sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Capítulo XIII

The Fault In Our Stars

Na manhã seguinte, nosso último dia inteiro em Amsterdã, mamãe, Joseph e eu andamos o meio quarteirão entre o hotel e o Vondelpark, onde descobrimos um café à sombra do Museu do Cinema Holandês. Tomando lattes — que, nos disse o garçom, eram chamados pelos holandeses de “café estragado” porque tinham mais leite que café —, nos sentamos à sombra rendada de uma castanheira enorme e contamos à mamãe como foi nosso encontro com o grande Peter Van Houten. Demos um tom engraçado à história. Até onde eu sei, você pode escolher a forma de contar uma história triste nesse mundo, e nós fomos pela opção divertida: o Joseph, afundado na cadeira do café, fingiu ser um Van Houten de língua presa e fala engrolada que nem sequer conseguia levantar da poltrona; eu fiquei de pé para representar a minha versão arrogante e machona, gritando:
— Levante-se, velho gordo e feio!
— Você chamou o Van Houten de feio? — o Joseph perguntou.
— Continue, Joe — falei para ele.
— Nau sou feiu. Você é que é feia, garota do nariz entubado.
— Você é um covarde! — gritei, e o Joseph caiu na gargalhada, saindo do personagem.
Eu me sentei. Contamos para a mamãe da ida à casa da Anne Frank, deixando de fora a parte do beijo.
— Vocês voltaram à casa do Van Houten depois? — a mamãe perguntou.
O Joseph não me deu nem tempo de ficar vermelha.
— Não, nós só ficamos jogando conversa fora num café. E a Demetria desenhou um diagrama de Venn muito bem-humorado para mim.
Ele me olhou. Cara, como ele era sexy.
— Parece que foi legal — ela disse. — Bem, vou andar por aí agora. E dar um tempo para vocês conversarem. — Ela olhou para o Joe de um jeito meio incisivo. — Então depois, talvez, nós possamos fazer um passeio de barco pelo canal.
— Ahn, o.k.? — falei.
A mamãe deixou uma nota de cinco euros debaixo do pires, deu um beijo na minha cabeça e sussurrou:
— Eu te amo amo amo.
O que eram dois amos a mais que o normal.
O Joe apontou para as sombras dos galhos se entrecruzando e depois se separando no cimento.
— Lindo, né?
— É — respondi.
— Uma metáfora das boas — ele balbuciou.
— É mesmo? — perguntei.
— A imagem em negativo de coisas sendo unidas pelo vento e depois indo pelos ares — ele falou.
Diante de nós, centenas de pessoas passavam, correndo, andando de bicicleta e de patins. Amsterdã era uma cidade projetada para movimentação e atividades, uma cidade que preferia não viajar de carro, por isso me senti inevitavelmente excluída. Mas, cara, como era linda, o riacho esculpindo um caminho em volta de uma árvore imensa, uma garça-real imóvel à beira d’água, tentando encontrar algo para comer no meio daqueles milhões de pétalas de olmo flutuando.
Mas o Joseph não reparou naquilo. Ele estava muito ocupado observando as sombras se moverem. Por fim, falou:
— Eu poderia ficar o dia todo aqui olhando isso, mas precisamos voltar para o hotel.
Será que teremos tempo? — perguntei.
Ele abriu um sorriso triste.
— Quem me dera — respondeu.
— Qual é o problema? — perguntei.
Ele fez um movimento com a cabeça em direção ao hotel.

* * *

Andamos em silêncio, o Joseph meio passo à minha frente. Meu medo era tanto que eu não conseguia nem perguntar se tinha motivo para ficar com medo. A
Aí existe esse troço chamado Hierarquia de Necessidades de Maslow. Basicamente, um cara chamado Abraham Maslow ficou famoso por sua teoria, que defende que certas necessidades devem ser satisfeitas antes mesmo que se possa ter outros tipos de necessidades. A teoria é representada mais ou menos assim:
HIERARQUIA DE NECESSIDADES DE MASLOW
Logo que suas necessidades de comida e água são atendidas, você passa ao conjunto de necessidades seguinte, que tem a ver com segurança, e então vai para o próximo, e depois para o outro, mas o importante é que, de acordo com Maslow, até que suas necessidades fisiológicas sejam satisfeitas, você não tem nem mesmo como chegar a se preocupar com a necessidade de segurança ou de relacionamentos, quanto mais com a “autorrealização”, que é quando você começa a, tipo, fazer arte e pensar nos princípios morais, na física quântica e em coisas assim.
Segundo Maslow, eu estava empacada no segundo nível da pirâmide, incapaz de sentir segurança na minha saúde e, portanto, incapaz de tentar ir atrás de amor, de respeito, de arte e de mais nada, o que, obviamente, era uma bobagem sem tamanho: o desejo de fazer arte ou de filosofar não desaparece quando alguém está doente. Esses desejos só ficam transfigurados pela doença.
A pirâmide de Maslow parecia sugerir que eu era menos humana que os outros, e a maioria das pessoas parecia concordar com ele. Mas não o Joseph. Sempre achei que ele poderia me amar porque já esteve doente um dia. Só então me ocorreu que talvez ele ainda estivesse.

