho que tinha
escondido atrás das costas.
— Não quero, obrigada — eu digo, olhando em volta para ver se
acho minha irmã. — Cadê a Shelley?
— Na cozinha.
— A nova enfermeira já chegou?
— Seu nome é Baghda. E, não, ela só vai chegar dentro de uma
hora.
— Você já contou a Baghda que a lã irrita a pele de
Shelley... E que ela puxa os cabelos de quem está por perto, quando fica
nervosa?
Shelley sempre deixou claro, mesmo sem falar, que detesta o
contato da lã contra a pele. Puxar cabelos é sua nova mania que, aliás, já
causou alguns desastres... E desastres, em minha casa, são quase tão sérios
quanto um acidente de carro. Portanto, evitá-los é uma coisa crucial em nossas
vidas.
— Sim... E sim — responde minha mãe. — Dei uma bronca em sua
irmã, hoje cedo, Demetria. Se ela continuar desse jeito, perderemos mais uma
enfermeira.
Vou até a cozinha, pois não estou a fim de ouvir a lengalenga
de minha mãe, nem suas teorias sobre os motivos que levam Shelley a partir para
aqueles repentinos ataques.
Minha irmã está sentada à mesa, na cadeira de rodas, ocupada
em ingerir sua comida, que precisa ser especialmente preparada. Pois, apesar de
seus vinte e um anos, Shelley não consegue mastigar nem engolir, como fazem as
pessoas que não têm as mesmas limitações físicas que ela. Como de costume, a
comida acabou grudada em seu queixo, lábios e bochechas.
— Ei, Shell-Bell, minha Conchinha Barulhenta [Shell-Bell,
o apelido de Shelley, é um trocadilho com as palavras “shell”, que quer dizer
“concha”, e “beIl”, que significa “sino”. (N. de T.)] — digo, inclinando-me na direção dela para limpar seu rosto
com um guardanapo. — Hoje é o meu primeiro dia de aula. Não vai me desejar boa
sorte?
Desajeitadamente, Shelley estica os braços e sorri seu
sorrisinho torto... Como amo esse sorriso!
— Quer me dar um abraço? — pergunto, já sabendo a resposta.
Os médicos sempre nos dizem que quanto mais Shelley interagir com as pessoas,
melhor ela ficará.
Shelley responde “sim”, com a cabeça. Deixo-me envolver por
seu abraço, tomando cuidado para manter suas mãos longe do meu cabelo. Quando
me endireito, dou de cara com minha mãe, que está ofegante. Até parece um juiz
apitando, interrompendo minha vida por um momento, só para dizer:
— Demi, você não pode ir à escola assim.
— Assim... como?
Ela balança a cabeça, com um suspiro de frustração:
— Olhe só para a sua blusa.
Obedeço... E vejo uma grande mancha úmida, bem na frente de
minha blusa Calvin Klein branca. Ops! Baba da Shelley. Só de olhar para
o rosto tenso da minha irmã, capto a mensagem que ela não consegue expressar
facilmente, com palavras: Shelley sente muito. Shelley não queria sujar a
minha roupa.
— Não foi nada — digo a ela, apesar de saber, lá no fundo,
que a mancha acabou com meu visual “perfeito”.
Franzindo a testa, minha mãe umedece um papel-toalha, na pia,
e esfrega a mancha com ele. Quando ela faz essas coisas, eu me sinto como uma
criancinha de dois anos.
— Vá trocar de roupa.
— Mãe, é só pêssego — digo, com todo cuidado, para que essa
estória não vire uma gritaria daquelas. A última coisa que eu quero na vida é
deixar minha irmã se sentindo mal.
— Pêssego mancha. Você não quer que as pessoas pensem que não
se importa com sua aparência...
— Tudo bem.
Puxa, eu gostaria que minha mãe estivesse num de seus bons
dias... Dias em que ela não me enche com essas bobagens. Dou um beijo bem no
alto da cabeça da minha irmã, para mostrar a ela que não me incomodei, de jeito
nenhum, com sua baba.
— Vejo você depois da escola, Shell-Bell... — digo, tentando
manter a animação matinal — para terminar nosso jogo de damas.
