terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Capítulo XXIII, XXIV e XXV (Ultimo)


The Fault In Our Stars

Alguns dias depois, me levantei por volta do meio-dia e fui de carro até a casa do Nicholas. Ele mesmo veio abrir a porta.
— Minha mãe levou o Frankie ao cinema — ele disse.
— Nós deveríamos fazer alguma coisa — falei.
— Essa alguma coisa pode ser jogar videogames para cegos no sofá?
— É, essa é exatamente a alguma coisa que eu tinha em mente.
Então ficamos sentados ali umas duas horas juntos, falando com a tela, navegando por uma caverna labiríntica invisível sem um lúmen de luz sequer. A parte mais divertida do jogo era, de longe, tentar fazer o computador estabelecer um diálogo engraçado com a gente:
Eu: “Encoste na parede da caverna.”
Computador: “Você encosta na parede da caverna. Ela está úmida.”
Nicholas: “Lamba a parede da caverna.”
Computador: “Não compreendo. Fale de novo?”
Eu: “Dê um amasso na parede úmida da caverna.”
Computador: “Você tenta dar um passo. Você bate com a cabeça.”
Nicholas: “Não é dê um passo. É DÊ UM AMASSO.”
Computador: “Não compreendo.”
Nicholas: “Cara, eu tenho estado sozinho nesta caverna escura há várias semanas e preciso me aliviar. DÊ UM AMASSO NA PAREDE DA CAVERNA.”
Computador: “Sua tentativa de dar um pass…”
Eu: “Pressione a pélvis contra a parede da caverna.”
Computador: “Não com…”
Nicholas: “Faça amor com a caverna.”
Computador: “Não com…”
Eu: “TÁ BEM. Siga pelo ramo esquerdo.”
Computador: “Você segue pelo ramo esquerdo. A passagem se estreita.”
Eu: “Engatinhe.”
Computador: “Você engatinha noventa metros. A passagem se estreita.”
Eu: “Rasteje como uma cobra.”
Computador: “Você rasteja como uma cobra por trinta metros. Um fio de água percorre seu corpo. Você alcança um monte de pedrinhas que bloqueiam o caminho.”
Eu: “Posso dar um amasso na caverna agora?”
Computador: “Você não pode dar um passo sem ficar de pé primeiro.”
Nicholas: “Eu não gosto de viver num mundo sem o Joseph Jonas.”
Computador: “Não compreendo…”
Nicholas: “Eu também não. Pausa.”

* * *

Ele largou o controle no sofá, entre nós dois, e perguntou:
— Você sabe se ele sofreu, e tal?
— Acho que fez um esforço enorme para respirar — falei — e acabou ficando inconsciente, mas parece que, é, não foi muito legal nem nada. Morrer é uma droga.
— É — o Nicholas falou. E, depois de algum tempo: — É que parece tão impossível…
— Acontece o tempo todo — falei.
— Você está com raiva — ele disse.
— É.
Nós dois ficamos ali sentados por um bom tempo, numa boa, e eu fiquei pensando no início de tudo no Coração Literal de Jesus, quando o Joe nos disse que tinha medo do esquecimento e eu falei que ele estava com medo de algo universal e inevitável, e que, na verdade, o problema não é o sofrimento nem o esquecimento em si, mas a ausência imoral de sentido nisso tudo, o niilismo absolutamente inumano do sofrimento.
Pensei no meu pai me dizendo que o universo quer ser notado. Mas o que nós queremos é ser notados pelo universo, fazer com que o universo dê alguma bola para o que acontece com a gente — não a ideia coletiva de vida senciente, mas cada um de nós, como indivíduos.
— O Joe amava você de verdade, sabe — ele falou.
— Sei.
— Ele não conseguia parar de falar nisso.
— Eu sei.
— Era irritante.
— Eu não achava irritante — falei.
— Ele chegou a te dar aquela coisa que ele estava escrevendo?
— Que coisa?
— A continuação, ou sei lá o quê, daquele livro que você gostava.
Eu me virei para o Nicholas.
— O quê?
— Ele disse que estava escrevendo alguma coisa para você, mas que não era bom escritor.
— Quando foi que ele disse isso?
— Sei lá. Foi, tipo, em algum momento depois da volta de Amsterdã.
— Em que momento? — pressionei-o.
Será que Joe não teve a chance de completar? Será que tinha terminado e deixado no computador ou algo assim?
— Humm — o Nicholas suspirou. — Humm. Não sei. Nós falamos disso aqui, uma vez. Ele estava aqui, tipo… é, nós mexemos na minha máquina de e-mails e eu tinha acabado de receber um e-mail da minha avó. Posso procurar na máquina se você…
— Tá, tá, cadê?

