quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Chapter 1 / Chapter 2 / Chapter 3


Demetria.

Todos sabem que sou perfeita. Tenho uma vida perfeita. Roupas perfeitas. Até minha família é sinônimo de perfeição. E embora tudo seja uma completa mentira, me esforcei muito para manter as aparências, para ser “perfeita” em todos os sentidos. Se soubessem da real, minha imagem iria por água abaixo.
Parada em frente ao espelho do banheiro, com o som ligado no último volume, corrijo, pela terceira vez, mais uma linha torta que tracei, sob o olho. Droga! Minhas mãos estão tremendo. Começar o último ano do segundo grau e reencontrar meu namorado, depois de ficarmos longe um do outro nas férias de verão, não deveria ser tão estressante assim... Mas hoje o dia começou mal. Primeiro, o meu modelador de cachos começou a soltar fumaça e logo parou de funcionar. Depois, o botão da minha blusa predileta quebrou. E agora este delineador resolveu que tem vontade própria!
Se eu pudesse escolher, ficaria em minha cama, bem confortável, comendo biscoitos com gotas de chocolate, quentinhos, o dia todo.
— Venha, Demi!
Hum... Acho que ouvi minha mãe gritar, lá do hall.
Meu primeiro impulso é ignorá-la, mas isso nunca me traz nada de bom, a não ser bronca, dor de cabeça... E mais gritos.
— Já vou! Só um minutinho — respondo, esperando conseguir passar esse delineador direito e acabar logo com isso.
Por fim, acerto o traço, jogo o delineador no balcão da pia, confiro minha imagem no espelho, uma, duas, três vezes. Desligo o som e desço correndo para o hall.
Minha mãe está parada, aos pés da nossa esplêndida escadaria, analisando meu visual. Endireito os ombros. Sim, eu sei... Tenho dezoito anos e não deveria ligar para o que mamãe pensa... Mas não é você que mora aqui, na casa dos Ellis.
Minha mãe sofre de ansiedade... Não do tipo facilmente controlado por pequenas pílulas azuis. E, quando está estressada, todos os que convivem com ela sofrem também. Vai ver que é por isso que meu pai sai para trabalhar cedinho, antes que ela se levante: para não ter que lidar com... bem... com ela.
— Odiei a calça, amei o cinto — diz minha mãe, apontando com o indicador para cada uma das minhas peças de roupa. — E aquele barulho que você chama de música estava me dando enxaqueca. Ainda bem que você desligou.
— Bom dia para você também, mãe — eu digo, antes de descer a escada e dar-lhe um beijinho no rosto. Quanto mais me aproximo dela, mais meu nariz sofre com o tormento do seu perfume forte. Minha mãe parece uma milionária, em seu uniforme de tênis Blue Label, da Ralph Lauren. Claro que ninguém poderia levantar sequer um dedo para criticar suas roupas.
— Comprei o muffin que você mais gosta, para o seu primeiro dia de aula — ela anuncia, me mostrando um saquinho que tinha escondido atrás das costas.
— Não quero, obrigada — eu digo, olhando em volta para ver se acho minha irmã. — Cadê a Shelley?
— Na cozinha.
— A nova enfermeira já chegou?
— Seu nome é Baghda. E, não, ela só vai chegar dentro de uma hora.
— Você já contou a Baghda que a lã irrita a pele de Shelley... E que ela puxa os cabelos de quem está por perto, quando fica nervosa?
Shelley sempre deixou claro, mesmo sem falar, que detesta o contato da lã contra a pele. Puxar cabelos é sua nova mania que, aliás, já causou alguns desastres... E desastres, em minha casa, são quase tão sérios quanto um acidente de carro. Portanto, evitá-los é uma coisa crucial em nossas vidas.
— Sim... E sim — responde minha mãe. — Dei uma bronca em sua irmã, hoje cedo, Demetria. Se ela continuar desse jeito, perderemos mais uma enfermeira.