* * *

Chegamos ao meu quarto, o Kierkegaard. Eu me sentei na cama esperando que o Joe fosse se juntar a mim, mas ele afundou na cadeira Paisley empoeirada. Aquela cadeira. Quantos anos tinha aquilo? Uns cinquenta?
Senti o nó na garganta apertando enquanto o via tirar um cigarro do maço e colocá-lo nos lábios. Ele se recostou e suspirou.
— Um pouco antes de você ir parar na UTI, comecei a sentir uma dor no quadril.
— Não — falei.
O pânico me invadiu e me arrastou para as profundezas.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Então fui ao hospital fazer uma tomografia.
Ele parou. Tirou o cigarro da boca e trincou os dentes.
Passei a maior parte da minha vida tentando não chorar na frente das pessoas que me amavam, por isso sabia o que o Augustus estava fazendo. Você trinca os dentes. Você olha para cima. Você diz a si mesmo que se eles o virem chorando, aquilo vai magoá-los, e você não vai ser nada mais que Uma Tristeza na vida deles. Você não deve se transformar numa mera tristeza, então não vai chorar, e você diz tudo isso para si mesmo enquanto olha para o teto. Aí engole em seco, mesmo que sua garganta não queira, olha para a pessoa que ama você e sorri.
Ele abriu o sorriso torto e disse:
— Eu acendi como uma árvore de Natal, Demetria Lovato. Dentro do tórax, o lado esquerdo do meu quadril, meu fígado, tudo.
Tudo. Aquela palavra ficou suspensa no ar por um tempo. Ambos sabíamos o que significava. Eu me levantei, arrastando meu corpo e o carrinho pelo tapete que era mais velho do que o Joseph jamais seria, me ajoelhei nos pés da cadeira, coloquei minha cabeça no colo dele e abracei sua cintura.
Ele começou a passar a mão no meu cabelo.
— Sinto muito — falei.
— Foi mal eu não ter dito nada para você — ele disse, o tom de voz manso. — Sua mãe deve saber. O jeito como olhou para mim. Minha mãe deve ter contado para ela, ou algo assim. Eu deveria ter contado para você. Foi burrice minha. Egoísmo.
É claro que eu sabia por que o Joe não tinha dito nada: pelo mesmo motivo que não deixei que ele me visse na UTI. Eu não tinha o direito de ficar chateada com ele nem por um instante, e só agora que eu amava uma granada foi que entendi a bobagem que é tentar salvar os outros da minha própria explosão iminente: eu não podia deixar de amar o Joseph Jonas. E não queria fazer isso.
— Não é justo — falei. — É tudo tão injusto…
— O mundo não é uma fábrica de realização de desejos — ele retrucou, e então perdeu o controle, só por alguns instantes, seu choro e seus soluços ruídos impotentes como o estrondo de um trovão sem raio, a ferocidade tremenda que os amadores no quesito sofrimento podem tomar erradamente por fraqueza.
Aí ele me puxou mais para perto e, com o rosto a poucos centímetros do meu, decidiu:
— Eu vou lutar contra o câncer. Vou lutar contra o câncer por você. Não se preocupe comigo, Demetria Lovato. Estou bem. Vou achar um jeito de continuar por aqui e encher o seu saco por um bom tempo.
Comecei a chorar. Mas mesmo naquele momento ele parecia forte, me dando um abraço apertado para que eu pudesse ver os músculos vigorosos de seus braços em torno de mim quando disse:
— Sinto muito. Você vai ficar bem. Tudo vai ficar bem. Prometo. — Ele abriu aquele sorriso torto, me deu um beijo na testa, e senti seu tórax poderoso esvaziar só um tiquinho. — Acho que eu tinha uma hamartia, no fim das contas.