* * *

Ele tinha falado daquilo um mês atrás. Um mês! Não um bom mês, devo reconhecer, mas ainda assim um mês. Era tempo suficiente para ter conseguido escrever pelo menos alguma coisa. Ainda havia algo dele, ou pelo menos feito por ele, flutuando por aí. E eu precisava daquilo.
— Vou até a casa dele — falei para o Nicholas.
Andei apressada até a minivan e arrastei o carrinho do oxigênio para o banco do carona. Liguei o carro. Uma batida de hip-hop começou a tocar alto no som e, quando estiquei a mão para mudar de estação, alguém começou a cantarolar um rap. Em sueco.
Eu me virei e gritei quando vi o Van Houten no banco de trás.
— Peço desculpas por alarmá-la — o Peter Van Houten disse, sua voz se misturando com o som do rap.
Ele ainda estava com o terno que tinha usado no enterro, quase uma semana depois. Seu cheiro era de quem tinha álcool saindo pelos poros junto com o suor.
— Você pode ficar com o CD — ele disse. — É o Snook. Na Suécia ele é um dos maiores….
— Ai ai ai ai SAIA DO MEU CARRO.
Desliguei o rádio.
— Este carro é da sua mãe, se bem entendi — ele disse. — Além disso, não estava trancado.
— Ai, meu Deus! Saia do carro senão vou chamar a polícia. Cara, qual é o seu problema?
— Se pelo menos houvesse só um — ele divagou. — Só estou aqui para pedir desculpas. Você estava certa quando observou, anteriormente, que sou um homem patético e dependente do álcool. Uma conhecida minha só passava algum tempo comigo porque eu a pagava para fazê-lo. E o pior é que ela se demitiu, deixando-me, a alma rara que não consegue companhia nem mediante suborno. É tudo verdade, Demetria. Tudo isso e muito mais.
— Tá — falei.
Teria sido um discurso mais tocante se ele não tivesse engrolado as palavras.
— Você me lembra a Anna.
— Eu lembro muita gente a muita gente — respondi. — Realmente preciso ir.
— É só dirigir — ele disse.
— Saia.
— Não. Você me lembra a Anna — ele disse de novo.
Depois de um segundo, engatei a marcha à ré e comecei a andar com o carro. Eu não estava conseguindo fazê-lo sair, e não precisava continuar tentando. Iria até a casa do Joe e os pais do Joe o fariam ir embora.
— Obviamente você está familiarizada — o Van Houten disse — com Antonietta Meo.
— Não — falei.
Liguei o rádio e o hip-hop sueco tocou alto, mas o Van Houten gritou mais alto ainda.
— Ela poderá se tornar, em breve, a santa não mártir mais jovem a ser beatificada pela Igreja Católica. Teve o mesmo câncer que o Sr. Jonas, osteossarcoma. Eles amputaram a perna direita dela. A dor era excruciante. Enquanto Antonietta Meo estava à beira da morte, na tenra idade de seis anos, por causa desse câncer agonizante, disse para o pai: “A dor é como um tecido. Quanto mais forte, mais valioso.” Isso é verdade, Demetria?
Eu não estava olhando diretamente para ele, mas para seu reflexo no espelho.
— Não — gritei mais alto que a música. — Isso é bobagem.
— Mas você não gostaria que fosse verdade? — ele gritou em resposta.
Eu desliguei o som.
— Sinto muito por ter estragado sua viagem. Vocês eram tão jovens… Vocês eram…
Ele começou a chorar. Como se tivesse algum direito de chorar pela morte do Joe. O Van Houten era apenas mais um dos diversos pranteadores que não o conheciam, mais um lamento que chegou tarde demais em seu mural.
— Você não estragou nossa viagem, seu filho da mãe convencido. Nossa viagem foi maravilhosa.
— Estou tentando — ele disse. — Estou tentando, juro.
Foi mais ou menos nessa hora que acabei me dando conta de que o Peter Van Houten tinha perdido alguém da família. Pensei na honestidade com a qual ele havia escrito a respeito de crianças com câncer; no fato de não ter conseguido falar comigo e só perguntado se eu tinha me vestido como a Anna de propósito; toda aquela baboseira que ele jogou para cima de mim e do Joseph; a pergunta dolorosa dele sobre a relação entre a gravidade da dor e seu valor. Ele chegou o corpo para trás e continuou sentado, bebendo, um velho que vinha bebendo havia vários anos. Lembrei de uma estatística que preferia não conhecer: metade dos casamentos terminam no ano que se segue à morte de um filho. Olhei para trás, para o Van Houten. Eu estava percorrendo a Avenida College, aí encostei atrás de uma fileira de carros estacionados e perguntei.
— Você teve um filho que morreu?
— Minha filha — ele disse. — Tinha oito anos. Sofreu lindamente. Nunca será beatificada.
— Ela teve leucemia? — perguntei.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Como a Anna — falei.
— Sim, exatamente como a Anna.
— Você era casado?
— Não. Bem, não quando ela morreu. Eu me tornei uma pessoa insuportável muito antes de nós a perdermos. A tristeza não nos muda, Demetria. Ela nos revela.
— Você morava com ela?
— Não, não no início, embora no fim nós a tenhamos levado para Nova York, onde eu estava morando, para uma série de torturas experimentais que aumentaram o sofrimento de seus dias sem aumentá-los em número.
Depois de um segundo, eu falei:
— Então é como se você tivesse dado a ela uma segunda vida na qual conseguiu chegar à adolescência.
— Suponho que essa seja uma avaliação razoável — ele disse, e então logo acrescentou:
— Presumo que você esteja familiarizada com o exercício mental de Philippa Foot intitulado “dilema do bonde”?
— E aí eu apareço na sua casa, vestida como a menina que você esperava que ela viveria para se tornar, e você fica, tipo, desconcertado.
— Em determinada linha, há um bonde desgovernado — ele disse.
— Não dou a mínima para o seu exercício mental idiota — falei.
— É o exercício da Philippa Foot, na verdade.
— Bem, nem para o dela.
— Ela não entendia por que aquilo estava acontecendo — ele disse. — Tive de contar para ela que iria morrer. A assistente social falou que eu precisava contar. Precisei lhe dizer que iria morrer, então falei que ela iria para o céu. Ela perguntou se eu estaria lá, então respondi que não, não naquele momento. Mas algum dia, ela quis saber, e prometi que sim, claro, muito em breve. E falei que naquele ínterim haveria uma ótima família lá em cima que tomaria conta dela. Ela me perguntou quando eu iria para lá, e respondi que seria logo. Vinte e dois anos atrás.
— Sinto muito.
— Eu também.
Depois de um tempo, perguntei:
— O que aconteceu com a mãe dela?
Ele sorriu.
— Você ainda está em busca de uma continuação, sua danadinha.
Sorri também.
— Você deveria voltar para casa — falei para ele. — Fique sóbrio. Escreva outro livro. Faça aquilo no qual você é bom. Nem todo mundo tem essa sorte de ser bom em alguma coisa. Ele ficou olhando fixamente para mim pelo espelho durante um bom tempo.
— Certo — ele disse. — Está bem. Você tem razão. Você tem razão. Mas, mesmo ao dizer isso, tirou do bolso a garrafa de uísque quase vazia. Bebeu, recolocou a tampa na garrafa e abriu a porta.
— Tchau, Demetria. — Fique bem, Van Houten.
Ele se sentou no meio-fio atrás do carro. Enquanto eu o via encolher pelo espelho retrovisor, ele pegou a garrafa e por um instante pareceu que iria deixá-la no meio-fio. Mas então tomou outro gole.