Vou até a cozinha, pois não estou a fim de ouvir a lengalenga de minha mãe, nem suas teorias sobre os motivos que levam Shelley a partir para aqueles repentinos ataques.
Minha irmã está sentada à mesa, na cadeira de rodas, ocupada em ingerir sua comida, que precisa ser especialmente preparada. Pois, apesar de seus vinte e um anos, Shelley não consegue mastigar nem engolir, como fazem as pessoas que não têm as mesmas limitações físicas que ela. Como de costume, a comida acabou grudada em seu queixo, lábios e bochechas.
— Ei, Shell-Bell, minha Conchinha Barulhenta [Shell-Bell, o apelido de Shelley, é um trocadilho com as palavras “shell”, que quer dizer “concha”, e “beIl”, que significa “sino”. (N. de T.)] — digo, inclinando-me na direção dela para limpar seu rosto com um guardanapo. — Hoje é o meu primeiro dia de aula. Não vai me desejar boa sorte?
Desajeitadamente, Shelley estica os braços e sorri seu sorrisinho torto... Como amo esse sorriso!
— Quer me dar um abraço? — pergunto, já sabendo a resposta. Os médicos sempre nos dizem que quanto mais Shelley interagir com as pessoas, melhor ela ficará.
Shelley responde “sim”, com a cabeça. Deixo-me envolver por seu abraço, tomando cuidado para manter suas mãos longe do meu cabelo. Quando me endireito, dou de cara com minha mãe, que está ofegante. Até parece um juiz apitando, interrompendo minha vida por um momento, só para dizer:
— Demi, você não pode ir à escola assim.
— Assim... como?
Ela balança a cabeça, com um suspiro de frustração:
— Olhe só para a sua blusa.
Obedeço... E vejo uma grande mancha úmida, bem na frente de minha blusa Calvin Klein branca. Ops! Baba da Shelley. Só de olhar para o rosto tenso da minha irmã, capto a mensagem que ela não consegue expressar facilmente, com palavras: Shelley sente muito. Shelley não queria sujar a minha roupa.
— Não foi nada — digo a ela, apesar de saber, lá no fundo, que a mancha acabou com meu visual “perfeito”.
Franzindo a testa, minha mãe umedece um papel-toalha, na pia, e esfrega a mancha com ele. Quando ela faz essas coisas, eu me sinto como uma criancinha de dois anos.
— Vá trocar de roupa.
— Mãe, é só pêssego — digo, com todo cuidado, para que essa estória não vire uma gritaria daquelas. A última coisa que eu quero na vida é deixar minha irmã se sentindo mal.
— Pêssego mancha. Você não quer que as pessoas pensem que não se importa com sua aparência...
— Tudo bem.
Puxa, eu gostaria que minha mãe estivesse num de seus bons dias... Dias em que ela não me enche com essas bobagens. Dou um beijo bem no alto da cabeça da minha irmã, para mostrar a ela que não me incomodei, de jeito nenhum, com sua baba.
— Vejo você depois da escola, Shell-Bell... — digo, tentando manter a animação matinal — para terminar nosso jogo de damas.
Subo a escada correndo, agora de dois em dois degraus. Chego ao meu quarto e olho o relógio... Oh, não! São sete e dez. Fiquei de dar uma carona a Sierra, minha melhor amiga. E ela vai surtar se eu chegar atrasada. Pego um lenço azul claro, no meu armário, e rezo para que dê certo... Se eu o prender direito, talvez ninguém veja a mancha de baba.
Volto a descer a escada e lá está minha mãe, de novo, analisando o meu visual...
— Amei o lenço.
Ufa!
Quando passo por minha mãe, ela me entrega o saquinho com o muffin:
— Para você comer no caminho.