Subo a escada correndo, agora de dois em dois degraus. Chego
ao meu quarto e olho o relógio... Oh, não! São sete e dez. Fiquei de dar uma
carona a Sierra, minha melhor amiga. E ela vai surtar se eu chegar atrasada.
Pego um lenço azul claro, no meu armário, e rezo para que dê certo... Se eu o
prender direito, talvez ninguém veja a mancha de baba.
Volto a descer a escada e lá está minha mãe, de novo,
analisando o meu visual...
— Amei o lenço.
Ufa!
Quando passo por minha mãe, ela me entrega o saquinho com o muffin:
— Para você comer no caminho.
Acabo aceitando. Enquanto caminho na
direção do meu carro, vou mordendo o muffin, distraída. Infelizmente,
não é de blueberry, meu sabor preferido. É de banana com nozes... E as
bananas passaram do ponto. É, esse muffin está bem parecido comigo: por
fora, aparentemente perfeita... Mas, por dentro, um verdadeiro mingau.
Chapter 2
Joe.
Acorde, Joe.
Faço uma careta para o meu mano caçula e cubro a cabeça com o
travesseiro. Tendo que dividir um quarto com dois irmãos, um de onze e outro de
quinze anos, não me resta outro jeito... Só mesmo o travesseiro pode me dar um
pouco de privacidade.
— Ah, me deixe em paz, Frankie — eu digo. — Não enche.
— Não estou enchendo... A mãe me mandou acordar você. Se não,
você vai chegar atrasado.
Último ano do colégio. Eu deveria estar orgulhoso, já que
serei o primeiro membro da família Fuentes a ter um diploma do curso
secundário. Mas, depois da formatura, a vida real vai começar... Faculdade, só
em sonhos. Para mim, este último ano será como uma festa para um cara que vai
se aposentar aos sessenta e cinco anos de idade. Ou seja: você sabe que poderia
continuar... Mas todo mundo espera que você vá embora.
A voz de Frankie, cheia de orgulho, chega abafada aos meus
ouvidos, pois ainda continuo com o travesseiro na cabeça:
— Estou de roupa nova, da cabeça aos pés. As ninãs não
vão resistir a este garanhão latino.
— Sorte sua — eu resmungo.
— A mãe disse que, se você não acordar, eu posso virar esta
jarra de água na sua cabeça.
Um pouco de privacidade... É pedir muito? Atiro o
travesseiro, que atravessa o quarto... E acerto em cheio. A água espirra em
Frankie.
— Seu vagabundo! — Ele grita. — Estas são as únicas
roupas novas que eu tenho!
Escuto uma gargalhada. Junto à porta do quarto, Josh, meu
outro irmão, está rindo como uma hiena surtada. Isto é, até Frankie pular em
cima dele. Vejo a luta ficando séria, quase fora de controle, enquanto meus
irmãos trocam socos e pontapés.
“Os meninos são bons de briga”, penso, com orgulho, vendo os
dois se esmurrando. Como o homem da casa, tenho o dever de acabar com a coisa.
Pego Josh pelo colarinho, mas tropeço na perna de Frankie e acabo caindo, com
os dois.
Antes que eu possa recuperar o equilíbrio, sinto a água
gelada em minhas costas. Virando rapidamente, deparo com minha mãe, de balde em
punho, dando um banho geral em todos nós. Ela já está de uniforme. Minha mãe
trabalha no supermercado do bairro, a poucos quarteirões da nossa casa. Ganha
uma mixaria, mas, também, não precisamos de muito.
— Levantem-se — ela manda, com muita raiva e vigor.
— Pô, mãe — Josh reclama, erguendo-se.
Ela mergulha a mão na água que ainda resta, no balde, e
borrifa no rosto de Josh. Frankie ri, antes de receber seu bocado também. Será
que algum dia vão aprender?
— Mais alguma reclamação, Frankie? — ela pergunta.
— Não, senhora — diz Frankie, em posição de sentido,
como um soldado.
— E você, Josh... Tem mais algum palavrão querendo sair dessa
boca? — ela mergulha a mão na água, de novo, como um aviso.