* * *

Era uma tarde quente em Indianápolis, o ar carregado e estático como se estivéssemos dentro de uma nuvem. Era o pior tipo de ar para mim, e tentei me convencer de que era só o ar quando a caminhada da entrada de veículos até a porta da casa do Joe pareceu infinita. Toquei a campainha e a mãe dele abriu a porta.
— Ah, Demetria — ela disse, e me abraçou chorando.
Ela me fez acompanhá-la e ao pai do Joe comendo um pouco de lasanha de berinjela — acho que muita gente tinha levado comida até lá, e tal.
— Como você está?
— Sinto falta dele.
— É.
Eu não sabia bem o que dizer. Tudo o que queria era ir lá embaixo e procurar o que quer que ele tivesse escrito para mim. Além disso, o silêncio naquele ambiente realmente me incomodava. Queria que eles estivessem conversando um com o outro, se consolando ou de mãos dadas ou sei lá. Mas eles só ficavam lá sentados, comendo porções muito pequenas de lasanha, sem nem se dirigir o olhar.
— O céu precisava de um anjo — o pai dele disse depois de um tempo.
— Eu sei — falei.
Aí as irmãs dele e seus filhos bagunceiros chegaram e invadiram a cozinha. Eu me levantei e as abracei, e depois fiquei vendo as crianças correrem pela cozinha com seu excesso extremamente necessário de barulho e movimento, moléculas excitadas se chocando umas contra as outras e gritando:
Tá com você não tá com você não estava comigo mas aí eu peguei você você não me pegou você nem chegou a encostar em mim então estou pegando você agora não seu bundão porque agora nós estamos dando um tempo DANIEL NÃO CHAME SEU IRMÃO DE BUNDÃO Mãe se eu não posso dizer essa palavra por que você acabou de falar bundão bundão — e então, em coro, bundão bundão bundão bundão, e, à mesa, os pais do Joe estavam agora de mãos dadas, o que me fez sentir um pouco melhor.
— O Nicholas me disse que o Joe estava escrevendo uma coisa, uma coisa para mim — falei.
As crianças ainda estavam cantando o melô do bundão.
— Podemos dar uma olhada no computador dele — a mãe do Joe disse.
— Ele não usou muito o computador nas últimas semanas — falei.
— É verdade. Não tenho nem certeza se o trouxemos aqui para cima. Ainda está no porão, Paul?
— Não faço ideia.
— Bem — falei —, será que posso…
Fiz um gesto com a cabeça na direção do porão.
— Ainda não estamos preparados — o pai dele disse. — Mas, claro que sim, Demetria. É claro que você pode.

* * *

Andei até lá embaixo, passei pela cama desarrumada, pelas poltronas do videogame abaixo da TV. O computador dele ainda estava ligado. Cliquei no mouse para ativá-lo e então procurei pelos arquivos editados mais recentemente. Nada no último mês. A coisa mais recente era uma resenha do livro O olho mais azul, de Toni Morrison.
Talvez ele tivesse escrito algo à mão. Andei até as prateleiras de livros, procurando um diário ou bloco ou caderno. Nada. Folheei o exemplar dele do Uma aflição imperial. O Joe não havia deixado uma marquinha sequer no livro. Em seguida andei até a mesa de cabeceira. Mayhem infinito, o nono volume da série “O preço do alvorecer”, estava em cima da mesa ao lado do abajur, a página 138 com uma orelha dobrada.
Ele nem conseguiu chegar ao fim do livro.
— Para acabar com o suspense: o Mayhem sobrevive — falei alto, caso ele conseguisse me ouvir.
E aí eu deitei na cama desarrumada, me enrolando no edredom como um casulo, me envolvendo no cheiro dele. Tirei a cânula para poder sentir melhor aquele cheiro, inspirando e expirando o Joe, o aroma já se dissipando mesmo enquanto eu ainda estava deitada lá, meu peito queimando até eu não poder diferenciar as dores.
Eu me sentei na cama depois de um tempo, reinseri minha cânula e respirei por alguns minutos antes de subir as escadas. Só o que fiz foi balançar a cabeça negativamente em resposta aos olhares de expectativa dos pais dele. As crianças passaram por mim correndo. Uma das irmãs do Joe, eu não sabia ainda dizer quem era quem, falou:
— Mãe, você quer que eu os leve para o parque ou algo assim?
— Não, não, está tudo bem.
— Há algum outro lugar no qual o Joe possa ter colocado um bloco ou caderno? Tipo, ao lado da cama de hospital, quem sabe? A cama já tinha sido retirada de lá, como requisitado pelo hospital.
— Demetria — o pai dele falou —, você esteve aqui conosco todos os dias… ele não ficava muito tempo sozinho, querida. Não teria tido tempo de escrever nada. Sei que você quer… Quero isso também. Mas as mensagens que ele nos deixa agora estão vindo lá de cima, Demetria.
Ele apontou para o teto, como se o Joe estivesse pairando sobre a casa. Talvez estivesse. Não sei. Mas não conseguia sentir a presença dele.
— É — falei.
Prometi visitá-los novamente dali a alguns dias.
Nunca mais senti o cheiro dele de novo.