Acabo aceitando. Enquanto caminho na direção do meu carro, vou mordendo o muffin, distraída. Infelizmente, não é de blueberry, meu sabor preferido. É de banana com nozes... E as bananas passaram do ponto. É, esse muffin está bem parecido comigo: por fora, aparentemente perfeita... Mas, por dentro, um verdadeiro mingau.

Chapter 2

Joe.

Acorde, Joe.
Faço uma careta para o meu mano caçula e cubro a cabeça com o travesseiro. Tendo que dividir um quarto com dois irmãos, um de onze e outro de quinze anos, não me resta outro jeito... Só mesmo o travesseiro pode me dar um pouco de privacidade.
— Ah, me deixe em paz, Frankie — eu digo. — Não enche.
— Não estou enchendo... A mãe me mandou acordar você. Se não, você vai chegar atrasado.
Último ano do colégio. Eu deveria estar orgulhoso, já que serei o primeiro membro da família Fuentes a ter um diploma do curso secundário. Mas, depois da formatura, a vida real vai começar... Faculdade, só em sonhos. Para mim, este último ano será como uma festa para um cara que vai se aposentar aos sessenta e cinco anos de idade. Ou seja: você sabe que poderia continuar... Mas todo mundo espera que você vá embora.
A voz de Frankie, cheia de orgulho, chega abafada aos meus ouvidos, pois ainda continuo com o travesseiro na cabeça:
— Estou de roupa nova, da cabeça aos pés. As ninãs não vão resistir a este garanhão latino.
— Sorte sua — eu resmungo.
— A mãe disse que, se você não acordar, eu posso virar esta jarra de água na sua cabeça.
Um pouco de privacidade... É pedir muito? Atiro o travesseiro, que atravessa o quarto... E acerto em cheio. A água espirra em Frankie.
Seu vagabundo! — Ele grita. — Estas são as únicas roupas novas que eu tenho!
Escuto uma gargalhada. Junto à porta do quarto, Josh, meu outro irmão, está rindo como uma hiena surtada. Isto é, até Frankie pular em cima dele. Vejo a luta ficando séria, quase fora de controle, enquanto meus irmãos trocam socos e pontapés.
“Os meninos são bons de briga”, penso, com orgulho, vendo os dois se esmurrando. Como o homem da casa, tenho o dever de acabar com a coisa. Pego Josh pelo colarinho, mas tropeço na perna de Frankie e acabo caindo, com os dois.
Antes que eu possa recuperar o equilíbrio, sinto a água gelada em minhas costas. Virando rapidamente, deparo com minha mãe, de balde em punho, dando um banho geral em todos nós. Ela já está de uniforme. Minha mãe trabalha no supermercado do bairro, a poucos quarteirões da nossa casa. Ganha uma mixaria, mas, também, não precisamos de muito.
— Levantem-se — ela manda, com muita raiva e vigor.
— Pô, mãe — Josh reclama, erguendo-se.
Ela mergulha a mão na água que ainda resta, no balde, e borrifa no rosto de Josh. Frankie ri, antes de receber seu bocado também. Será que algum dia vão aprender?
— Mais alguma reclamação, Frankie? — ela pergunta.
— Não, senhora — diz Frankie, em posição de sentido, como um soldado.
— E você, Josh... Tem mais algum palavrão querendo sair dessa boca? — ela mergulha a mão na água, de novo, como um aviso.
— Não, senhora — repete o soldado número 2...
— E quanto a você, Joseph? — Seus olhos são duas fendas estreitas, focadas em mim.
— O quê? Eu só estava tentando separar esses dois — digo, inocentemente, dando-lhe o meu melhor sorriso, como se dissesse: “Você não pode resistir a mim.”
Ela borrifa uns pingos d’água em meu rosto:
— Isso é por não ter acabado com a briga, antes. Agora, tratem de se vestir, todos vocês. E venham tomar o café da manhã, antes de ir para a escola.
Tanto esforço com meu sorriso irresistível... para isso!
— Você nos ama... E sabe disso muito bem — eu digo, enquanto ela sai.