— Não, senhora — repete o soldado número 2...
— E quanto a você, Joseph? — Seus olhos são duas fendas
estreitas, focadas em mim.
— O quê? Eu só estava tentando separar esses dois — digo,
inocentemente, dando-lhe o meu melhor sorriso, como se dissesse: “Você não
pode resistir a mim.”
Ela borrifa uns pingos d’água em meu rosto:
— Isso é por não ter acabado com a briga, antes. Agora,
tratem de se vestir, todos vocês. E venham tomar o café da manhã, antes de ir
para a escola.
Tanto esforço com meu sorriso irresistível... para isso!
— Você nos ama... E sabe disso muito bem — eu digo, enquanto
ela sai.
Depois de um banho rápido, volto para o quarto, com uma
toalha na cintura. Vejo Frankie com um dos meus lenços na cabeça, fico furioso
e o arranco de um puxão:
— Nunca toque nos meus lenços.
— Por que não? — ele pergunta, com ar de inocência nos
profundos olhos castanhos.
Para Frankie, isso é só um lenço... Para mim, é um símbolo do
que é e do que jamais será. Como explicar isso a um garoto de onze anos? Ele
sabe quem sou. Não é segredo para ninguém que o lenço traz as cores da gangue Sangue
Latino. Entrei na Sangue porque queria dar o troco, queria me
vingar. E agora não há como sair. Mas nem morto eu deixaria meu irmão entrar
nessa. Enrolo o lenço no pulso e digo:
— Frankie, não mexa nas minhas coisas... Especialmente nas
minhas coisas da Sangue.
— Gosto de vermelho e preto.
Era só o que faltava!
— Se eu pegar você com isso, outra vez, vou deixar umas
manchas azuis e pretas, bem esportivas, pelo seu corpo... Entendeu, irmãozinho?
Ele dá de ombros:
— Tudo bem. Entendi.
Frankie sai do quarto, com aquele seu jeito de andar
gingando... E eu me pergunto se ele realmente compreende. Mas resolvo não
pensar mais no assunto. Abro o armário, escolho uma camiseta preta e um velho
jeans desbotado. Enquanto amarro o lenço na cabeça, escuto minha mãe gritando,
da cozinha:
— Joseph, venha comer antes que esfrie. Depressa!
— Já vou — eu respondo. Nunca entenderei por que as refeições
são tão importantes para ela.
Meus irmãos estão ocupados, devorando o café da manhã, quando
entro na cozinha. Abro a geladeira e dou uma olhada no que tem...
— Sente-se.
— Mãe, eu vou só pegar...
— Você não vai pegar nada, Joseph. Somos uma família e vamos
comer todos juntos.
Com um suspiro, fecho a porta da geladeira e me sento ao lado
de Josh. Ser membro de uma família unida às vezes tem suas desvantagens. Minha
mãe coloca um prato cheio de tortillas e ovos, diante de mim.
— Por que a senhora não me chama de Joe? — pergunto, olhando
para a comida à minha frente.
— Se eu quisesse fazer isso, não teria batizado você de
Joseph. Qual é o problema? Você não gosta do seu nome?
A pergunta me deixa tenso. Recebi esse nome em homenagem a
meu pai, que morreu quando eu era menino, deixando-me a responsabilidade de ser
o homem da casa. Joseph, Joseph Jr., Junior... Para mim, tanto faz.
— Isso importa? — eu resmungo, pegando uma tortilla.
Ergo os olhos, tentando avaliar a reação de minha mãe, que
está de costas para mim, lavando louça na pia.
— Não — ela responde.
— Joe quer se fingir de branco — Josh se intromete.
— Cale a boca — eu aviso. — Não quero ser branco. Mas também
não quero que pensem que sou igual a meu pai.
— Ei, por favor — pede nossa mãe. — Chega de brigas, por
hoje.
Josh cantarola “Mojado” [Em Espanhol, “Molhado” — uma alusão a “Wetback”, gíria e termo
pejorativo, referente a imigrantes ilegais, mexicanos ou de outros países
latino-americanos. Referia-se, originalmente, aos mexicanos que entravam no
Texas, através do Rio Grande. Daí o termo “wet” (molhado) + “back” (costas).