Capítulo XXIV

Três dias depois, no terceiro dia DG, o pai do Joe me ligou de manhã. Eu ainda estava conectada ao BiPAP, por isso não atendi, mas ouvi o recado deixado na caixa postal assim que o celular apitou avisando do recebimento.
“Demetria, oi, aqui é o pai do Joe. Eu achei um Moleskine preto no revisteiro que estava do lado da cama de hospital, acho que próximo o suficiente para ele alcançá-lo. Infelizmente não há nada escrito nele. As páginas estão todas em branco. Mas as primeiras, acho que umas três ou quatro, foram arrancadas. Vasculhamos a casa toda à procura delas, mas não as encontramos. Por isso não sei o que pensar. Mas talvez fosse a essas páginas que o Nicholas estava se referindo. De qualquer forma, espero que esteja bem. Você está em nossas orações todos os dias, Demetria. Então, tá. Um beijo. Tchau.”
Três ou quatro páginas arrancadas de um Moleskine e que não estavam mais na casa do Joseph Jonas. Onde ele as teria deixado para mim? Presas com fita adesiva nos Ossos Maneiros? Não, ele não estava em condições de ir até lá. O Coração Literal de Jesus. Talvez ele tivesse deixado as páginas lá para mim no seu Último Dia Bom.
Por causa disso, saí para ir ao Grupo de Apoio no dia seguinte vinte minutos mais cedo. Fui dirigindo até a casa do Nicholas, ele entrou no carro e nós seguimos para o Coração Literal de Jesus com as janelas da minivan abertas, ouvindo o novo álbum do The Hectic Glow, recentemente disponibilizado na rede. Que o Joe nunca ouviria.
Pegamos o elevador. Guiei o Nicholas até uma cadeira na Roda da Esperança e depois fui percorrendo vagarosamente todo o Coração Literal. Olhei em todos os lugares: debaixo das cadeiras, em volta do púlpito atrás do qual eu tinha ficado enquanto lia meu elogio fúnebre, debaixo da mesa de biscoitos, no quadro de avisos cheio de desenhos do amor divino feitos pelas crianças que frequentavam a escola dominical. Nada. Aquele foi o único lugar onde tínhamos estado juntos nos últimos dias, além da casa dele. Ou as páginas não estavam ali ou eu estava esquecendo de procurar em algum lugar. Talvez ele as tivesse deixado para mim no hospital, mas, se fosse esse o caso, elas com certeza foram jogadas fora depois da morte dele.
Eu estava realmente sem fôlego quando, por fim, me sentei numa cadeira ao lado do Nicholas, e me dediquei, durante todo o depoimento da ausência de bolas do Kevin, a dizer a meus pulmões que eles estavam bem, que podiam respirar, que havia oxigênio suficiente. O líquido deles havia sido drenado uma semana antes da morte do Joe. Fiquei vendo a água cancerosa cor de âmbar pingar para fora de mim pelo tubo. E mesmo assim tinha a sensação de que estavam cheios de novo. Fiquei tão concentrada em dizer a mim mesma para respirar que, num primeiro momento, não reparei que o Kevin tinha dito o meu nome. Retomei a atenção num estalo.
— Sim? — perguntei.
— Como você está?
— Estou bem, Patrick. Um pouco sem fôlego.
— Gostaria de compartilhar com o grupo uma lembrança que tem do Joseph?
— Eu só queria poder morrer, Kevin. Alguma vez você já sentiu vontade de simplesmente morrer?
— Já — o Kevin disse, sem fazer a pausa costumeira. — Já, é claro. Então por que você não morre?
Pensei naquilo. Minha resposta, retirada de um estoque antigo, era que eu queria continuar viva pelos meus pais, porque eles ficariam arrasados e sem filhos depois de mim, e aquilo ainda era meio verdade, mas não era bem isso, exatamente.
— Não sei.
— Porque você tem esperança de melhorar?
— Não — falei. — Não, não é isso. Eu realmente não sei. Nicholas? — passei a bola.
Estava cansada de falar.
O Nicholas começou a falar do amor verdadeiro. Eu não poderia dizer a eles o que tinha em mente porque soava brega, mas o que eu estava pensando era no universo querendo ser notado e em como eu havia reparado nele da melhor forma possível. Eu me sentia em dívida com o universo, uma dívida que só a minha atenção poderia saldar, e, além disso, me sentia em dívida com todo mundo que deixou de ser uma pessoa e com todo mundo que ainda não tinha chegado a ser uma pessoa. Tudo o que meu pai tinha me dito, basicamente.
Fiquei em silêncio até o fim da reunião do Grupo de Apoio, o Patrick me dedicou uma oração especial, o nome do Joe foi adicionado à longa lista de mortos — quatorze para cada um de nós — todos prometemos viver o melhor da nossa vida hoje, e aí eu levei o Nicholas para o carro.