Depois de um banho rápido, volto para o quarto, com uma toalha na cintura. Vejo Frankie com um dos meus lenços na cabeça, fico furioso e o arranco de um puxão:
— Nunca toque nos meus lenços.
— Por que não? — ele pergunta, com ar de inocência nos profundos olhos castanhos.
Para Frankie, isso é só um lenço... Para mim, é um símbolo do que é e do que jamais será. Como explicar isso a um garoto de onze anos? Ele sabe quem sou. Não é segredo para ninguém que o lenço traz as cores da gangue Sangue Latino. Entrei na Sangue porque queria dar o troco, queria me vingar. E agora não há como sair. Mas nem morto eu deixaria meu irmão entrar nessa. Enrolo o lenço no pulso e digo:
— Frankie, não mexa nas minhas coisas... Especialmente nas minhas coisas da Sangue.
— Gosto de vermelho e preto.
Era só o que faltava!
— Se eu pegar você com isso, outra vez, vou deixar umas manchas azuis e pretas, bem esportivas, pelo seu corpo... Entendeu, irmãozinho?
Ele dá de ombros:
— Tudo bem. Entendi.
Frankie sai do quarto, com aquele seu jeito de andar gingando... E eu me pergunto se ele realmente compreende. Mas resolvo não pensar mais no assunto. Abro o armário, escolho uma camiseta preta e um velho jeans desbotado. Enquanto amarro o lenço na cabeça, escuto minha mãe gritando, da cozinha:
— Joseph, venha comer antes que esfrie. Depressa!
— Já vou — eu respondo. Nunca entenderei por que as refeições são tão importantes para ela.
Meus irmãos estão ocupados, devorando o café da manhã, quando entro na cozinha. Abro a geladeira e dou uma olhada no que tem...
— Sente-se.
— Mãe, eu vou só pegar...
— Você não vai pegar nada, Joseph. Somos uma família e vamos comer todos juntos.
Com um suspiro, fecho a porta da geladeira e me sento ao lado de Josh. Ser membro de uma família unida às vezes tem suas desvantagens. Minha mãe coloca um prato cheio de tortillas e ovos, diante de mim.
— Por que a senhora não me chama de Joe? — pergunto, olhando para a comida à minha frente.
— Se eu quisesse fazer isso, não teria batizado você de Joseph. Qual é o problema? Você não gosta do seu nome?
A pergunta me deixa tenso. Recebi esse nome em homenagem a meu pai, que morreu quando eu era menino, deixando-me a responsabilidade de ser o homem da casa. Joseph, Joseph Jr., Junior... Para mim, tanto faz.
— Isso importa? — eu resmungo, pegando uma tortilla.
Ergo os olhos, tentando avaliar a reação de minha mãe, que está de costas para mim, lavando louça na pia.
— Não — ela responde.
— Joe quer se fingir de branco — Josh se intromete.
— Cale a boca — eu aviso. — Não quero ser branco. Mas também não quero que pensem que sou igual a meu pai.
— Ei, por favor — pede nossa mãe. — Chega de brigas, por hoje.
Josh cantarola “Mojado” [Em Espanhol, “Molhado” — uma alusão a “Wetback”, gíria e termo pejorativo, referente a imigrantes ilegais, mexicanos ou de outros países latino-americanos. Referia-se, originalmente, aos mexicanos que entravam no Texas, através do Rio Grande. Daí o termo “wet” (molhado) + “back” (costas). (N. de T.)], provocando-me com uma referência aos imigrantes ilegais.
Já aguentei o suficiente, de Josh; agora ele foi longe demais. Levanto-me, arrastando a cadeira. Josh também se ergue e me encara, bloqueando minha passagem. Ele sabe o quanto posso ser durão.
Qualquer dia, seu ego exagerado ainda vai metê-lo em apuros... E com a pessoa errada.