(N. de T.)], provocando-me com
uma referência aos imigrantes ilegais.
Já aguentei o suficiente, de Josh; agora ele foi longe
demais. Levanto-me, arrastando a cadeira. Josh também se ergue e me encara,
bloqueando minha passagem. Ele sabe o quanto posso ser durão.
Qualquer dia, seu ego exagerado ainda vai metê-lo em
apuros... E com a pessoa errada.
— Sente-se, Josh — minha mãe ordena.
— Mexicano sujo, comedor de feijão! — Josh me xinga, forçando
um profundo sotaque. — Pior ainda: você é um bandido... Um marginal de gangue!
— Josh! — minha mãe repreende, severamente, avançando para
ele.
Mas fico entre os dois e pego meu irmão pela gola da camisa.
— Sim, isso é tudo o que as pessoas vão pensar de mim — eu
digo. — Continue falando esse monte de besteiras, e elas vão pensar isso de
você, também.
— Mano, as pessoas sempre vão pensar assim, de qualquer
jeito. Se eu quero, ou não, tanto faz.
— Você está enganado, Josh. — Eu o solto. — Você pode ser bem
melhor...
— Do que você?
— Sim, melhor do que eu, e você sabe disso muito bem. Agora,
peça desculpas à nossa mãe, por falar assim na frente dela.
Josh me olha nos olhos... E vê que não estou brincando.
— Desculpe, mãe — ele diz e volta a se sentar.
Mantenho meus olhos nos dele, enquanto seu ego vai a nocaute.
Virando-se de costas para nós, minha mãe abre a geladeira, tentando ocultar as
lágrimas. Puxa, ela se preocupa com Josh. Ele está começando o segundo ano...
Durante os próximos dois anos, ou ele se apruma... Ou se acaba de uma vez.
Pego minha jaqueta preta, de couro; preciso dar o fora daqui.
Beijo minha mãe no rosto e peço desculpas por arruinar seu café da manhã.
Saio de casa, pensando em como farei para manter Josh e
Frankie longe do meu caminho, enquanto tento guiá-los para um caminho melhor.
Ah, que ironia, tudo isso.
Na rua, rapazes usando lenços com as mesmas cores que eu
fazem o sinal da gangue Sangue Latino, batendo a mão direita duas vezes
no braço esquerdo, com o dedo anular dobrado.
Minhas veias se incendeiam quando respondo a saudação, antes
de montar em minha moto. Os caras esperam que eu seja durão e frio, um membro
de gangue... E é isso que dou a eles. Inventei um espetáculo infernal, para o
mundo exterior... Tão infernal, que às vezes até eu me surpreendo.
— Joe, espere!
Uma voz familiar me chama. Ashley Greene Sanchez, minha
vizinha e ex-namorada, corre em minha direção.
— Oi, Ashley — eu resmungo.
— Que tal me dar uma carona até o colégio?
Sua minissaia preta mostra pernas incríveis; a blusa é justa,
realçando os seios pequenos e firmes. Houve um tempo em que eu faria qualquer
coisa por essa garota. Mas isso foi no verão, antes de eu pegá-la com outro
cara, na cama... Ou melhor: no carro, como de fato foi.
— Vamos, Joe. Prometo que não mordo... A não ser que você me
peça.
Ashley é minha parceira, na Sangue Latino. Se somos um
casal, ou não, já não importa. Ainda nos apoiamos mutuamente. Este é nosso
código de honra.
— Venha — eu digo.
Ashley monta na garupa e, deliberadamente, segura em minhas
coxas enquanto se gruda ao meu traseiro... O que não causa o efeito que ela provavelmente
esperava. Se Ashley pensa que vou esquecer o passado... Que nada! De jeito
nenhum. Minha história me define.
Tento me concentrar no aqui e agora: o ano letivo que começa,
meu último no Colégio Fairfield. É difícil porque, após a formatura, meu futuro
provavelmente será tão miserável quanto o passado.
Chapter 3
Demetria.