* * *

Quando cheguei de volta à minha casa, mamãe e papai estavam à mesa de jantar, cada um com seu laptop, e assim que entrei pela porta mamãe fechou a tampa do dela.
— O que tem no computador?
— Só algumas receitas antioxidantes. Preparada para o BiPAP e para o America’s Next Top Model? — ela perguntou.
— Só vou me deitar um minuto.
— Você está bem?
— Estou, só um pouco cansada.
— Bem, você precisa comer antes de…
— Mãe, eu não estou com a menor fome.
Dei um passo na direção da porta, mas ela me parou.
— Demetria, você precisa comer. Só um pouco de…
— Não. Estou indo deitar.
— Não — mamãe falou. — Você não vai.
Olhei para o meu pai, que só deu de ombros.
— É a minha vida — falei.
— Você não vai ficar com fome até morrer só porque o Joseph se foi. Você vai jantar.
Fiquei muito irritada, por algum motivo.
— Eu não consigo comer, mãe. Não consigo. Tá?
Tentei passar por ela, mas a mamãe me segurou pelos ombros e disse:
— Demetria, você vai jantar. Você precisa se manter saudável.
— NÃO! — gritei. — Não vou jantar e não posso me manter saudável porque não sou saudável. Estou morrendo, mãe. Vou morrer e deixar você aqui sozinha, e você não vai mais ter uma “eu” para pairar em torno, e você não vai mais ser mãe, e eu sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer a respeito, tá?!
Eu me arrependi de ter dito aquilo assim que fechei a boca. — Você ouviu o que eu disse.
— O quê?
— Você ouviu quando eu disse isso ao seu pai? — Ela arregalou os olhos. — Você escutou? — Eu fiz que sim. — Ai, meu Deus, Demetria. Sinto muito. Eu estava errada, querida. Aquilo não era verdade. Eu falei num momento de desespero. Não é algo em que eu acredite. — ela disse e se sentou, e eu me sentei junto.
Fiquei pensando que deveria simplesmente ter vomitado algum macarrão por ela, em vez de ter ficado tão irritada.
— Em que você acredita, então? — perguntei.
— Enquanto uma de nós estiver viva, eu serei sua mãe — ela falou. — Mesmo se você morrer, eu…
— Quando — falei.
Ela assentiu com a cabeça.
— Mesmo quando você morrer, eu ainda serei sua mãe, Demetria. Não vou deixar de ser sua mãe. Você deixou de amar o Joe?
Balancei a cabeça negativamente.
— Bem, então como eu poderia deixar de amar você?
— Tá — falei. Meu pai começou a chorar.
— Eu quero que vocês vivam a vida de vocês — continuei. — Eu fico com medo de vocês não terem uma vida para viver, de ficarem sentados aqui o dia todo sem um “eu” para cuidar, olhando para as paredes, querendo dar o fora.
Depois de um minuto, a mamãe disse:
— Eu estou fazendo um curso. A distância, da Universidade de Indiana. Para obter um diploma de mestrado em serviço social. Na verdade, eu não estava lendo receitas de antioxidantes; estava fazendo um trabalho do curso.
— Sério?
— Não quero que pense que estou imaginando um mundo sem você. Mas se conseguir o mestrado poderei ajudar famílias que estejam em momentos difíceis ou liderar grupos que lidam com as doenças dos familiares deles ou…
— Peraí, você vai virar um Kevin?
— Bem, não exatamente. Existem vários tipos de trabalho de assistência social.
Papai falou:
— Nós dois ficamos preocupados achando que você poderia se sentir abandonada. É importante que você saiba que sempre estaremos aqui para você, Demetria. Sua mãe não vai a lugar algum.
— Não, isso é ótimo. Isso é fantástico! — Eu estava sorrindo de verdade. — A mamãe vai virar um Kevin. Ela vai ser um ótimo Kevin! Ela vai ser tão melhor nisso que o Kevin!
— Obrigada, Demetria. Isso significa muito para mim.
Eu balancei a cabeça. E comecei a chorar. Não consegui conter a felicidade que estava sentindo, chorando lágrimas verdadeiras de felicidade pela primeira vez em sei lá quanto tempo, imaginando minha mãe como um Kevin. Aquilo me fez pensar na mãe da Anna. Ela também teria dado uma ótima assistente social. Depois de um tempo, ligamos a TV e assistimos ao ANTM. Mas dei uma pausa no programa cinco segundos após o início porque tinha várias perguntas a fazer para a mamãe.
— Quanto falta para você terminar o curso?
— Se eu for a Bloomington e passar uma semana lá nesse verão, pode ser que consiga terminar em dezembro.
— Há quanto tempo exatamente você vem escondendo isso de mim?
— Há um ano.
— Mãe.
— Eu não queria magoar você, Demetria. Incrível.
— Então, quando você está esperando por mim do lado de fora do MCC ou do Grupo de Apoio ou sei lá o quê, você está sempre…
— Estou. Fazendo trabalhos ou lendo.
— Isso é tão maravilhoso! Quando eu morrer, quero que você saiba que estarei suspirando para você lá do céu cada vez que pedir a alguém que compartilhe seus sentimentos.
Meu pai riu.
— E eu vou estar com você, filha — ele me garantiu.
Por fim, assistimos ao ANTM. O papai fez um esforço enorme para não morrer de tédio e toda hora confundia quem era quem entre as garotas, e perguntava:
— Nós gostamos dessa?
— Não, não. Nós odiamos a Anastasia. Nós gostamos da Antonia, a outra loira — a mamãe explicou.
— Elas todas são altas e horríveis — papai retrucou. — Perdão por não conseguir distingui-las.
Papai esticou o braço por cima do meu colo para pegar a mão da mamãe.
— Vocês acham que vão continuar juntos se eu morrer? — perguntei.
— Demetria, o quê? Querida. — A mamãe procurou o controle remoto e deu uma pausa na TV de novo. — O que a preocupa?
— É só que, vocês acham que vão continuar juntos?
— Sim, é claro. É claro — o papai disse. — Sua mãe e eu nos amamos, e se perdermos você, vamos enfrentar isso juntos.
— Jure por Deus — falei.
— Eu juro por Deus — ele disse.
Olhei para a mamãe.
— Juro por Deus — ela concordou. — Mas por que é que você está preocupada com isso?
— Só não quero estragar a vida de vocês nem nada.
A mamãe se inclinou para a frente e encostou o rosto no meu cabelo bagunçado, me beijando no alto da cabeça.
Falei para o papai:
— Não quero que você se torne um alcoólatra desempregado e patético ou coisa assim.
Minha mãe sorriu.
— Seu pai não é o Peter Van Houten, Demetria. Você, mais que qualquer pessoa, sabe que é possível conviver com a dor.
— É, tá — falei, e mamãe me abraçou, e eu deixei que ela fizesse isso, mesmo, no fundo, não querendo.
— Tá, você pode dar play agora — falei.
A Anastasia foi eliminada. Ela fez um escândalo. Foi incrível. Comi um pouco no jantar, farfalle com molho pesto, e consegui fazer com que a comida continuasse dentro de mim.