— Sente-se, Josh — minha mãe ordena.
— Mexicano sujo, comedor de feijão! — Josh me xinga, forçando um profundo sotaque. — Pior ainda: você é um bandido... Um marginal de gangue!
— Josh! — minha mãe repreende, severamente, avançando para ele.
Mas fico entre os dois e pego meu irmão pela gola da camisa.
— Sim, isso é tudo o que as pessoas vão pensar de mim — eu digo. — Continue falando esse monte de besteiras, e elas vão pensar isso de você, também.
— Mano, as pessoas sempre vão pensar assim, de qualquer jeito. Se eu quero, ou não, tanto faz.
— Você está enganado, Josh. — Eu o solto. — Você pode ser bem melhor...
— Do que você?
— Sim, melhor do que eu, e você sabe disso muito bem. Agora, peça desculpas à nossa mãe, por falar assim na frente dela.
Josh me olha nos olhos... E vê que não estou brincando.
— Desculpe, mãe — ele diz e volta a se sentar.
Mantenho meus olhos nos dele, enquanto seu ego vai a nocaute. Virando-se de costas para nós, minha mãe abre a geladeira, tentando ocultar as lágrimas. Puxa, ela se preocupa com Josh. Ele está começando o segundo ano... Durante os próximos dois anos, ou ele se apruma... Ou se acaba de uma vez.
Pego minha jaqueta preta, de couro; preciso dar o fora daqui. Beijo minha mãe no rosto e peço desculpas por arruinar seu café da manhã.
Saio de casa, pensando em como farei para manter Josh e Frankie longe do meu caminho, enquanto tento guiá-los para um caminho melhor. Ah, que ironia, tudo isso.
Na rua, rapazes usando lenços com as mesmas cores que eu fazem o sinal da gangue Sangue Latino, batendo a mão direita duas vezes no braço esquerdo, com o dedo anular dobrado.
Minhas veias se incendeiam quando respondo a saudação, antes de montar em minha moto. Os caras esperam que eu seja durão e frio, um membro de gangue... E é isso que dou a eles. Inventei um espetáculo infernal, para o mundo exterior... Tão infernal, que às vezes até eu me surpreendo.
— Joe, espere!
Uma voz familiar me chama. Ashley Greene Sanchez, minha vizinha e ex-namorada, corre em minha direção.
— Oi, Ashley — eu resmungo.
— Que tal me dar uma carona até o colégio?
Sua minissaia preta mostra pernas incríveis; a blusa é justa, realçando os seios pequenos e firmes. Houve um tempo em que eu faria qualquer coisa por essa garota. Mas isso foi no verão, antes de eu pegá-la com outro cara, na cama... Ou melhor: no carro, como de fato foi.
— Vamos, Joe. Prometo que não mordo... A não ser que você me peça.
Ashley é minha parceira, na Sangue Latino. Se somos um casal, ou não, já não importa. Ainda nos apoiamos mutuamente. Este é nosso código de honra.
— Venha — eu digo.
Ashley monta na garupa e, deliberadamente, segura em minhas coxas enquanto se gruda ao meu traseiro... O que não causa o efeito que ela provavelmente esperava. Se Ashley pensa que vou esquecer o passado... Que nada! De jeito nenhum. Minha história me define.
Tento me concentrar no aqui e agora: o ano letivo que começa, meu último no Colégio Fairfield. É difícil porque, após a formatura, meu futuro provavelmente será tão miserável quanto o passado.

Chapter 3

Demetria.


Dirigindo meu novo conversível prateado pela Vine Street, rumo ao Colégio Fairfield, comento com Selena, minha melhor amiga:
— Sempre que desço a capota deste carro, meu cabelo fica todo arrepiado... Como se eu tivesse passado pelo centro de um ciclone!
“Aparência é tudo”: meus pais me ensinaram esse lema, que rege minha vida. Foi só por isso que não comentei nada sobre o BMW, este extravagante presente de aniversário que meu pai me deu, duas semanas atrás.