Dirigindo meu novo conversível prateado pela Vine Street, rumo
ao Colégio Fairfield, comento com Selena, minha melhor amiga:
— Sempre que desço a capota deste carro, meu cabelo fica todo
arrepiado... Como se eu tivesse passado pelo centro de um ciclone!
“Aparência é tudo”: meus pais me ensinaram esse lema, que
rege minha vida. Foi só por isso que não comentei nada sobre o BMW, este
extravagante presente de aniversário que meu pai me deu, duas semanas atrás.
— Moramos a meia hora de distância da Cidade dos Ventos — diz
Selena, mantendo a mão contra o vento, enquanto nos deslocamos. — Chicago não é
exatamente famosa por seu clima ameno. Além do mais, Demi, você parece uma
deusa grega, loura, de cabelos rebeldes... Só está um pouco nervosa, porque vai
rever Colin.
Meu olhar passeia pelo painel do carro, até um porta-retratos
em forma de coração, com minha foto e a de Colin.
— Um verão inteiro à distância faz as pessoas mudarem.
— A distância torna a paixão mais intensa — Selena replica. —
Você é a líder da torcida e, ele, o capitão do principal time de futebol do
colégio. Vocês dois têm que dar certo... Senão, os planetas do sistema solar
vão acabar se desalinhando.
Durante o verão, Colin me ligou algumas vezes, da cabana de
sua família, onde foi passar férias com os amigos. Mas não sei em que pé está,
agora, o nosso relacionamento. Colin só voltou ontem à noite.
— Adoro esses jeans — diz Selena, olhando minha calça
desbotada, made in Brasil. — Vou pedir emprestado, bem antes do que você
imagina.
— Minha mãe detesta jeans, principalmente este — respondo,
parando num semáforo e ajeitando os cabelos, tentando domar meus cachos louros.
— Ela acha que parece roupa comprada em brechó.
— E você não contou a ela que vintage está na moda?
— Contei, mas você acha que ela ouviu? Mal prestou atenção
quando perguntei sobre a nova enfermeira de Shelley...
Ninguém entende como são as coisas, lá em casa. Felizmente,
posso contar com Selena. Ela pode até não entender, mas tem paciência para me
ouvir e sabe manter segredo sobre minha vida familiar. Além de Colin, Selena é
a única pessoa que conhece minha irmã.
— O que aconteceu com a outra enfermeira? — ela pergunta,
abrindo minha caixa de CDs.
— Shelley arrancou um punhado de cabelos dela.
— Uiii!
Entro numa vaga, no estacionamento do colégio, com a mente
mais concentrada em minha irmã do que no local onde estou. Dou de cara com um
rapaz e uma garota, numa motocicleta. Freio bruscamente e os pneus “cantam”.
Pensei que a vaga estivesse vazia.
— Ei, você não enxerga por onde anda, sua cadela?! —
grita Ashley Greene, a garota na garupa da moto, com a mão direita fechada e só
o dedo médio erguido. Obviamente, ela perdeu a palestra sobre a boa educação no
trânsito.
— Desculpe — eu digo, elevando a voz para ser ouvida, apesar
do rugido da moto. — Pensei que o lugar estivesse vago.
Só então percebo de quem é essa moto em que quase bati. O
piloto se vira... Olhos escuros, furiosos. Lenço vermelho e preto na cabeça. Eu
me afundo atrás do volante, tanto quanto posso.
— Droga! — digo, estremecendo. — É Joe Fuentes!
— Meu Deus, Demi! — diz Selena, em voz baixa. — Eu quero
estar viva, para ver a nossa formatura. Vamos dar o fora daqui, antes que ele
resolva matar nós duas.
Joe me lança um olhar diabólico, enquanto desce o descanso da
moto, com o pé. Será que ele vai me encarar? Tento engatar a ré, movendo
freneticamente a haste do câmbio, para trás e para frente. Não é nenhuma
surpresa que meu pai tenha me comprado um carro de transmissão manual, sem ter
tempo de me ensinar como funciona a coisa. Joe avança. O instinto me diz para
abandonar o carro e fugir, como se ele estivesse preso nos trilhos e um trem
viesse em minha direção. Olho rápido para Selena, que remexe na bolsa
desesperadamente, como se procurasse alguma coisa. Ela só pode estar brincando!