Capítulo XXV

Acordei na manhã seguinte em pânico porque tinha sonhado que estava sozinha, dentro de um lago enorme, sem um barco. Levantei no susto, puxando o BiPAP com força para a frente, e senti a mão da mamãe em mim.
— Oi, você está bem?
Meu coração estava disparado, mas fiz que sim com a cabeça. Mamãe falou:
— A Miley está ao telefone e quer falar com você.
Apontei para o BiPAP. Ela me ajudou a tirá-lo e me conectou ao Felipe. Só então peguei o celular da mão da mamãe e disse:
— Oi, Miley.
— Só liguei para saber como está tudo — ela disse. — Para ver como você está indo.
— Ah, obrigada. Estou indo bem.
— Você simplesmente teve um azar enorme, amada. Isso é tão desarrazoado!
— Talvez — falei.
Eu não pensava muito mais na minha sorte ou no meu azar. Na verdade, não queria falar com a Miley sobre nada, mas ela insistia em puxar assunto.
— E então, como foi? — ela perguntou.
— Como foi a morte do meu namorado? Humm, uma droga.
— Não — ela falou. — Estar apaixonada.
— Ah — falei. — Ah. Foi… foi legal passar um tempo com alguém tão interessante. Nós éramos muito diferentes, e discordávamos em muitas coisas, mas ele era sempre tão interessante, sabe?
— Ai de mim, não sei. Os garotos que eu conheço são extremamente desinteressantes.
— Ele não era perfeito nem nada. Ele não era um príncipe encantado de conto de fadas, e tal. Tentava ser assim às vezes, mas eu gostava mais dele quando essas coisas desapareciam.
— Você tem, tipo, um álbum com as fotos e as cartas que ele escreveu?
— Tenho algumas fotos, mas ele nunca chegou a me escrever nenhuma carta. Exceto, bem, há algumas páginas faltando no caderninho dele que podem ter sido algo para mim, mas acho que ele as jogou fora ou elas se perderam ou coisa assim.
— Talvez ele tenha mandado essas páginas pelo correio para você — ela disse.
— Não, elas já teriam sido entregues aqui.
— Então talvez não tenham sido escritas para você — ela falou. — Talvez… Quer dizer, não quero deixar você deprimida nem nada, mas talvez ele as tenha escrito para outra pessoa e colocado no correio…
— VAN HOUTEN! — gritei.
— Você está bem? Isso foi uma tosse?
— Miley, eu te amo. Você é um gênio. Tenho que ir agora.
Desliguei o telefone, rolei para o lado, peguei o laptop, apertei o botão de ligar e então escrevi um e-mail endereçado a Lidewij Vliegenthart.

Lidewij,
Acredito que o Joseph Jonas tenha enviado algumas páginas do caderninho dele para o Peter Van Houten logo antes de ele (o Joseph) morrer. É muito importante para mim que alguém leia essas páginas. Eu quero lê-las, claro, mas talvez elas não tenham sido escritas para mim. De qualquer forma têm de ser lidas. Precisam ser lidas.
Você poderia me ajudar com isso?
Demetria Devonne Lovato

Ela respondeu no fim daquela tarde.

Querida Demetria,
Eu não sabia que o Joseph tinha morrido. Fiquei muito triste ao saber do acontecido. Ele era um jovem muito carismático. Sinto tanto. Estou tão triste. Não falei com o Peter desde que me demiti, naquele dia em que nos conhecemos. Está muito tarde aqui agora, mas irei até a casa dele amanhã cedo a fim de procurar essa carta e forçá-lo a lê-la. As manhãs costumavam ser a melhor hora para falar com ele.
Sua amiga,
Lidewij Vliegenthart

PS: Levarei meu namorado comigo, para o caso de termos de conter o Peter fisicamente.

* * *

Fiquei me perguntando por que ele teria escrito para o Van Houten naqueles últimos dias em vez de para mim, dito que ele só seria absolvido se me desse a minha continuação. Talvez as páginas do caderninho só repetissem seu pedido ao Van Houten. Fazia sentido, o Joe usando sua terminalidade para realizar meu sonho: a continuação da história era um algo muito pequeno pelo qual morrer, mas foi o maior que restou à sua disposição. Atualizei meus e-mails sem parar aquela noite, dormi algumas horas, e então comecei a atualizar de novo lá pelas cinco da manhã. Mas não chegou nada.
Tentei ver TV para me distrair, mas minha cabeça ficava viajando de volta a Amsterdã, imaginando a Lidewij Vliegenthart e o namorado percorrendo a cidade de bicicleta numa louca missão à procura da última correspondência de um garoto morto. Como seria divertido ir sacudindo na traseira da bicicleta da Lidewij Vliegenthart pelas ruas de paralelepípedo, seu cabelo vermelho e ondulado sendo soprado em meu rosto, o cheiro dos canais e da fumaça dos cigarros, todas aquelas pessoas sentadas do lado de fora dos cafés bebendo cerveja, falando suas letras “R” e “G” de um jeito que eu jamais aprenderia…
Eu sentia falta do futuro. É claro que eu sabia, muito mesmo antes da recorrência dele, que nunca envelheceria ao lado do Joseph Jonas. Mas ao pensar na Lidewij e em seu namorado, eu me senti roubada. Era muito provável que eu nunca mais fosse ver o oceano de uma altura de trinta mil pés de novo, uma distância tão grande que não dá nem para distinguir as ondas, nem nenhum barco, de um jeito que faz o oceano parecer um enorme e infinito monólito. Eu poderia imaginá-lo. Eu poderia me lembrar dele. Mas não poderia vê-lo de novo, e me ocorreu que a ambição voraz dos seres humanos nunca é saciada quando os sonhos são realizados, porque há sempre a sensação de que tudo poderia ter sido feito melhor e ser feito outra vez.
E mesmo se você conseguir chegar aos noventa anos, deve dar essa mesma sensação — embora eu inveje as pessoas que têm a oportunidade de comprovar isso. Mas, pensando bem, eu já tinha vivido o dobro do tempo que a filha do Van Houten. O que ele não teria dado para ter uma filha morta aos dezesseis anos…
De repente, a mamãe estava de pé entre mim e a TV, as mãos cruzadas nas costas.
— Demetria — ela disse.
Seu tom de voz era tão grave que achei que algo estava errado.
— Sim?
— Você sabe que dia é hoje?
— Não é meu aniversário, é?
Ela riu.
— Ainda não. Hoje é dia quatorze de julho, Demetria.
— É o seu aniversário?
— Não…
— É o aniversário do Harry Houdini?
— Não…
— Cansei de tentar adivinhar, sério.
— É O DIA EM QUE SE COMEMORA A QUEDA DA BASTILHA!
Ela levou os braços à frente do corpo, revelando duas bandeirinhas de plástico da França e agitando-as entusiasticamente.
— Isso parece coisa inventada. Tipo o Dia da Consciência do Cólera.
— Garanto a você, Demetria: o dia da Queda da Bastilha não é uma invenção. Você sabia que há exatamente duzentos e vinte e três anos o povo da França invadiu a prisão da Bastilha para se armar e lutar por sua liberdade?
— Uau — falei. — Nós deveríamos mesmo comemorar esta data tão importante.
— Acontece que eu acabei de combinar com seu pai um piquenique no Holliday Park.
Ela nunca se cansava de tentar, a minha mãe. Empurrei o sofá com a mão e me levantei. Juntas reunimos alguns ingredientes para sanduíches e achamos uma cesta de piquenique empoeirada no armário do corredor.