— Moramos a meia hora de distância da Cidade dos Ventos — diz Selena, mantendo a mão contra o vento, enquanto nos deslocamos. — Chicago não é exatamente famosa por seu clima ameno. Além do mais, Demi, você parece uma deusa grega, loura, de cabelos rebeldes... Só está um pouco nervosa, porque vai rever Colin.
Meu olhar passeia pelo painel do carro, até um porta-retratos em forma de coração, com minha foto e a de Colin.
— Um verão inteiro à distância faz as pessoas mudarem.
— A distância torna a paixão mais intensa — Selena replica. — Você é a líder da torcida e, ele, o capitão do principal time de futebol do colégio. Vocês dois têm que dar certo... Senão, os planetas do sistema solar vão acabar se desalinhando.
Durante o verão, Colin me ligou algumas vezes, da cabana de sua família, onde foi passar férias com os amigos. Mas não sei em que pé está, agora, o nosso relacionamento. Colin só voltou ontem à noite.
— Adoro esses jeans — diz Selena, olhando minha calça desbotada, made in Brasil. — Vou pedir emprestado, bem antes do que você imagina.
— Minha mãe detesta jeans, principalmente este — respondo, parando num semáforo e ajeitando os cabelos, tentando domar meus cachos louros. — Ela acha que parece roupa comprada em brechó.
— E você não contou a ela que vintage está na moda?
— Contei, mas você acha que ela ouviu? Mal prestou atenção quando perguntei sobre a nova enfermeira de Shelley...
Ninguém entende como são as coisas, lá em casa. Felizmente, posso contar com Selena. Ela pode até não entender, mas tem paciência para me ouvir e sabe manter segredo sobre minha vida familiar. Além de Colin, Selena é a única pessoa que conhece minha irmã.
— O que aconteceu com a outra enfermeira? — ela pergunta, abrindo minha caixa de CDs.
— Shelley arrancou um punhado de cabelos dela.
— Uiii!
Entro numa vaga, no estacionamento do colégio, com a mente mais concentrada em minha irmã do que no local onde estou. Dou de cara com um rapaz e uma garota, numa motocicleta. Freio bruscamente e os pneus “cantam”. Pensei que a vaga estivesse vazia.
— Ei, você não enxerga por onde anda, sua cadela?! — grita Ashley Greene, a garota na garupa da moto, com a mão direita fechada e só o dedo médio erguido. Obviamente, ela perdeu a palestra sobre a boa educação no trânsito.
— Desculpe — eu digo, elevando a voz para ser ouvida, apesar do rugido da moto. — Pensei que o lugar estivesse vago.
Só então percebo de quem é essa moto em que quase bati. O piloto se vira... Olhos escuros, furiosos. Lenço vermelho e preto na cabeça. Eu me afundo atrás do volante, tanto quanto posso.
— Droga! — digo, estremecendo. — É Joe Fuentes!
— Meu Deus, Demi! — diz Selena, em voz baixa. — Eu quero estar viva, para ver a nossa formatura. Vamos dar o fora daqui, antes que ele resolva matar nós duas.
Joe me lança um olhar diabólico, enquanto desce o descanso da moto, com o pé. Será que ele vai me encarar? Tento engatar a ré, movendo freneticamente a haste do câmbio, para trás e para frente. Não é nenhuma surpresa que meu pai tenha me comprado um carro de transmissão manual, sem ter tempo de me ensinar como funciona a coisa. Joe avança. O instinto me diz para abandonar o carro e fugir, como se ele estivesse preso nos trilhos e um trem viesse em minha direção. Olho rápido para Selena, que remexe na bolsa desesperadamente, como se procurasse alguma coisa. Ela só pode estar brincando!
— Não consigo achar a ré na droga deste carro. Preciso de ajuda. O que você está procurando? — pergunto.