— Não consigo achar a ré na droga deste carro. Preciso de
ajuda. O que você está procurando? — pergunto.
— Eu? Nada... Estou só tentando evitar um contato visual com
um cara da Sangue Latino — diz Selena, entre os dentes. — Vamos,
mexa-se, garota. Além do mais, eu só sei dirigir carros com transmissão
automática.
Finalmente consigo engatar a ré e recuo, com os pneus
cantando alto, enquanto procuro outra vaga para estacionar. Depois de deixar o
carro no setor oeste, bem longe de um certo membro de uma certa gangue, cuja
reputação assustaria até o mais violento jogador de futebol de Fairfield,
Selena e eu começamos a subir a escadaria que leva à entrada principal do
colégio. Para nosso azar, Joe Fuentes e seus amigos da gangue estão bem ali,
junto à porta.
— Passe direto — diz Selena, baixinho. — E, principalmente,
não olhe nos olhos deles.
Mas é bem difícil fazer isso, quando Joe Fuentes se aproxima,
bloqueando meu caminho.
Que oração se deve rezar, no momento em que a gente sabe que
vai morrer?
— Você é uma péssima motorista — diz Joe, com seu leve
sotaque latino, a voz grave e a postura típica de quem diz: “Eu Sou o Cara.”
Joe até pode parecer um modelo da Abercrombie, com
esse corpo espetacular e esse rosto perfeito. Mas, pelo seu jeito e sua pose,
parece antes ter saído de um arquivo da polícia.
Meninos e meninas da zona norte não se misturam com meninos e
meninas da zona sul. Não pense que nos achamos melhores do que eles... Apenas,
somos diferentes. Crescemos na mesma cidade, mas em lados totalmente opostos.
Vivemos em grandes casas, à margem do Lago Michigan, enquanto eles vivem à
margem dos trilhos de trem.
Nós somos, parecemos, falamos, agimos e nos vestimos de modo
distinto. Não digo que isso seja bom ou mau... É apenas a maneira como as
coisas são, em Fairfield. E, sinceramente, a maioria das meninas da zona sul me
tratam como Ashley Greene fez, me odeiam por ser quem sou... Ou melhor: quem
elas pensam que sou.
O olhar de Joe passeia lentamente por meu corpo,
percorrendo-me inteira, antes de voltar ao meu rosto. Não é a primeira vez que
um garoto me observa de cima a baixo. Só que nunca vi alguém fazer isso, tão
descaradamente, como Joe. E, assim, tão de perto... Posso até sentir meu rosto
corando.
— Na próxima vez, tente guiar de olhos abertos — diz ele,
numa voz fria e controlada. — É bom a gente olhar por onde anda, entende?
Joe Fuentes está tentando me intimidar. É um verdadeiro
profissional, nisso. Mas não vou deixar que me vença, nesse joguinho de
intimidação. Não vou, mesmo me sentindo assim, petrificada de medo. Dando de
ombros, olho para ele com desdém, o mesmo desdém que uso para afastar pessoas
indesejáveis, e respondo:
— Agradeço a dica.
— Se estiver precisando de um verdadeiro homem, para
ensiná-la a dirigir, posso lhe dar umas lições.
As vaias e assovios dos parceiros de Joe fazem meu sangue
ferver.
— Se você fosse um homem de verdade, abriria a porta para
mim, em vez de bloquear meu caminho — digo, admirada com minha resposta ferina,
embora meus joelhos ameacem dobrar-se.
Joe recua alguns passos, abre a porta e se inclina, como se
fosse meu mordomo. Está zombando de mim... Ele sabe disso, eu sei disso, todos
sabem disso. Olho de relance para Selena, que continua remexendo
desesperadamente na bolsa, à procura de nada. Selena é totalmente sem noção.
— Vá cuidar da sua vida — eu digo a Joe.
— Assim como você cuida da sua? — ele reage, asperamente. —
Pois vou lhe contar uma coisa, otária: sua vida não é real, é falsa... Assim
como você.