* * *

O dia estava, tipo, lindo, finalmente verão de verdade em Indianápolis, quente e úmido — o tipo de clima que fazia você se lembrar, depois de um longo inverno, que ainda que o mundo não tivesse sido feito para os seres humanos, nós tínhamos sido feitos para o mundo. O papai estava esperando por nós, de terno bege, de pé na vaga para pessoas com deficiência, digitando em seu smartphone. Ele acenou para nós enquanto estacionávamos e depois me abraçou.
— Que dia! — ele disse. — Se morássemos na Califórnia, todos os dias seriam assim.
— É, mas aí você não daria valor a eles — minha mãe falou.
Ela estava errada, mas eu não a corrigi.
Acabamos colocando nossa toalha ao lado das Ruínas, o estranho retângulo de ruínas romanas plantado no meio de um campo em Indianápolis. Não são ruínas de verdade: são, tipo, uma recriação escultural de ruínas construída oitenta anos atrás, mas tinham sido tão malcuidadas que acabaram meio que virando ruínas de verdade por acidente. O Van Houten iria gostar das Ruínas. O Joe também.
Então nos sentamos à sombra das Ruínas e fizemos uma “boquinha”.
— Você quer passar filtro solar? — a mamãe perguntou.
— Não, obrigada.
Dava para ouvir o vento balançando as folhas, e naquele vento viajavam os gritos das crianças no playground, a distância, descobrindo como continuar vivas, como percorrer um mundo que não foi feito para elas ao percorrer um playground que foi.
O papai me viu observando-as e perguntou:
— Você sente saudade de correr de um lado para outro desse jeito?
— Acho que sim, às vezes.
Mas não era nisso que eu estava pensando. Só estava tentando reparar em todos os detalhes: a luz nas Ruínas arruinadas, a criancinha que mal conseguia andar descobrindo um graveto no canto do playground, minha infatigável mãe ziguezagueando a mostarda no sanduíche de peru dela, meu pai dando batidinhas no smartphone no bolso e resistindo à tentação de dar uma espiada, um cara jogando um frisbee que seu cachorro ficava correndo para alcançar e depois levar de volta para ele.
Quem sou eu para dizer que essas coisas podem não durar para sempre? Quem é o Peter Van Houten para afirmar como verdade a conjectura de que nossa labuta é temporária? Tudo o que eu sei sobre o paraíso e tudo o que eu sei sobre a morte está naquele parque: um universo elegante em movimento constante, pululando com ruínas arruinadas e crianças estridentes. Meu pai começou a balançar a mão na frente do meu rosto.
— Sintonize, Demetria. Você está aí?
— Foi mal, é, o quê?
— A mamãe sugeriu que fôssemos ver o Joe.
— Ah. Tá — falei.

* * *

Então, depois do nosso almoço no parque, fomos de carro até o Cemitério Crown Hill, o último e derradeiro local de descanso de três vice-presidentes, de um presidente, e do Joseph Jonas. Subimos a ladeira e estacionamos. Os carros passavam atrás de nós na Rua 38. Foi fácil achar o túmulo do Joe: era o mais novo. A terra ainda estava amontoada. Nada de lápide por enquanto.
Não senti como se ele estivesse ali nem nada, mas, mesmo assim, peguei uma das bandeirinhas ridículas da mamãe e enfiei-a no chão, ao pé do túmulo. Talvez quem passasse por ali pensasse que o Joe tinha sido um integrante da legião estrangeira francesa ou algum mercenário heroico.

* * *

A Lidewij finalmente escreveu logo depois das seis da tarde, enquanto eu estava no sofá assistindo ao mesmo tempo à televisão e a alguns vídeos no meu laptop. Imediatamente pude ver que havia quatro arquivos anexados ao e-mail e quis abri-los primeiro, mas resisti à tentação e li a mensagem.