— Eu? Nada... Estou só tentando evitar um contato visual com um cara da Sangue Latino — diz Selena, entre os dentes. — Vamos, mexa-se, garota. Além do mais, eu só sei dirigir carros com transmissão automática.
Finalmente consigo engatar a ré e recuo, com os pneus cantando alto, enquanto procuro outra vaga para estacionar. Depois de deixar o carro no setor oeste, bem longe de um certo membro de uma certa gangue, cuja reputação assustaria até o mais violento jogador de futebol de Fairfield, Selena e eu começamos a subir a escadaria que leva à entrada principal do colégio. Para nosso azar, Joe Fuentes e seus amigos da gangue estão bem ali, junto à porta.
— Passe direto — diz Selena, baixinho. — E, principalmente, não olhe nos olhos deles.
Mas é bem difícil fazer isso, quando Joe Fuentes se aproxima, bloqueando meu caminho.
Que oração se deve rezar, no momento em que a gente sabe que vai morrer?
— Você é uma péssima motorista — diz Joe, com seu leve sotaque latino, a voz grave e a postura típica de quem diz: “Eu Sou o Cara.”
Joe até pode parecer um modelo da Abercrombie, com esse corpo espetacular e esse rosto perfeito. Mas, pelo seu jeito e sua pose, parece antes ter saído de um arquivo da polícia.
Meninos e meninas da zona norte não se misturam com meninos e meninas da zona sul. Não pense que nos achamos melhores do que eles... Apenas, somos diferentes. Crescemos na mesma cidade, mas em lados totalmente opostos. Vivemos em grandes casas, à margem do Lago Michigan, enquanto eles vivem à margem dos trilhos de trem.
Nós somos, parecemos, falamos, agimos e nos vestimos de modo distinto. Não digo que isso seja bom ou mau... É apenas a maneira como as coisas são, em Fairfield. E, sinceramente, a maioria das meninas da zona sul me tratam como Ashley Greene fez, me odeiam por ser quem sou... Ou melhor: quem elas pensam que sou.
O olhar de Joe passeia lentamente por meu corpo, percorrendo-me inteira, antes de voltar ao meu rosto. Não é a primeira vez que um garoto me observa de cima a baixo. Só que nunca vi alguém fazer isso, tão descaradamente, como Joe. E, assim, tão de perto... Posso até sentir meu rosto corando.
— Na próxima vez, tente guiar de olhos abertos — diz ele, numa voz fria e controlada. — É bom a gente olhar por onde anda, entende?
Joe Fuentes está tentando me intimidar. É um verdadeiro profissional, nisso. Mas não vou deixar que me vença, nesse joguinho de intimidação. Não vou, mesmo me sentindo assim, petrificada de medo. Dando de ombros, olho para ele com desdém, o mesmo desdém que uso para afastar pessoas indesejáveis, e respondo:
— Agradeço a dica.
— Se estiver precisando de um verdadeiro homem, para ensiná-la a dirigir, posso lhe dar umas lições.
As vaias e assovios dos parceiros de Joe fazem meu sangue ferver.
— Se você fosse um homem de verdade, abriria a porta para mim, em vez de bloquear meu caminho — digo, admirada com minha resposta ferina, embora meus joelhos ameacem dobrar-se.
Joe recua alguns passos, abre a porta e se inclina, como se fosse meu mordomo. Está zombando de mim... Ele sabe disso, eu sei disso, todos sabem disso. Olho de relance para Selena, que continua remexendo desesperadamente na bolsa, à procura de nada. Selena é totalmente sem noção.
— Vá cuidar da sua vida — eu digo a Joe.
— Assim como você cuida da sua? — ele reage, asperamente. — Pois vou lhe contar uma coisa, otária: sua vida não é real, é falsa... Assim como você.
— Antes isso, do que viver como um perdedor — eu rebato, esperando que minhas palavras firam Joe tanto quanto as dele me feriram.