— Antes isso, do que viver como um perdedor — eu rebato,
esperando que minhas palavras firam Joe tanto quanto as dele me feriram.
Puxo Selena pelo braço, empurrando-a em direção à porta
aberta. Vaias e comentários nos acompanham, enquanto entramos no colégio.
Finalmente, solto a respiração que estava presa... E então me viro para Selena.
— Demi! — Minha melhor amiga me encara com os olhos
arregalados. — Você está querendo morrer, ou algo assim?
— Por que Joe Fuentes se dá o direito de intimidar todo
mundo?
— Bem... Talvez por causa da arma que ele traz escondida, nas
calças... Ou das cores da Sangue Latino — diz Selena, destilando
sarcasmo em cada palavra.
— Joe não é tão estúpido, a ponto de trazer uma arma para a
escola — eu argumento. — E me recuso a ser intimidada por ele, ou por qualquer
outra pessoa...
Ao menos aqui, no colégio, o único lugar onde posso manter
minha fachada de “perfeição”... E todo mundo acredita.
De repente, excitada pelo fato de estar iniciando meu último
ano em Fairfield, seguro Selena pelos ombros:
— Estamos no último ano do segundo grau! — digo, com o mesmo
entusiasmo que uso quando comando a torcida, durante os jogos de futebol.
— E daí?
— Daí que, a partir de agora, tudo vai ser per-fei-to.
O sinal toca... E não é exatamente o som convencional, desde
que os estudantes votaram, no ano passado, pela substituição do sinal comum por
trechos de músicas, nos intervalos entre as aulas. Agora, está tocando Summer
Lovin’, da trilha sonora de Grease. Selena começa a caminhar pelo corredor.
— Vou cuidar para que você tenha um funeral per-fei-to, Demi,
com flores e tudo o mais.
— Quem morreu? — pergunta alguém, atrás de mim.
Eu me viro... E ali está Colin, com os cabelos louros ainda mais
claros, por conta do sol de verão, e um sorriso tão largo, que ocupa quase todo
o seu rosto. Eu gostaria de ter um espelho para ver o estado da minha maquiagem.
Mas com certeza Cody vai me convidar para sair, mesmo se ela estiver borrada,
não é mesmo? Corro para lhe dar o maior abraço do mundo...
Ele me envolve em seus braços, me beija suavemente, nos
lábios. Então se afasta um pouquinho e torna a perguntar:
— Quem morreu?
— Ninguém — eu respondo. — Esqueça isso. Esqueça tudo,
lembre-se apenas de que estamos juntos.
— Isso é fácil... Ainda mais quando você está assim, tão
gata.
Colin volta a me beijar.
— Peço desculpas por não ter ligado ontem, Demi. Foi uma
loucura, havia muita bagagem para descarregar e tudo o mais... Você sabe.
Eu sorrio, feliz, porque apesar de termos passado o verão
separados, nosso relacionamento não mudou. O sistema solar está seguro, ao
menos por enquanto.
Colin me enlaça pelos ombros e a porta da frente se abre. Joe
e seus amigos irrompem por ela, como se estivessem ali para cometer um assalto.
— Por que eles insistem em vir ao colégio? — Colin murmura,
para que somente eu escute. — De qualquer jeito, metade deles provavelmente vai
cair fora, antes que o ano termine.
Meus olhos rapidamente encontram os de Joe... E um calafrio
me percorre a espinha.
— Quase bati na moto de Joe Fuentes, nesta manhã — eu conto a
Colin, já que Joe não pode nos ouvir.
— Quase? Pena que você não acertou.
— Colin! — eu o repreendo.
— Ao menos nosso primeiro dia de aula teria alguma emoção.
Este colégio é terrivelmente entediante.
Entediante?
Quase sofri um acidente, uma garota da zona sul me fez um
gesto obsceno, um membro de uma gangue perigosa me desafiou... Se isso foi uma
amostra do que me espera, neste último ano, bem... Eu diria que o Colégio
Fairfield pode ser tudo, menos entediante.
~*~
Postei 3 capítulos pra vocês entenderem melhor a estória (:
Comentem, por favor.
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