Querida Demetria,
O Peter estava muito bêbado quando chegamos à casa dele esta manhã, mas, de alguma forma, isso acabou tornando o nosso trabalho mais fácil. Bas (meu namorado) o distraiu enquanto eu vasculhava o saco de lixo no qual ele guarda as cartas dos fãs, mas aí eu me dei conta de que o Joseph sabia o endereço do Peter. Havia uma enorme pilha de cartas na mesa de jantar, onde logo encontrei a do Joseph. Abri o envelope e vi que estava endereçada ao Peter, por isso pedi a ele que a lesse.
Ele se recusou.
Fiquei com muita raiva naquela hora, Demetria, mas não gritei com o Peter. Em vez disso, falei que ele devia à filha morta a leitura da carta escrita por um garoto morto. Entreguei a carta ao Peter, ele leu tudo e disse — e aqui o cito fielmente, palavra por palavra: “Mande a carta para a menina e diga a ela que não tenho nada a acrescentar.”
Eu não li a carta, embora meu olhar tenha capturado algumas frases enquanto escaneava as páginas. Eu as anexei a este e-mail e depois vou enviá-las pelo correio para a sua casa; seu endereço ainda é o mesmo? Que Deus te abençoe e te guarde, Demetria.

Sua amiga,
Lidewij Vliegenthart

Cliquei e abri os quatro arquivos anexados. A letra dele estava confusa, inclinada, o tamanho variando, a cor da caneta mudando. Ele tinha escrito a carta durante vários dias, em graus de consciência variados.

Van Houten,
Sou uma pessoa boa, mas um escritor de merda. Você é uma pessoa de merda, mas um bom escritor. Nós formaríamos uma bela equipe. Não quero lhe pedir nenhum favor, mas, se tiver tempo — e pelo que vi, você tem tempo de sobra —, fiquei me perguntando se poderia escrever um elogio fúnebre para a Demetria. Tenho algumas anotações e tudo mais, mas se você pudesse transformá-las num texto completo e coerente, e tal… Ou então só me dizer o que eu deveria escrever de forma diferente.
O bom da Demetria é o seguinte: quase todo mundo é obcecado por deixar uma marca no mundo. Transmitir um legado. Sobreviver à morte. Todos queremos ser lembrados. Eu também.
É isso o que me incomoda mais, ser mais uma vítima esquecida na guerra milenar e inglória contra a doença.
Eu quero deixar uma marca.
Mas, Van Houten: as marcas que os seres humanos deixam são, com frequência, cicatrizes. Você constrói um shopping center medonho ou dá um golpe de Estado ou tenta se tornar um astro do rock e pensa: “Eles vão se lembrar de mim agora”, mas: (a) eles não se lembram de você, e (b) tudo o que você deixa para trás são mais cicatrizes. Seu golpe de Estado se transforma numa ditadura. Seu shopping center acaba dando prejuízo.
(Tá, talvez eu não seja um escritor tão de merda assim. Mas não consigo organizar minhas ideias, Van Houten. Meus pensamentos são estrelas que eu não consigo arrumar em constelações.)
Nós somos como um bando de cães mijando em hidrantes. Nós envenenamos as águas subterrâneas com nosso mijo tóxico, marcando tudo como MEU numa tentativa ridícula de sobreviver à morte. Eu não consigo parar de mijar em hidrantes. Sei que é tolice e inútil — epicamente inútil em meu estado atual —, mas sou um animal como qualquer outro.
A Demetria é diferente. Ela anda suavemente, meu velho. Ela anda suavemente sobre a Terra. A Demetria sabe qual é a verdade: é tão provável que nós consigamos ferir o universo quanto é provável que nós o ajudemos, e é improvável que façamos qualquer uma dessas duas coisas.
As pessoas vão dizer que é triste o fato de ela deixar uma cicatriz menor, que menos pessoas se lembrem dela, que ela tenha sido muito amada mas não por muita gente. Mas isso não é triste, Van Houten. É triunfante. É heroico. Não é esse o verdadeiro heroísmo? Como dizem os médicos: em primeiro lugar, não cause dano ou mal a alguém.
Os verdadeiros heróis, no fim das contas, não são as pessoas que realizam certas coisas; os verdadeiros heróis são as que REPARAM nas coisas. O cara que inventou a vacina contra varíola não inventou nada, na verdade. Ele só reparou que as pessoas que tinham varíola bovina não pegavam varíola.
Depois que a minha tomografia acendeu como uma árvore de natal, eu entrei furtivamente na UTI e vi a Demetria quando ainda estava inconsciente. Entrei andando atrás de uma enfermeira de crachá e consegui me sentar ao lado da Demetria por, tipo, uns dez minutos antes de ser pego. Eu realmente achei que ela fosse morrer antes que eu pudesse lhe contar que também ia morrer. Foi brutal: o arengar mecanizado incessante da terapia intensiva. Havia uma água cancerosa escura pingando do peito dela. Os olhos fechados. Entubada. Mas a mão dela ainda era a mão dela, ainda quente, as unhas pintadas de um azul-escuro quase preto, e eu simplesmente segurei sua mão e tentei imaginar o mundo sem nós, e por mais ou menos um segundo fui uma pessoa boa o suficiente para torcer que ela morresse e nunca ficasse sabendo que eu também ia morrer. Mas aí eu quis mais tempo para que pudéssemos nos apaixonar. Creio que meu desejo foi realizado. Eu deixei a minha cicatriz.
Um enfermeiro chegou e me disse que eu precisava me retirar, que visitas não eram permitidas, e eu perguntei se ela estava melhorando. O cara disse: “Ela ainda está fazendo água.” Bênção do deserto, maldição do oceano.
O que mais? Ela é tão linda! Não me canso de olhar para ela. Não me preocupo se ela é mais inteligente que eu: sei que é. É engraçada sem nunca ser má. Eu a amo. Sou muito sortudo por amá-la, Van Houten. Não dá para escolher se você vai ou não vai se ferir neste mundo, meu velho, mas é possível escolher quem vai feri-lo. Eu aceito as minhas escolhas. Espero que a Demetria aceite as dela.

Eu aceito, Joseph.
Eu aceito.

FIM

Um comentário:

  1. Li essa historia em dois dias....
    Me emocionei muito...
    Ta confesso, chorei... Coisa que é dificil..
    Devo estar na TPM
    kkkkkkkkkk
    Bela escolha...
    ;)
    Bjs

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