Puxo Selena pelo braço, empurrando-a em direção à porta aberta. Vaias e comentários nos acompanham, enquanto entramos no colégio. Finalmente, solto a respiração que estava presa... E então me viro para Selena.
— Demi! — Minha melhor amiga me encara com os olhos arregalados. — Você está querendo morrer, ou algo assim?
— Por que Joe Fuentes se dá o direito de intimidar todo mundo?
— Bem... Talvez por causa da arma que ele traz escondida, nas calças... Ou das cores da Sangue Latino — diz Selena, destilando sarcasmo em cada palavra.
— Joe não é tão estúpido, a ponto de trazer uma arma para a escola — eu argumento. — E me recuso a ser intimidada por ele, ou por qualquer outra pessoa...
Ao menos aqui, no colégio, o único lugar onde posso manter minha fachada de “perfeição”... E todo mundo acredita.
De repente, excitada pelo fato de estar iniciando meu último ano em Fairfield, seguro Selena pelos ombros:
— Estamos no último ano do segundo grau! — digo, com o mesmo entusiasmo que uso quando comando a torcida, durante os jogos de futebol.
— E daí?
— Daí que, a partir de agora, tudo vai ser per-fei-to.
O sinal toca... E não é exatamente o som convencional, desde que os estudantes votaram, no ano passado, pela substituição do sinal comum por trechos de músicas, nos intervalos entre as aulas. Agora, está tocando Summer Lovin’, da trilha sonora de Grease. Selena começa a caminhar pelo corredor.
— Vou cuidar para que você tenha um funeral per-fei-to, Demi, com flores e tudo o mais.
— Quem morreu? — pergunta alguém, atrás de mim.
Eu me viro... E ali está Colin, com os cabelos louros ainda mais claros, por conta do sol de verão, e um sorriso tão largo, que ocupa quase todo o seu rosto. Eu gostaria de ter um espelho para ver o estado da minha maquiagem. Mas com certeza Cody vai me convidar para sair, mesmo se ela estiver borrada, não é mesmo? Corro para lhe dar o maior abraço do mundo...
Ele me envolve em seus braços, me beija suavemente, nos lábios. Então se afasta um pouquinho e torna a perguntar:
— Quem morreu?
— Ninguém — eu respondo. — Esqueça isso. Esqueça tudo, lembre-se apenas de que estamos juntos.
— Isso é fácil... Ainda mais quando você está assim, tão gata.
Colin volta a me beijar.
— Peço desculpas por não ter ligado ontem, Demi. Foi uma loucura, havia muita bagagem para descarregar e tudo o mais... Você sabe.
Eu sorrio, feliz, porque apesar de termos passado o verão separados, nosso relacionamento não mudou. O sistema solar está seguro, ao menos por enquanto.
Colin me enlaça pelos ombros e a porta da frente se abre. Joe e seus amigos irrompem por ela, como se estivessem ali para cometer um assalto.
— Por que eles insistem em vir ao colégio? — Colin murmura, para que somente eu escute. — De qualquer jeito, metade deles provavelmente vai cair fora, antes que o ano termine.
Meus olhos rapidamente encontram os de Joe... E um calafrio me percorre a espinha.
— Quase bati na moto de Joe Fuentes, nesta manhã — eu conto a Colin, já que Joe não pode nos ouvir.
— Quase? Pena que você não acertou.
— Colin! — eu o repreendo.
— Ao menos nosso primeiro dia de aula teria alguma emoção. Este colégio é terrivelmente entediante.
Entediante?
Quase sofri um acidente, uma garota da zona sul me fez um gesto obsceno, um membro de uma gangue perigosa me desafiou... Se isso foi uma amostra do que me espera, neste último ano, bem... Eu diria que o Colégio Fairfield pode ser tudo, menos entediante.

~*~

Postei 3 capítulos pra vocês entenderem melhor a estória (:
Comentem, por favor.

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