* * *

Depois de um tempo eu o puxei até a cama e nós ficamos deitados lá, juntinhos, enquanto ele me contava que havia começado um tratamento paliativo com quimioterapia, mas que tinha desistido de tudo para ir a Amsterdã, mesmo isso tendo deixado seus pais furiosos. Os dois continuaram tentando impedi-lo de viajar até aquela manhã, quando o ouvi gritando que seu corpo lhe pertencia.
— Nós poderíamos ter adiado a viagem — falei.
— Não, não poderíamos — ele retrucou. — De qualquer forma, não estava dando resultado. Dava para sentir que não estava dando certo, sabe? Assenti com a cabeça.
— É uma perda de tempo, a coisa toda — falei.
— Eles vão tentar algo novo quando eu voltar para casa. Eles sempre têm uma ideia nova.
— É — falei, eu mesma já tendo sido a almofada de alfinetes experimental.
— Eu meio que enganei você, levando você a acreditar que estava se apaixonando por uma pessoa saudável — ele falou.
Dei de ombros.
— Eu teria feito o mesmo.
— Não, não teria, mas não dá para todo mundo ser tão incrível como você.
Ele me beijou, e então fez uma careta.
— Dói? — perguntei.
— Não. É só que. — Ele ficou olhando para o teto por um bom tempo antes de dizer: — Eu gosto deste mundo. Gosto de beber champanhe. Gosto de não fumar. Gosto do som de holandeses falando holandês. E agora… Não vou ter nem a chance da batalha. Não vou ter nem a chance da luta.
— Você pode batalhar contra o câncer — falei. — Essa é a sua batalha. E você vai continuar lutando — disse para ele. Odiava quando as pessoas tentavam me encorajar para me preparar para a batalha, mas fiz isso com ele mesmo assim. — Você vai… você vai… viver o melhor da sua vida hoje. Essa é a sua guerra agora.
Eu me odiei por aquele sentimento brega, mas o que mais eu tinha?
— Grande guerra — ele disse com desdém. — Estou em guerra contra o quê? O meu câncer. E o que é o meu câncer? Meu câncer sou eu. Os tumores são feitos de mim. Eles são feitos de mim tanto quanto meu cérebro e meu coração são feitos de mim. É uma guerra civil, Demetria Lovato, a gente já sabe quem vai vencer.
— Joe.
Não havia mais nada que eu pudesse dizer. Ele era inteligente demais para o tipo de consolo que eu poderia oferecer.
— Está tudo bem. — Mas não estava, e depois de alguns instantes ele disse: — Se você for ao Rijksmuseum, o que eu realmente gostaria de fazer, mas, a quem estamos querendo enganar? Nenhum de nós consegue passar horas andando num museu. Bem, de qualquer forma, dei uma olhada na coleção de pinturas deles pela Internet, antes de virmos. Se você fosse lá, e espero que um dia consiga ir, veria várias pinturas de pessoas mortas. Veria Jesus na cruz, um cara sendo esfaqueado no pescoço, pessoas morrendo no mar, outras numa batalha, e um desfile de mártires. Mas nem. Uma. Criança. Com. Câncer. Sequer. Ninguém batendo as botas por causa da praga, nem da varíola, nem da febre amarela, nem nada, porque não existe glória na doença. Não há propósito nela. Não há honra em se morrer de.
Abraham Maslow, apresento a você o Joseph Jonas, cuja curiosidade existencial superou a de seus irmãos bem-alimentados, bem-amados e saudáveis. Enquanto a massa de homens seguia em frente levando vidas totalmente inescrutáveis de consumo descabido, o Joseph Jonas examinava a coleção de pinturas do Rijksmuseum a distância.
— O que foi? — o Joseph perguntou após um tempo.
— Nada — respondi. — Só… — Não pude completar a frase. Não sabia como. — Só gosto muito demais da conta de você.
Ele deu um sorriso torto, o nariz a centímetros do meu.
— A recíproca é verdadeira. Será que daria para você esquecer isso tudo e me tratar como se eu não estivesse morrendo?
— Não acho que você esteja morrendo — falei. — Só acho que você recebeu uma pitada de câncer.
Ele sorriu. Humor negro.
— Estou numa montanha-russa que só vai para cima — falou.
— E é meu privilégio e minha responsabilidade seguir nessa montanha-russa até o topo com você — retruquei.
— Seria totalmente absurdo tentar fazer amor agora?
— Tentativa não há — falei. — Fazer é que há. 

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